Congresso Nacional troca articulação de políticas por mais acesso a recursos
A profusão de emendas promulgadas na última década fragmentou o orçamento federal e dificultou o planejamento coletivo de políticas de longo prazo, afirma tese


Durante muito tempo, predominou a ideia de que o Congresso Nacional atuava apenas como um coadjuvante no processo orçamentário brasileiro — limitado a modificar pontualmente o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) por meio de emendas à despesa pública, geralmente com fins eleitorais. Essa imagem, porém, não dá conta do que realmente aconteceu entre o fim dos anos 1990 e meados da década de 2010.
A tese de doutorado do cientista político Raul Bonfim, recém-defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e orientada pela pesquisadora e docente Andréa Freitas, mostra que o Legislativo também desempenhou um importante papel nas etapas iniciais do ciclo orçamentário, especialmente ao participar da formulação do Plano Plurianual (PPA). Naquele momento, antes mesmo da fase de alocação dos recursos, parlamentares disputaram o conteúdo das políticas públicas — criando ações novas, sugerindo metas, modificando prioridades. A atuação não se limitava a decidir o “quanto” gastar, mas também “com que” gastar.
Esse padrão começou a se alterar a partir de 2015, com a promulgação da Emenda Constitucional 86, que tornou as emendas parlamentares individuais impositivas (de execução obrigatória). O movimento se aprofundou em 2020, após a chegada das chamadas “emendas PIX”, que permitem transferências diretas de verba a Estados e municípios, sem a necessidade de vinculação desses montantes a programas federais. O Congresso Nacional passou a ter mais acesso a recursos — porém com menos envolvimento na elaboração coletiva das políticas públicas. O orçamento deixou de ser um plano articulado e passou a operar, cada vez mais, como uma soma de cotas individuais. Tudo isso provocou consequências relatadas semanalmente no noticiário nacional.

As engrenagens do orçamento

O ciclo orçamentário brasileiro compõe-se de três peças legislativas: o PPA, que define as diretrizes e os programas do governo para um período de quatro anos; a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que escolhe anualmente as prioridades para o ano seguinte; e a Lei Orçamentária Anual (LOA), que estabelece o quanto será gasto e com que. Embora tenham o mesmo status constitucional, as três leis não possuem o mesmo peso político ou midiático. A LOA costuma concentrar todas as atenções — em especial devido às emendas orçamentárias dos parlamentares. Já o PPA, instrumento no qual as políticas públicas ganham corpo, tende a ser negligenciado tanto pela pesquisa acadêmica quanto pela cobertura jornalística.
Segundo a tese de Bonfim, as ações inseridas no PPA funcionam como pré-requisito para que algo conte com financiamento na LOA. “Se uma ação não estiver prevista no PPA, não pode ser contemplada com uma emenda”, explica o cientista político. E é justamente nesse ponto que o pesquisador localiza um espaço de poder oculto aos olhos menos atentos: durante muitos anos, o Congresso atuou ativamente para inserir ações novas nos programas do PPA, formatando políticas inteiras e não apenas direcionando recursos.
A pesquisa identificou 5.324 ações nos programas prioritários de governo entre 1999 e 2019. Dessas, 1.165 (ou seja, 22%) foram criadas diretamente pelo Legislativo. Na tese, Bonfim afirma se tratar de “uma atuação qualitativa, não apenas quantitativa” por parte dos parlamentares.
“A imagem predominante é a do parlamentar que pega uma fatia do recurso e destina para sua base. O que encontrei foi um Congresso que, ao menos por um período de tempo importante, também participou da definição das políticas públicas”, diz o pesquisador.
Entre consensos e vetos
Nem todas essas contribuições parlamentares sobreviveram. No período analisado, o Executivo vetou cerca de 4% delas, e a disposição do governo para acolher as mudanças variou ao longo dos anos e mandatos. Os governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) aceitaram proporções maiores de emendas ao PPA. Já os governos de Dilma Rousseff (2011-2016), especialmente o segundo, adotaram uma postura mais restritiva. “Houve uma mudança de padrão. A partir do segundo governo Lula e com mais força no governo Dilma, o Executivo voltou a centralizar a elaboração do orçamento, reduzindo os canais institucionais de colaboração com o Legislativo”, afirma o autor.
Essa mudança gerou efeitos concretos e ainda repercute nos dias atuais. Nos planos quadrienais aprovados entre 2011 e 2019, o número de ações inseridas pelo Legislativo caiu, assim como a quantidade de emendas apresentadas pelo Congresso à LDO e ao PPA. As reuniões da Comissão Mista de Orçamento, responsável por avaliar projetos de lei relativos a esses três instrumentos bem como examinar as contas da Presidência da República, também diminuíram em quantidade. A tese sugere que, a essa retração, seguiram-se consequências políticas: ao ver seu espaço de deliberação reduzido, o Congresso reagiu, criando mecanismos alternativos para acessar recursos, como as emendas impositivas individuais e de bancada estadual e, mais recentemente, as chamadas emendas PIX e de relator-geral.
A lógica do ‘cada um por si’
A partir de 2015, uma série de mudanças institucionais alterou a lógica do jogo orçamentário. Com a promulgação da Emenda Constitucional 86, as emendas individuais à LOA passaram a ter execução obrigatória. Isso significa que, uma vez aprovadas, o Executivo é obrigado a liberar os recursos indicados por cada parlamentar, dentro de um teto previamente definido.
Com a Emenda 105, de 2019 — a famosa “emenda PIX” —, as transferências começaram a ser feitas diretamente aos entes subnacionais (Estados, Distrito Federal e municípios), sem necessidade de convênios, vinculação a programas federais e, até 2022, exigência de prestação de contas.
Bonfim explica que esse novo arranjo aumentou o acesso do Congresso aos recursos, mas reduziu seu envolvimento na formulação das políticas públicas. “Antes, o parlamentar precisava entender o plano e suas programações, propor mudanças, debater. Hoje, com a cota garantida, basta indicar a destinação do dinheiro.” Segundo dados levantados na tese, em 2022, mais de 60% das emendas orçamentárias individuais livres — não vinculadas à saúde — passaram a ser feitas via transferência especial. Uma mudança significativa em relação aos anos anteriores. Para se ter uma ideia, em 2020, primeiro ano da mudança, os valores somavam apenas 16% dos valores globais livres.
A nova lógica tem como consequência a fragmentação do orçamento. Ao pulverizar os recursos em iniciativas locais desvinculadas de programas nacionais, o planejamento estratégico do Estado se esgarça, dificultando a coordenação de ações, a medição de resultados e o planejamento de políticas de médio prazo. Na pesquisa, o cientista político sintetiza: “É como se cada parlamentar tivesse sua própria política, mas ninguém soubesse o que o Legislativo está fazendo como um todo”.

Disputar por dentro

No período analisado, Bonfim identificou uma corrente contrária à tendência observada: a presença de parlamentares que ainda tratavam o orçamento como um instrumento de disputa política — e não apenas como um canal de transferência de recursos. Alguns desses casos ocorreram ainda no momento em que o Congresso exercia um papel ativo nas etapas de formulação das políticas públicas.
Durante o primeiro governo Lula, por exemplo, a deputada Luiza Erundina (PSOL-SP) apresentou uma emenda ao PPA alterando o escopo de uma iniciativa do Ministério do Turismo ao incluir metas de enfrentamento à exploração sexual associada à cadeia turística. “Isso não foi um remanejamento de recurso. Houve a reorientação completa de uma ação do programa com base em uma preocupação estrutural”, explica o autor.
Outros exemplos ocorreram sob a lógica mais recente, caracterizada pela fragmentação e pelo uso individualizado das emendas. No governo Jair Bolsonaro (2019-2022) — marcado pela hostilidade à pauta ambiental —, deputados da oposição usaram emendas à despesa para financiar ações de proteção a biomas, contenção do desmatamento e apoio a comunidades tradicionais. O movimento não contou com visibilidade pública nem capitalização midiática, mas, mostra a tese, garantiu a sobrevivência de ações que o Executivo tentava esvaziar.
Segundo Bonfim, esses casos mostram que, mesmo sob regras distintas e cenários políticos adversos, o orçamento pode funcionar como uma arena de disputa substantiva, inclusive para parlamentares isolados ou em minoria.
Reações à perda de espaço
A pesquisa também aponta que a virada no comportamento parlamentar não se deu de forma espontânea. Essa mudança respondeu a um processo de centralização do orçamento por parte do Executivo, iniciado ainda no segundo governo Lula e intensificado nos governos Dilma. Nesse período, aumentaram os vetos a emendas, o PPA foi reformulado de forma a dificultar alterações e o governo concentrou as relatorias orçamentárias em parlamentares de seu próprio partido.
Diante disso, os congressistas buscaram atalhos. Primeiro com as emendas impositivas individuais e de bancada; depois com as emendas do relator (Resultado Primário No 9 — RP 9); e, mais recentemente, com as chamadas “emendas de comissão”, cada vez mais controladas por lideranças partidárias — e não pelas comissões temáticas. “O Legislativo puxou de volta a corda, mas em um modelo menos deliberativo”, explica o cientista político.
Há caminho de volta?
Bonfim não oferece saídas fáceis, mas aponta a importância de recuperar o orçamento como instrumento coletivo de deliberação pública. Segundo diz, não basta discutir a destinação das emendas — é preciso repensar o desenho do orçamento como espaço de deliberação. O cientista político propõe três linhas principais de atuação: reforçar o papel das comissões temáticas enquanto instâncias coletivas de decisão, ampliar a transparência em torno dos recursos e criar mecanismos de participação direta na definição das emendas. “Transformar parte das emendas em mecanismos participativos, refletindo decisões compartilhadas com a sociedade civil, pode ajudar a reequilibrar a lógica fragmentada atual.”
GLOSSÁRIO
Emendas à despesa
Alterações feitas pelo Congresso Nacional na proposta orçamentária encaminhada pelo Executivo, com o objetivo de incluir, modificar ou suprimir itens da despesa pública. Geralmente incluem repasses para obras, serviços ou projetos em Estados, municípios e organizações não governamentais.
Emendas de texto
Modificação de atributos qualitativos do projeto, podendo acrescentar, alterar, excluir ou cancelar dispositivos. Nos projetos de lei do PPA, as emendas podem alterar tanto o texto da proposta quanto os aspectos qualitativos dos programas temáticos, modificando metas, objetivos e ações. Já na LDO e na LOA, as emendas se restringem ao texto da lei.
Emendas orçamentárias individuais ou emendas impositivas individuais
Permitem a cada deputado federal ou senador alterar a proposta de orçamento anual (PLOA), indicando em que e como parte dos recursos será aplicada. Em 2015, por meio de uma emenda constitucional (EC 86/15), essas medidas tornaram-se impositivas, de execução obrigatória pelo Executivo dentro de um limite de 1,2% da receita corrente líquida do ano anterior e da qual metade deve ser destinada à saúde.
Emendas de bancada estadual
Modalidade de emenda apresentada pelas bancadas de cada Estado no Congresso Nacional. Em 2019 (EC 100/19), também se tornaram impositivas.
Emendas de comissão
Alterações na peça orçamentária promovidas por comissões permanentes, como as de Saúde, Meio Ambiente e Educação do Congresso Nacional. Deveriam refletir interesses coletivos com foco em políticas públicas estruturantes, mas são frequentemente controladas pelas lideranças políticas.
Emendas PIX
Criadas pela EC 105/19, permitem que deputados federais e senadores destinem parte de seus orçamentos individuais diretamente a Estados e municípios, sem que haja vínculo com programas federais. O nome se deve à facilidade e rapidez da transferência, sem exigência de convênio ou prestação clara de contas até 2022.
Emendas de relator-geral (RP 9)
Definidas pelo relator-geral do orçamento, tornaram-se controversas devido à falta de transparência, ganhando o apelido de “orçamento secreto”. Originalmente, sua função era corrigir erros e omissões na proposta orçamentária do Executivo. No entanto, de 2020 a 2022, o Congresso Nacional ampliou os poderes do relator-geral, que agora pode inserir despesas na LOA sem seguir as especificações do Parecer Preliminar, documento composto pelo relatório preliminar do relator-geral e pela decisão da Comissão Mista de Orçamento (CMO).
Emendas à LDO
Alterações propostas ao projeto da LDO, que define as metas e prioridades da administração pública para o ano seguinte. Permitem ao Congresso ajustar as regras e os critérios para a elaboração da LOA.
Emendas ao PPA
Propostas que alteram os programas e as ações planejados para os quatro anos de governo.
Essas propostas têm forte impacto, pois definem o conteúdo das políticas públicas que poderão receber recursos.