Os conflitos em torno do pirarucu
Pesquisador se reconecta com suas origens ao retratar, em tese, embates entre manejadores e invasores de comunidade no Amazonas
Os conflitos em torno do pirarucu

Pesquisador se reconecta com suas origens ao retratar, em tese, embates entre manejadores e invasores de comunidade no Amazonas

Pensa-se muito sobre a Amazônia, mas não se pensa com a Amazônia, né?”, questiona o antropólogo Rônisson de Oliveira. Natural de São Paulo do Coraci, uma comunidade da região central do Estado do Amazonas, o pesquisador acredita que muitas políticas públicas não atentam para a complexidade do território amazônico. Levando esse incômodo para o centro da sua tese de doutorado, defendida no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Oliveira esmiuça os conflitos em torno da pesca do pirarucu em sua localidade de origem.
No território, situado na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã (RDS Amanã), os planos de conservação, iniciados no início dos anos 2000, alteraram a relação entre o pirarucu e os pescadores. Parte deles se organizou em torno do manejo, aderindo a regras que visam à conservação dessa espécie. Já outro grupo não fez o mesmo, perdendo o direito de pescar de forma legal. Diante desse panorama, uma das motivações do estudo, orientado pelo professor do IFCH Mauro Almeida, passou por entender como uma política pública atravessa as relações de uma comunidade. “Focamos muito o resultado, mas não o impacto [dessas medidas] na vida das pessoas. A gente precisa adentrar nisso. Não para acabar [com a política de conservação], mas para fortalecê-la.”
O retorno ao Coraci
Aos 11 anos, Oliveira saiu de São Paulo do Coraci rumo à cidade de Tefé (AM) para dar seguimento a seus estudos. Na época, era possível cursar apenas até a quarta série do ensino fundamental na comunidade. Em Tefé, o então estudante sentia receio de falar que pertencia a uma comunidade tradicional. Depois de 20 anos de uma trajetória focada nos estudos, o antropólogo conta não sentir mais nenhuma necessidade de ocultar suas origens. Sua tese o fez reconectar-se com sua terra natal.
“Quando eu era adolescente, nem falava que era de lá. Hoje, não. Hoje eu me reconheço como do Coraci. Em qualquer lugar que eu vá e em que eu possa falar que eu sou do Coraci, eu vou falar. Essa tese me faz voltar ao Coraci em diversos sentidos: voltar à história da minha mãe, à história do meu pai, e ver o quanto essa luta deles é potente.”
A educação formal, para o antropólogo, propiciou uma mudança de rumos. “O estudo foi muito importante pra mim. Foi o motivo da minha saída e eu agarrei isso com muita intensidade porque vi uma possibilidade de transformação.”
Enquanto na comunidade, Oliveira gostava mais de brincar no rio ou nos campos com os primos e irmãos. Na cidade, voltou-se às dinâmicas escolares. “Em Tefé, a vida muda. É uma cidade. Você fica muito mais isolado. Então eu me concentrei muito nos estudos. Sempre fui muito tímido, por isso uma das saídas na escola era justamente ser uma pessoa inteligente. Para mim, você precisa entender como é o funcionamento da escola e eu entendi isso muito cedo. Aí você começa a ser percebido como uma pessoa inteligente.”
Depois de cursar o ensino médio, Oliveira ingressou no curso de história na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), período em que se envolveu pela primeira vez com atividades de pesquisa. Na sequência, fez mestrado em sociologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), com uma dissertação sobre questões de gênero. Um ano depois, ingressou no Instituto Mamirauá, uma organização social (OS) fomentada e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que atua com pesquisa voltada ao manejo de recursos naturais e ao desenvolvimento social.


Por meio do instituto, o antropólogo retornou ao Coraci como pesquisador, em um trabalho de levantamento sobre as práticas tradicionais dos pescadores da região. Nesse período, percebeu um conflito na comunidade entre os manejadores do pirarucu e os não manejadores, considerados invasores. “Eu tinha um incômodo por haver essa divisão. Pensava: ‘Por que as pessoas estão divididas? Por que estão brigando e dando tanta importância a isso?’.” Começou aí uma mudança de foco na sua trajetória de estudo.
Até 1998, data de criação da RDS Amanã, os invasores eram os pescadores vindos de fora. “Até então, não existiam esses invasores de dentro. Vinham barcos, os ‘peixeiros’, como a gente chama aqui, de outras regiões. Vinham de Manaus e até do Pará. Eram barcos grandes, tinham materiais que nem existiam pra cá, no Coraci. Esses eram os invasores até então. Quando se cria a unidade de conservação, começa-se a barrar a entrada de invasores vindos de fora, no final dos anos 90. Até que, em 2001, eles já não conseguem mais entrar.”
Em 1996, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) proibiu a captura do pirarucu devido à diminuição da população da espécie, um fenômeno associado à pesca indiscriminada. Dois anos depois, começou a ser implementado o plano de manejo, que estabeleceu regras, como uma cota de peixes adultos para a captura, a padronização do armazenamento e do transporte e a delimitação das áreas de pesca.
No Coraci, os manejadores se organizaram na Associação de Produtores do Setor Coraci (APSC). “A partir daí, os invasores de dentro começaram a existir, porque nem todos os homens ingressaram no grupo”, conta Oliveira.
Os motivos para não aderir ao manejo ou para o abandono da prática, segundo a pesquisa, são diversos, incluindo a dificuldade de lidar com a burocracia e questões religiosas. Mas isso não significa que os invasores oponham-se às medidas de conservação da área, incluindo aquelas relativas ao pirarucu. “Essas pessoas ainda têm um compromisso com o território porque elas moram ali. Mesmo não cumprindo todos os acordos que têm que ser cumpridos, elas não querem que o território acabe.”
Invasores e manejadores
Para se aprofundar no conflito entre os invasores e os manejadores, Oliveira viajou até o Coraci dez vezes, permanecendo na região de no mínimo 5 a um máximo de 30 dias. “Tu garante?”, perguntavam-lhe quando participava de atividades nas roças ou nos lagos, querendo saber se ele aguentaria ficar na comunidade. Nesse retorno, houve um processo de adaptação. “Eu sempre afirmava que garantia, mas, para de fato garantir, foi essencial experimentar, reviver e me readaptar. Assim, tive febre após tocar em uma árvore infestada de tachi, uma espécie de formiga que habita certas árvores na região. O mesmo ocorreu quando fui picado por uma caba, uma vespa noturna”, relata na tese.
Durante os períodos de estadia em São Paulo do Coraci, realizou 19 entrevistas, participou de dez reuniões e analisou 53 atas da APSC (lavradas de 2001 a 2010), 18 relatórios do promotor comunitário do Coraci (datados de 2001 a 2002) e 90 documentos do Instituto Mamirauá. Além disso, participou das atividades de manejo com os pescadores.


Apesar das dificuldades enfrentadas no processo de readaptação, o fato de estar em um ambiente familiar contribuiu com a pesquisa, já que Oliveira tinha acesso às rodas de conversa, mesmo as mais informais. A principal dificuldade foi a comunicação com o grupo dos invasores, também porque esse grupo não se reconhece como tal.
“Eles não se veem como invasores. Esse é um dos primeiros pontos que eles faziam questão de colocar: eles sabem que são categorizados como invasores, mas não aceitam porque existe muito estigma”, afirmou.
Apesar da dificuldade para manter contato com esse grupo, Oliveira, em um momento de andanças pelo Coraci, ouviu um relato importante a fim de entender essas pessoas. O antropólogo pegou carona em um barco com um vereador, que precisava fazer uma parada para uma reunião na comunidade Ebenézer – essa comunidade se desligou do Coraci em 2007 para buscar ser reconhecida como território indígena. Lá, durante o almoço, uma pessoa que não o conhecia afirmou: “Eu dou razão para quem é invasor porque ninguém aqui tem uma criação com viveiro, por aqui, tudo é coisa de Deus. Os caras [os invasores] têm direito de tirar”.
Segundo Oliveira, a franqueza revelou-se essencial para que compreendesse um dos motivos a justificar as invasões. “Ele não teve pudor de falar. Não julgo se é certo ou errado. Ele disse o que estava pensando. E, para mim, foi extremamente importante ele ter essa posição porque talvez seja uma posição também coletiva. Só que as pessoas não vão falar disso para mim, falar que o peixe é da natureza e que, então, todo mundo tem direito de pegar.”
As concepções religiosas também integram o rol das questões investigadas por Oliveira em entrevistas com lideranças evangélicas e católicas. Segundo uma de suas hipóteses, se entre os católicos do Coraci há uma adesão massiva ao ideal de bem comum e de conservação ambiental, entre os protestantes evangélicos há uma adesão menor. Em suas interações, conta o pesquisador, ouviu muitas vezes os católicos acusarem os evangélicos de seguir a filosofia de “o que Deus deixou não acaba”. Portanto, para essas pessoas, não haveria necessidade de preservar a natureza. Além disso, constatou, a maioria dos homens evangélicos não integra o grupo de manejo.
No entanto, nas entrevistas realizadas, não houve registro desse tipo de opinião, talvez pelo fato de o autor da tese ter uma relação de parentesco com lideranças ligadas ao manejo, como Oliveira mesmo cogita. Além disso, “[os evangélicos] carregam vários estigmas negativos, inclusive em relação à conservação e ao manejo dos recursos. Então têm muita dificuldade de abordar o tema, que é muito delicado para eles”.
Laços prevalecem
Os debates em torno da invasão e das regras de manejo por vezes são acalorados. Um dos casos narrados pelo antropólogo diz respeito a um pescador que deixou de participar das atividades da associação por mais de seis meses e, portanto, acabou expulso após envolver-se em discussões em uma reunião.
Há também casos em que o pescador decide sair da associação por conta própria. Um dos entrevistados, por exemplo, contou a Oliveira ter se afastado devido ao excesso de burocracia envolvida no funcionamento do grupo.
Discussões acontecem também entre os próprios manejadores. O antropólogo cita, na tese, uma acusação feita entre colegas. “Tu anda com o arpão armado, na tua canoa. Não tô dizendo que tu arpoa pirarucu, mas eu já vi tu andar com o arpão armado”, disse um pescador a outro, dando a entender que o colega pescava pirarucu fora do manejo.
No entanto, mesmo os embates mais duros, afirma Oliveria, acabam arrefecendo devido às relações de parentesco e de vizinhança. “A coisa às vezes parece que vai explodir e gerar uma grande confusão e que ninguém mais vai conseguir se falar. Realmente ocorrem, às vezes, embates fortíssimos, mas eles vão se dissolvendo a partir de outras conexões, permeadas por essa relação de parentesco e vizinhança e também pela dependência, porque as pessoas dependem umas das outras por estarem naquele território”, resume.
O GRAFISMO DA SUSTENTABILIDADE


O conceito “grafismo da sustentabilidade” foi desenvolvido na tese para designar os diversos fios que compõem o ideal de conservação no Coraci. Na comunidade, há um grupo de mulheres que faz artesanato com talas (fibras naturais), formando grafismos. As peças inspiraram a formulação. A ideia de Oliveira, ao pensar nas diversas linhas que atravessam o território, baseia-se também nas formulações do antropólogo Tim Ingold.
No Coraci, explica o antropólogo, existem talas perpassando o ideal da sustentabilidade. As talas referem-se às ações institucionais e aos projetos que conectam instituições e pessoas, formando um teçume (palavra local para designar o trançado de fibras).
“Comecei a pensar teoricamente e refletir que o ideal da sustentabilidade foi construído. E como ele se constrói? Institucionalmente com estas duas grandes instituições: o Estado e a Igreja Católica. Primeiro chega a Igreja Católica com a ideia da ecologia e começa a tecer, pensando no grafismo, as primeiras talas em torno desse ideal de conservação que existe no Coraci.”
Nas ações da Igreja, conta, seu pai esteve diretamente envolvido, atuando na Pastoral da Criança e passando a ser uma referência na defesa da criação de uma reserva. Oliveira lembra de muitas reuniões que participou com a família na época e dos debates para a criação da RDS e ressalta que foram discussões acaloradas, com uma forte participação da comunidade e a liderança proeminente de seu pai.
A criação da reserva, afirma, também mostra a ação do Estado na região. “Aí vai se construindo esse grafismo da sustentabilidade. Na minha cabeça, existe um desenho, um grafismo tecido ali, formado a partir dessas instituições e das pessoas. Elas também foram tecendo esse grafismo da sustentabilidade, e hoje elas são o próprio grafismo.”


UM PEIXE VISTO COMO GENTE
A tese de Oliveira constitui um estudo multiespécie, em que seres humanos e seres não humanos figuram como protagonistas. Aos poucos, o pesquisador conta ter percebido que o peixe representava um elemento central da tese, ao lado dos pescadores. “Na dinâmica do conflito, estavam em embate os manejadores e os invasores e eu estava olhando só para eles. Mas, de repente, percebo que o pirarucu tem uma dinâmica própria e que ele não vai atender nem aos manejadores e nem aos invasores, mas sim à sua própria sobrevivência.”
Além disso, a forma como a comunidade fala do peixe indica a proximidade entre esse ser não humano e os seres humanos. “As pessoas falam do pirarucu como se ele fosse gente, colocando-o no mesmo nível da linguagem, como diz a [antropóloga] Manuela Carneiro Cunha.”
O pirarucu é considerado um ser inteligente, um “sujeito pensante e atuante”. Devido a isso, os manejadores, por exemplo, percebem, observando o comportamento do peixe, ter havido uma tentativa de pesca ilegal. “Eles [os peixes] ficam mais ariscos e arredios. O pirarucu se mostra muito devido à necessidade de vir respirar fora da água. Se um pescador perseguiu o pirarucu e os outros peixes perceberam, eles vão ficar mais longe”, conta.