
Entre presas e predadores
Estudo demonstra como interações entre mamíferos foram determinantes para a extinção e a evolução de espécies

Entre presas e predadores
Estudo demonstra como interações entre mamíferos foram determinantes para a extinção e a evolução de espécies

Um dos maiores predadores que já existiu entre os mamíferos, o tigre-dentes-de-sabre conseguia caçar animais que o superavam em peso e altura, graças a seu imponente par de caninos. Embora a escassez de alimentos fosse a teoria mais aceita, na academia, para explicar o desaparecimento dessa espécie, faltava testá-la. Coube ao biólogo João Claudio Nascimento, em um estudo que integrou sua pesquisa de doutoramento em ecologia, mostrar que a falta de alimento pode ter impactado, ao longo de milhões de anos, não apenas as espécies mais recentes de dentes-de-sabre, mas todo o grupo do predador.
A pesquisa, realizada no Laboratório de Interações e Dinâmica da Diversidade do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, contou com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e orientação do biólogo Mathias Pires, professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia do IB, integrando uma de suas linhas de investigação (dedicada ao estudo das interações ecológicas capazes de moldar os padrões de diversidade e evolução dos animais).
O objetivo de Nascimento, no doutorado, consistiu em analisar os fatores envolvidos na extinção e na diversificação de diferentes grupos de mamíferos, no decorrer de milhões de anos. Para tanto, o pesquisador aliou análises quantitativas de ocorrências de fósseis com o estudo sobre as mudanças ambientais ocorridas em seus habitats, no período em que viveram. Obtidos esses dados, investigou quais fatores determinaram o risco de extinção e a probabilidade de especiação (surgimento de novas espécies) em cada grupo, ao longo do tempo.
Repercussão internacional
Três dos estudos desenvolvidos pelo pesquisador deram origem a artigos publicados por periódicos científicos internacionais. Além da análise sobre os 15 milhões de anos de evolução dos tigres-dentes-de-sabre, divulgada pelo Journal of Evolutionary Biology, Nascimento viu publicado, no periódico Evolution, o estudo sobre a influência das mudanças ambientais, dos predadores e dos competidores na história evolutiva da família dos Antilocapridae – um grupo de herbívoros. Já a Ecology Letters divulgou o trabalho sobre as mudanças nas redes de interação entre predadores e presas ao longo de 20 milhões de anos, um trabalho realizado em parceria com pesquisadores espanhóis.
“Por muito tempo, discutiu-se na literatura científica como a relação entre predadores e presas poderia moldar a diversidade. Porém nenhum estudo havia testado os efeitos dessas interações sobre grandes padrões evolutivos, seja de surgimento de espécies, seja de perda de diversidade. Esses três trabalhos fazem isso”, observou Pires. Na opinião do professor, a pesquisa permite entender melhor o funcionamento do planeta e a evolução da biodiversidade. “O resultado, mostrando que o efeito da perda de presas pode deixar marcas na diversidade de um grupo de animais em uma escala de tempo de milhões de anos, além de atingir proporções continentais, é inédito.”


Os três estudos
O primeiro dos três estudos publicados, feito com base em fósseis de diversas espécies de mamíferos, presas e predadores coletados em sítios paleontológicos espalhados pela península Ibérica, envolveu uma parceria com os pesquisadores Fernando Blanco (University of Gothenburg, da Suécia), Juan Cantalapiedra (Museo Nacional de Ciencias Naturales, da Espanha) e Soledad Domingo (Universidad Complutense de Madrid, também da Espanha). A partir da análise dos dados, observou-se que, à medida que o número de presas diminuía, a probabilidade de extinção entre os predadores crescia. Indicando, portanto, a importância das interações entre os animais que viviam na área para moldar os padrões de extinção, em um período de 20 milhões de anos.
A fim de reconstruir a história evolutiva dos dentes-de-sabre, o agora doutor em ecologia estudou fósseis de mais de 40 espécies do felino e de mamíferos que seriam suas presas. O trabalho teve como foco espécies que viveram na América do Norte e na Eurásia em um período de 15 milhões de anos, o que lhe permitiu observar a evolução do grupo como um todo, ao longo do tempo. Também foram examinadas as mudanças ambientais registradas nessas regiões e a disponibilidade de presas, no mesmo intervalo de tempo.
Segundo a hipótese mais aceita, o desaparecimento das espécies mais recentes do predador decorreu da extinção de mamíferos da megafauna, a base de sua dieta. O biólogo utilizou um modelo matemático de cálculo de proporções de tamanho corpóreo para estimar a quantidade de presas existentes no momento em que houve o desaparecimento do predador. O resultado obtido indicou haver uma conexão entre a redução no número de presas disponíveis e o desaparecimento de diferentes espécies de dentes-de-sabre. “Encontramos fortes evidências, na América do Norte, que estão de acordo com aquela hipótese, e isso parece se estender ao grupo como um todo, não somente às espécies mais recentes.”
Para explorar a questão sob a perspectiva das presas, no próximo estudo, Nascimento testou os fatores associados à especiação e à extinção da família Antilocapridae, dividida em dois subgrupos e que habitou a América do Norte por milhões de anos. Merycodontinae era o subgrupo mais antigo, que começou a entrar em declínio há 13 milhões de anos. Esse grupo reunia animais que se alimentavam de plantas e habitavam ambientes mais fechados. Em seu lugar, surgiu o Antilocaprinae, composto de mamíferos de pastagem, de áreas abertas. Não fosse por uma única espécie remanescente, o antilocapra (ou antílope-americano), estariam hoje completamente extintos.
Dessa vez, a análise compreendeu também a evolução de potenciais predadores e competidores, a oscilação na população de espécies existentes e as taxas de especiação e extinção. O biólogo considerou, ainda, alterações de temperatura e mudanças na composição da vegetação. O resultado evidenciou haver uma relação entre a redução dos ambientes florestais e a extinção dos Merycodontinae. Nascimento notou, por outro lado, que o momento no qual as gramíneas passaram a dominar a região, há cerca de 10 milhões de anos, coincidiu com a chegada e diversificação dos Antilocaprinae. “As alterações climáticas ocorridas na época transformaram o ambiente onde viviam, afetando seu processo evolutivo.” Com a proliferação de espécies do subgrupo mais recente, o risco de extinção dos Merycodontinae se ampliou.

Nascimento ainda conduziu uma análise envolvendo o antilocapra e o extinto guepardo-americano – um felino que viveu entre 2,5 milhões e 16 mil anos na América do Norte, de características físicas semelhantes às do guepardo que habita a África atualmente. “O antilocapra é o segundo mamífero mais rápido do mundo. Perde apenas para o guepardo africano. Por muito tempo, questionou-se quem seria seu predador, pois há uma relação entre quão veloz é a presa e a velocidade máxima que seu predador consegue atingir”, esclarece, lembrando que, nos dias atuais, não existem predadores capazes de alcançar o último dos Antilocapridae na América do Norte.
O registro fóssil de uma espécie de guepardo-americano, encontrado nos anos 1970, forneceu evidências de que também se tratava, nesse caso, de um corredor de alta velocidade que perseguia presas rápidas. “No mesmo momento em que começou o declínio dos Antilocaprinae, aumentou a diversidade da subfamília de felídeos de que faz parte o guepardo-americano. Encontramos evidências de que esse crescimento contribuiu para o risco de extinção da presa. Por algum motivo, o antilocapra sobreviveu; já o guepardo-americano, não. Mas as interações parecem ter sido uma das razões por trás do desaparecimento da maior parte dos antilocaprídeos mais recentes.”