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A arte multiplicadora de um chinês no Brasil

Jornalista reconstitui trajetória de artista asiático que morou por quase 20 anos em Mogi das Cruzes

A arte multiplicadora de um chinês no Brasil

O pintor chinês Zhang Daqian, conhecido como o “Picasso da China", em sua casa na zona rural da cidade paulista de Mogi das Cruzes: águas de barragem inundaram Jardim das Oito Virtudes
O pintor chinês Zhang Daqian, conhecido como o “Picasso da China”, em sua casa na zona rural da cidade paulista de Mogi das Cruzes: águas de barragem inundaram Jardim das Oito Virtudes

Jornalista reconstitui trajetória de artista asiático que morou por quase 20 anos em Mogi das Cruzes

O pintor chinês Zhang Daqian, conhecido como o “Picasso da China", em sua casa na zona rural da cidade paulista de Mogi das Cruzes: águas de barragem inundaram Jardim das Oito Virtudes
O pintor chinês Zhang Daqian, conhecido como o “Picasso da China”, em sua casa na zona rural da cidade paulista de Mogi das Cruzes: águas de barragem inundaram Jardim das Oito Virtudes

“Como um personagem tão importante e ilustre morou aqui, mas eu nunca ouvi falar sobre ele?” Essa a pergunta que o jornalista Guilherme Gorgulho se fez em 1997, quando, ainda na graduação, descobriu a existência do pintor chinês Zhang Daqian. Conhecido no Ocidente e na América Latina como o “Picasso da China”, Zhang morou por quase duas décadas na cidade paulista de Mogi das Cruzes, onde Gorgulho nasceu e cresceu. Entretanto, apesar de ter tido uma vida artística bastante prolífica nesse período, o artista continua a ser um desconhecido para a maioria dos brasileiros.

Intrigado com esse fato, Gorgulho passou os últimos 25 anos investigando a vida e a obra de Zhang e colhendo um extenso material que resultou em diversas reportagens sobre o pintor. Agora, na tentativa de cobrir lacunas e incorreções sobre o período em que o artista esteve por aqui, o jornalista acaba de defender uma tese de doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. No trabalho, o autor mostra que a presença do chinês no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970 promoveu um importante intercâmbio cultural entre os dois países, com reflexos perceptíveis ainda hoje.

Anjo em estilo clássico chinês, obra de 1952: artista expôs em grandes museus no Brasil e no exterior
Anjo em estilo clássico chinês, obra de 1952: artista expôs em grandes museus no Brasil e no exterior
Anjo em estilo clássico chinês, obra de 1952: artista expôs em grandes museus no Brasil e no exterior
Anjo em estilo clássico chinês, obra de 1952: artista expôs em grandes museus no Brasil e no exterior

Segundo o pesquisador, que trabalha no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade, há uma percepção de que Zhang acabou deixado de lado pela historiografia brasileira porque não falava português e morava isolado em seu jardim, construído na área rural de Mogi das Cruzes. No entanto, durante seus estudos, o autor da tese percebeu que apareceram muitas reportagens sobre o artista na mídia brasileira dos anos 50, 60 e 70, além de ter ocorrido uma importante quantidade de exposições com suas obras. “Ele teve uma interação muito grande com o cenário artístico brasileiro, como críticos de arte, mecenas, curadores e jornalistas, que perceberam a importância dele e noticiaram as exposições que fez por aqui”, afirmou Gorgulho.

Para se ter uma ideia, entre 1960 e 1973, Zhang expôs, com grande repercussão, em espaços nobres de grandes capitais brasileiras, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), a Bienal de São Paulo, o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) do Rio de Janeiro. Personagens brasileiros de renome, como o jornalista Assis Chateaubriand, compraram suas obras e as doaram para museus e galerias do país. Além disso, durante todo esse tempo, o artista realizou inúmeras viagens para a Europa e os Estados Unidos, organizando exposições e vendendo suas pinturas nesses locais.

“Zhang era uma pessoa muito ativa. Eu pesquiso sobre ele há 25 anos e só agora, depois de enviar a tese para a banca, encontrei duas exposições das quais nunca tinha ouvido falar”, contou o jornalista, que levantou dados em hemerotecas, arquivos de jornais e fontes primárias de várias cidades do mundo. Além de Mogi das Cruzes, Campinas, São Paulo, Porto Alegre, Olinda e Rio de Janeiro, o pesquisador visitou Buenos Aires, Mendoza e Godoy Cruz, na Argentina, Hong Kong, Macau, Chengdu, Dujianyang e Neijiang, na China, Taipé, em Taiwan, e Princeton, nos Estados Unidos. Gorgulho também realizou levantamentos remotos em acervos digitais de Salvador (BA), Paris (França), Colônia (Alemanha), Berna (Suíça), Montreal (Canadá), Lisboa (Portugal) e Madri (Espanha), bem como entrevistas com 45 pessoas.

De acordo com o estudo, somente após a saída de Zhang do Brasil, em 1973, os rastros de sua presença no país desapareceram. Como resultado, hoje, apenas dois museus – a Pinacoteca Ruben Berta, em Porto Alegre, e o Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Pernambuco, em Olinda – contam com quadros do artista, embora Zhang tenha produzido milhares de obras durante os 19 anos que esteve aqui. O mais curioso: as duas pinturas haviam sido esquecidas nas reservas técnicas dos dois institutos de arte, sem informações de autoria, até o pesquisador contatá-los.

Em 2003, Gorgulho leu em reportagens antigas que alguns quadros de Zhang haviam sido doados para esses museus, mas ambos afirmaram, então, não possuir obras do artista. Na época, a instituição de Porto Alegre informou que havia um quadro de um pintor oriental cuja autoria desconhecia. Com as orientações do jornalista, fez-se possível identificar a pintura. E somente em 2018, quando o pesquisador tentou um novo contato, o museu de Olinda confirmou, após receber uma foto enviada por Gorgulho, possuir uma obra do chinês. “Isso demonstra um pouco do apagamento de Zhang. Esse quadro vale US$ 800 mil, é um dos mais valiosos do acervo e estava havia décadas pegando poeira”, disse.

O jornalista Guilherme Gorgulho, autor da tese: Zhang ainda é um desconhecido para a maioria dos brasileiros
O jornalista Guilherme Gorgulho, autor da tese: Zhang ainda é um desconhecido para a maioria dos brasileiros
O jornalista Guilherme Gorgulho, autor da tese: Zhang ainda é um desconhecido para a maioria dos brasileiros
O jornalista Guilherme Gorgulho, autor da tese: Zhang ainda é um desconhecido para a maioria dos brasileiros

Um erudito profissional

Apesar da vasta produção artística de Zhang, Gorgulho defende que o ponto mais relevante da pesquisa consistiu em demonstrar o efeito multiplicador da presença, no país, desse artista, responsável por atrair outros imigrantes que também contribuíram para a cultura brasileira. Um deles, o jornalista Wang Zhiyi, mudou-se para o Brasil em 1957, tornando-se o fotógrafo oficial do artista e, em 1960, com o patrocínio de seu amigo, fundou o primeiro jornal de língua chinesa do território nacional. Outro, o artista plástico Sun Chia Chin, veio para o Brasil como discípulo de Zhang e mais tarde se tornou um dos fundadores do curso de língua e literatura chinesa da Universidade de São Paulo (USP).

“Zhang também foi sócio de empresas com outros chineses. Ele era um gourmet, gostava de cozinhar e de cultuar a alta gastronomia e trouxe vários cozinheiros que depois montaram restaurantes no país”, contou o jornalista, para quem as motivações financeiras tiveram grande influência nas escolhas de vida do pintor. Embora o artista se apresentasse como um erudito cuja prática artística buscava apenas manifestar sua vontade interna e, portanto, encontrava-se desvinculada das necessidades cotidianas – o que na história chinesa se diferencia da arte profissional, com fins comerciais –, o pintor tinha a consciência de que possuía uma família muito grande para sustentar.

Ao todo, Zhang, seguindo uma tradição herdada da China Imperial, teve 17 filhos e quatro esposas, embora só tenha trazido uma esposa e sete filhos para o Brasil. Aqui, essa história ganhou ares de exagero, a ponto de as pessoas acreditarem que qualquer mulher da família, como as noras e as filhas mais velhas, fosse sua parceira, uma imagem cultivada por Zhang, ciente de que isso lhe dava espaço na mídia. “Ele tinha um custo de vida muito elevado, era muito excêntrico nos gostos, se vestia como um erudito da Dinastia Song [século 10] e não poupava recursos para conseguir o que queria, chegando a pagar valores altos para trazer bonsais muito antigos do Japão”, afirmou o jornalista.

Zhang Daqian em um dos espaços do jardim por ele projetado: artista não deixou rastros depois de sair do país, em 1973
Zhang Daqian em um dos espaços do jardim por ele projetado: artista não deixou rastros depois de sair do país, em 1973
Zhang Daqian em um dos espaços do jardim por ele projetado: artista não deixou rastros depois de sair do país, em 1973
Zhang Daqian em um dos espaços do jardim por ele projetado: artista não deixou rastros depois de sair do país, em 1973

Essas peculiaridades contribuíram para que Zhang buscasse o mercado de arte europeu, que na época estava se abrindo para a China, e a manter relações com empresários de outros ramos, mostrando ser uma ilusão a ideia de que se isolou no Brasil. No país, o artista também ampliou seu leque estilístico, criando um gênero inspirado na arte ocidental, com tintas esparramadas que se aproximavam do expressionismo abstrato, especialmente após sofrer um acidente que prejudicou sua visão. Embora não defendesse a comparação com Pablo Picasso, tampouco a contraditava, pois isso lhe dava visibilidade no Ocidente. O chinês, mais de uma vez, mostrou reportagens que se valiam dessa alcunha a jornalistas que o visitavam.

Nos últimos anos, devido ao crescimento do mercado de arte chinesa, Zhang se tornou um dos artistas que mais se valorizaram no mundo, e o valor de venda de suas obras o coloca entre os dez mais dispendiosos em rankings internacionais. Para Gorgulho, o resgate de histórias como essa mostra-se essencial para que a população brasileira amplie seu olhar em relação à cultura chinesa – um país de grande interesse para o Brasil –, ajudando a criar laços para além do comércio. “A China vai continuar em ascensão e não vamos conseguir o tipo de relação fundamental para o país se não aprofundarmos essa conexão. O chinês tem características muito parecidas com as nossas. Trata-se de um povo receptivo, alegre, que valoriza muito a cultura. Então podemos superar alguns estigmas distorcidos a respeito dos chineses”, argumentou.

Com a tese finalizada, o pesquisador busca agora atingir um público mais amplo. Como parte desses esforços, Gorgulho deve concluir um livro de divulgação sobre a história de Zhang que havia iniciado antes do doutorado. O jornalista também deseja organizar uma exposição individual com as obras do artista, o que não acontece desde que o pintor saiu do Brasil, na década de 1970. No momento, Gorgulho cumpre os trâmites para disponibilizar, em plataformas de streaming brasileiras, o documentário Da Cor e da Tinta, no qual trabalhou como produtor e consultor. Realizado pela cineasta sino-americana Weimin Zhang, o filme relata o percurso criativo e espiritual do artista ao longo de três décadas, por meio de entrevistas e da divulgação de materiais de arquivo inéditos.

IMITAÇÃO DE ESTILOS DE MESTRES DE DINASTIAS RENDEU FAMA

Zhang Daqian (1899-1983) foi um pintor, calígrafo, poeta e colecionador de arte chinês que ganhou bastante notoriedade ainda em seu país de origem. Desde muito cedo, na década de 1930, fez sucesso com pinturas originais inspiradas na técnica tradicionalista chinesa, conseguindo alcançar fama devido a sua incrível capacidade de imitar estilos de mestres de dinastias antigas. Isso era visto como um grande mérito por seus conterrâneos, pois, segundo o pensamento chinês, a cópia e a imitação de grandes mestres desempenham um papel fundamental no período formativo de um pintor. Em 1949, por não concordar com os ideais da Revolução Comunista Chinesa, liderada por Mao Tsé-Tung, mudou-se da China, passando um período na Índia e em Hong Kong, antes de migrar para a América do Sul.

Em 1954, após passar cerca de um ano e meio na Argentina, Zhang chegou ao Brasil, radicando-se em Mogi das Cruzes. Ali, comprou um sítio de 230 mil metros quadrados, onde construiu, no estilo arquitetônico chinês, a casa de sua família, um ateliê e o seu Jardim das Oito Virtudes, uma grande obra paisagística com plantas, pedras e lagos. O nome remete a um conto da época da Dinastia Tang (618-907) segundo o qual o caquizeiro, árvore abundante na cidade paulista, possui sete virtudes importantes: ter uma longa vida útil, prover bastante sombra, não atrair ninhos de aves, não atrair insetos, ter uma bela aparência após uma geada, dar uma fruta deliciosa e fornecer folhas boas para a prática da caligrafia. A essa lista, Zhang adicionou uma oitava virtude: a infusão de suas folhas teria a capacidade de curar dores de estômago.

Durante o período no país, o artista produziu milhares de obras, orientou discípulos, realizou exposições, viajou ao exterior e financiou empreendimentos de conterrâneos chineses. Embora não seja possível dizer que a arte brasileira o tenha influenciado diretamente, a vida no país serviu de inspiração para muitas de suas obras, que reproduzem os cenários e a natureza daqui. A princípio, planejava passar o resto da vida no Brasil. No entanto, no final dos anos 1960, houve a notícia de que o Jardim das Oito Virtudes seria desapropriado para dar lugar à barragem do Rio Jundiaí, o que o fez deixar a cidade.

Em 1973, mudou-se para os Estados Unidos e, três anos mais tarde, voltou para Taiwan, onde viveu até sua morte, sem nunca ter retornado à China. Em 1989, as águas inundaram finalmente seu jardim. Os vestígios da época em que morou por lá só podem ser vistos em períodos de estiagem. “O que ele fez nesse jardim não foi uma coisa trivial. Ele investiu muito dinheiro, dedicou muito tempo, selecionou as pedras e as plantas cuidadosamente. Então, ele ficou muito desgostoso com essa notícia e percebeu que era um momento oportuno para se mudar para a Califórnia, onde já havia um mercado de arte estabelecido”, afirma Gorgulho.

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