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O direito a ter um nome para chamar de seu

Pesquisadora investiga e percorre caminhos feitos por pessoas trans e travestis nos processos de nomeação

A então presidente Dilma Rousseff assina decreto, em abril de 2016, que instituiu e reconheceu a identidade de gêneros de travestis e transexuais na administração pública direta e indireta: falta de um sistema integrado é um dos obstáculos
A então presidente Dilma Rousseff assina decreto, em abril de 2016, que instituiu e reconheceu a identidade de gêneros de travestis e transexuais na administração pública direta e indireta: falta de um sistema integrado é um dos obstáculos

O direito a ter um nome para chamar de seu

A então presidente Dilma Rousseff assina decreto, em abril de 2016, que instituiu e reconheceu a identidade de gêneros de travestis e transexuais na administração pública direta e indireta: falta de um sistema integrado é um dos obstáculos
A então presidente Dilma Rousseff assina decreto, em abril de 2016, que instituiu e reconheceu a identidade de gêneros de travestis e transexuais na administração pública direta e indireta: falta de um sistema integrado é um dos obstáculos

Pesquisadora investiga e percorre caminhos feitos por pessoas trans e travestis nos processos de nomeação

O nome nos apresenta ao mundo, mas pessoas trans e travestis ainda travam uma batalha constante para serem reconhecidas pelo nome que escolheram. A partir da experiência vivida na própria pele, a travesti Elis Rosa dos Santos Simão decidiu investigar, em sua dissertação, intitulada “Retificado seja o vosso nome: uma etnografia sobre processos de nomeação na vida de pessoas trans e travestis”, os caminhos burocráticos, políticos e subjetivos que envolvem o uso do nome social e a retificação de nome e gênero no registro civil.

Nome social é a designação pela qual pessoas trans, travestis e não binárias podem optar, em conformidade com sua identidade de gênero autopercebida, ainda que esse nome não conste oficialmente de seus documentos. Já a retificação de nome e gênero diz respeito ao processo legal de alteração do prenome e do marcador de gênero nos registros civis, um direito garantido desde 2018 no Brasil. “Esses são dois caminhos distintos, com impactos diferentes na vida das pessoas trans e travestis”, conta Elis Rosa.

Realizado em sua pós-graduação em antropologia social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), o estudo parte da trajetória da pesquisadora para compreender como o nome pode oferecer uma chave de acesso não só à cidadania, mas também a um campo de disputas. “Assim como minhas interlocutoras, eu também tive de passar por um processo de gestação de nome, pela utilização do nome social, depois pela retificação. Cada etapa tem seus desafios, suas conquistas e suas potências”, conta.

Docente Isadora Lins França, que orientou a pesquisa: relato da autora abre frentes de reflexão crítica
Docente Isadora Lins França, que orientou a pesquisa: relato da autora abre frentes de reflexão crítica
Docente Isadora Lins França, que orientou a pesquisa: relato da autora abre frentes de reflexão crítica
Docente Isadora Lins França, que orientou a pesquisa: relato da autora abre frentes de reflexão crítica

Isadora Lins França, docente do IFCH e orientadora do mestrado, explica que o relato da autora, ao integrar a pesquisa, possibilita uma reflexão crítica sobre os processos estudados: “Ela é pesquisadora e também sujeito da experiência. Isso vem da antropologia, mas também da teoria feminista e transfeminista, que considera o conhecimento que se produz como algo não separado totalmente da pessoa que produz o conhecimento”.

A dissertação dialoga com a trajetória de quatro ativistas trans e travestis: Neon Cunha, Carolina Iara, Erika Hilton e Pedro Ferreira. “Todos passaram pelo uso do nome social e pela retificação em algum momento. Isso é algo que nos atravessa, mas que não nos iguala. Cada pessoa parte de uma realidade – de raça, classe, religião, geração – para acessar esse direito”, disse Elis Rosa.

De acordo com o estudo, a retificação documental, mesmo após uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2018 autorizando a mudança por autodeclaração nos cartórios, ainda enfrenta uma série de obstáculos. “É preciso ter uma noção de direito ou, caso encontre obstáculos nesse procedimento, a pessoa requerente precisa investir ainda mais dinheiro, contratando uma advogada. Dada essas complexidades, muitas dessas pessoas desistem, no meio do caminho, da busca por esse direito”, relata.
A dissertação também evidencia a transfobia institucional, como no caso de uma jovem travesti que Elis Rosa acompanhou e que, mesmo após iniciar o processo de retificação, foi tratada no masculino durante o atendimento em um cartório.

Outro ponto sensível abordado no mestrado é o que a pesquisadora chama de “lógica da suspeição”. “Mesmo sendo um direito garantido por autodeclaração, somos tratadas com desconfiança. É como se fôssemos menos idôneas, como se nossa identidade fosse uma farsa.” Segundo França, “essa é uma lógica que atravessa muitos processos administrativos do Estado, usada para filtrar direitos. Mas, quando recai sobre o sujeito e não apenas sobre os documentos, essa suspeição reforça a deslegitimação moral dessas pessoas. A pessoa trans, nesse contexto, é tratada como menos crível, menos humana”.

Retificação ou morte

O caso de Neon Cunha, uma de suas interlocutoras da pesquisa, é representativo. Em 2016, Neon ingressou com uma ação judicial pedindo a retificação de nome e gênero sem apresentar laudos ou passar por cirurgias – exigências comuns à época. Como pedido subsidiário, solicitou o direito à morte assistida caso o Estado não reconhecesse seu nome e identidade.

“Ela tensionou os limites do direito. Preferia morrer a viver sem reconhecimento. Isso diz muito sobre o que está em jogo quando se nega a uma pessoa o direito de ser quem é”, analisa Elis Rosa. A estratégia política de Neon contribuiu para impulsionar o debate público que resultaria, dois anos depois, na decisão tomada pelo STF.

Apesar dos avanços, a autora considera a retificação apenas o começo e ressalta que os processos seguintes ainda precisam ser aprimorados. “Depois de pegar a nova certidão [de nascimento], é preciso correr atrás de mudar nome e gênero em cada instituição – banco, universidade, Receita Federal. Não há um sistema integrado. É um calvário.”

Elis Rosa compartilhou com a reportagem a dimensão espiritual e afetiva do processo envolvendo a escolha de seu nome: “O meu primeiro nome, Elis, me escolhe. Já o meu segundo nome, Rosa, foi inspirado na e dedicado à minha bisavó, minha professora da graduação e minha entidade espiritual”.

Elis Rosa dos Santos Simão, autora da dissertação: abordando a “lógica da suspeição” e a transfobia institucional
Elis Rosa dos Santos Simão, autora da dissertação: abordando a “lógica da suspeição” e a transfobia institucional
Elis Rosa dos Santos Simão, autora da dissertação: abordando a “lógica da suspeição” e a transfobia institucional
Elis Rosa dos Santos Simão, autora da dissertação: abordando a “lógica da suspeição” e a transfobia institucional

Interdisciplinaridade

A escolha da antropologia social como campo de investigação não se deu por acaso. Elis Rosa, apesar de graduada em direito, optou por mudar de área para tratar com mais liberdade das questões que envolvem gênero, subjetividade e experiência. “O direito é uma área ainda muito engessada. Por mais que existam juristas comprometidos com a pauta [das questões de gênero], há limites. Na antropologia, senti mais abertura para lidar com a complexidade dos meus temas de pesquisa”, afirma.

A dissertação de mestrado resulta de um diálogo interdisciplinar: “Eu não abandono o direito. Meu texto carrega uma precisão técnica que só consegui alcançar porque me graduei nessa área. Mas é na antropologia que pude trazer as experiências, as subjetividades, a corporalidade, o lúdico do que venho trabalhando”.

Elis Rosa tornou-se a primeira travesti negra a ingressar no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Unicamp por meio da política de cotas para pessoas trans, fazendo de sua presença na Universidade um fato histórico. Esse fato, por outro lado, revela o abismo da exclusão. De acordo com França, “há 0,3% de pessoas trans nas universidades, segundo um estudo do Gemaa [Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa], da Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro]. Estamos falando de uma população cuja expectativa média de vida no Brasil é de 35 anos. As políticas de ação afirmativa na modalidade de cotas e as políticas de permanência na universidade para pessoas trans e travestis, uma vez garantido o ingresso, são centrais para que possamos reverter um pouco esse cenário de exclusão”.

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