Nelson Rodrigues e o Brasil como ele é
Tese aponta como dramaturgo criou uma linguagem que reflete os paradoxos e as contradições da formação nacional

Nelson Rodrigues e o Brasil como ele é

Tese aponta como dramaturgo criou uma linguagem que reflete os paradoxos e as contradições da formação nacional
tensão tomava conta do Teatro Municipal do Rio de Janeiro naquela noite de 28 de dezembro de 1943. O público, que havia meses lia nos jornais críticas entusiasmadas antecipando o novo espetáculo, não sabia o que esperar daquela estreia. Por trás das cortinas, um elenco igualmente ansioso se concentrava para dar vida à montagem do diretor polonês Zbigniew Ziembinski. A tarefa não seria das mais convencionais. Os exaustivos ensaios se estenderam por meses e a concepção da peça exigiu todo um trabalho inovador de cenografia e iluminação. O esforço fez-se necessário porque estariam juntas em cena a realidade, a alucinação e a memória de Alaíde – protagonista da peça “Vestido de noiva” –, em um recurso estético inédito até aquele momento.
Três atos se sucederam e, ao final do espetáculo, o teatro veio abaixo em aplausos e êxtase. A plateia não sabia, mas estava celebrando o nascimento de um novo paradigma das artes dramáticas brasileiras. Nas sombras de um dos camarotes, o idealizador dessa dramaturgia combinava o êxtase do sucesso com a frustração de não estar sob os holofotes naquele momento. Segundo a biografia escrita pelo jornalista Ruy Castro, ninguém do elenco, da equipe técnica ou da direção da peça pensou em chamar atenção para a presença, no teatro, de Nelson Rodrigues. Conforme relatos do próprio dramaturgo, ele se sentiu “um marginal na própria glória”.
Esse paradoxo, o de “ser um marginal na própria glória”, tornou-se uma marca de toda a obra do dramaturgo. Dono de um olhar mordaz acerca da sociedade brasileira, Nelson fez de pessoas comuns seus heróis, do subúrbio carioca e da intimidade dos lares, o seu palco e da tensão entre as amarras e convenções morais e os mais sórdidos desejos reprimidos, a matéria para a construção de suas “tragédias à brasileira”, conceito formulado por Mariana Toledo Borges, agora doutora em teoria e história literária pela Unicamp, para interpretar o conjunto da obra teatral do autor. Uma obra surgida no momento em que dramaturgos modernos europeus, como o dinamarquês Henrik Ibsen e o alemão Bertold Brecht, operavam uma desconstrução do gênero.


As características do teatro de Nelson Rodrigues mostraram-se inovadoras não apenas da perspectiva das artes dramáticas. Suas obras oferecem uma leitura crítica sobre a formação da sociedade e, embora marcadas pelo conservadorismo, tiram os espectadores do conforto da poltrona, fazendo-os pensar sobre o quanto o arcabouço moral da família tradicional brasileira, que não se sustenta a portas fechadas, revela a respeito de um país onde persiste um tipo de provincianismo conservador. Essa é a interpretação de Borges, que, em sua pesquisa de doutorado, analisa de forma minuciosa a obra teatral de Nelson Rodrigues, buscando compreender os traços da sociedade e da cultura brasileira sedimentados no gênero trágico. A pesquisa contou com a orientação do professor Fabio Akcelrud Durão.
Todo brasileiro será castigado
O universo rodriguiano nu e cru inspira-se na realidade experimentada pelo próprio dramaturgo. Nascido em 1912 no Recife (PE), Nelson Rodrigues foi o quinto dos 14 filhos do casal Mario Rodrigues e Maria Esther. Em 1916, a família transferiu-se para a Zona Norte do Rio de Janeiro. No subúrbio carioca, Nelsinho cresceu em meio à pobreza, à proximidade dos vizinhos que ora se ajudavam, ora invadiam a privacidade alheia, e à morte, desde a de filhos de vizinhos que não resistiam aos primeiros dias de vida até a das milhares de vítimas da gripe espanhola, em 1918. Pelo olhar de criança, desde cedo, percebeu que a vida do brasileiro médio, suburbano, discrepava do sonho prometido pela modernidade.
Ao longo dos anos, Mario Rodrigues conseguiu se estabelecer na imprensa carioca, primeiro como jornalista no Correio da Manhã e, depois, como dono dos diários A Manhã e Crítica. Além de darem estabilidade à família, os empreendimentos levaram os filhos ao jornalismo, como ocorreu com o futuro dramaturgo e com seu irmão Mario Filho, que modernizou a imprensa esportiva do país e virou o nome oficial do Estádio do Maracanã. Porém, até os anos 1930, Nelson e a família sofreriam uma série de reveses, entre os quais o assassinato do irmão Roberto, a morte do pai e o fechamento da Crítica pelo regime do presidente Getúlio Vargas – sem falar das várias vezes em que o então jovem precisou de atenção médica devido a uma tuberculose recorrente.


Buscando um meio para conseguir pagar as contas e aproveitando o repertório acumulado nos anos de jornalismo, Nelson se aventurou no universo do teatro, até então dominado pelas comédias leves de influência francesa e pelo teatro de revista. Antes do sucesso de “Vestido de noiva” (1943), escreveu “A mulher sem pecado” (1941), que teve uma recepção morna por conta da montagem feita na época. Seu esforço por sustentar-se apareceria muitas vezes refletido no enredo de vários de seus personagens. Dentro dessa jornada, estariam presentes arquétipos brasileiros que carregam em si dualidades, como o “canalha brocha”, as “tias solteironas recalcadas”, a “grã-fina de passeata”, a “adúltera honesta” e a “prostituta virtuosa” – explicitando paradoxos. “Percebi que há uma ideia de Brasil submersa nesses diálogos [das obras], que basicamente se resume no atrito violento de opostos que não se conciliam, levando à catástrofe trágica”, comenta Borges.
Nelson Rodrigues escreveu suas peças em um tempo de intensa produção intelectual voltada a compreender o país, sua formação e sua identidade, algo latente na intelectualidade brasileira desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Nesse contexto surgiram obras como o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade, Casa Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda, que embasaram nossa formação sócio-histórica e estética e a formação de críticos como Antonio Candido e Roberto Schwarz.
O autor de “Vestido de noiva”, entretanto, diverge de seus contemporâneos ao encarar a modernidade com profundo pessimismo. “Nelson está em desacordo com o pensamento modernista da época, que se entusiasmava com a ideia de ‘país do futuro’ e com uma suposta ruptura em relação à paternidade europeia rumo a um suposto progresso”, detalha a pesquisadora. Pelo contrário, seu universo deixa-se dominar por tipos que revelam a tortuosa formação da sociedade brasileira, marcada pelo provincianismo e pela convivência ilógica de antagonismos, levando o escritor a criar uma forma trágica ímpar. Ainda que conservador em seu pessimismo diante da modernidade, Nelson não deposita esperança na tradição, nem na tradição moral, nem na estética. Para o dramaturgo, surgimos de forma torta e estamos fadados à derrocada. “Trata-se de uma postura única, muito singular. Não é nem mesmo possível dizer que Nelson faz uma crítica enfática contra tudo isso.”
Tragédia de família
Dois temas atravessam constantemente a obra de Nelson Rodrigues: o sexo, operado como um tipo de metáfora para os impulsos humanos reprimidos pelas convenções morais, e a obsessão pela morte, selando o destino trágico de seus personagens. Assim, o dramaturgo aborda relações incestuosas, como em “Álbum de família” (1946), as diversas facetas de um bicheiro influente em “Boca de Ouro” (1959) ou ainda o desejo de subir na vida por meio do casamento em “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” (1962).
Apesar de tratar de personagens marginais, as peças rodriguianas convergem para a tragédia, gênero consagrado desde o teatro grego e no qual há a presença de temas ao mesmo tempo locais e universais e heróis com falhas de caráter responsáveis por levá-los à derrocada. Porém a tragédia do autor brasileiro adiciona uma camada de sentido ao gênero tradicional quando cria a mitologia do brasileiro suburbano. “Nelson constrói personagens que agem heroicamente, mas que habitam a periferia do capitalismo. Que são moralistas, mas também assassinos”, explica a pesquisadora.

Borges defende que Nelson Rodrigues monta uma “tragédia à brasileira”, inserindo em seus enredos e personagens traços típicos de nossa sociedade. “Independentemente da montagem feita ou do universalismo de temas, há uma dinâmica de brasilidade que permanece.” Além das contradições internas dos personagens, o autor trabalha com os contrastes sociais do Rio de Janeiro da época, que perduram até hoje. Os tipos provincianos e moralistas do Méier e da Tijuca se contrapõem a figuras de elite da Zona Sul, supostamente cosmopolita e liberal.
Ainda que lançando um olhar acurado para as contradições sociais e morais do país, Nelson, segundo deixa claro a pesquisa de Borges, não pretende construir um cenário realista. Os temas de suas peças explicitam tudo o que a moral burguesa deseja esconder, a ponto de ser possível estabelecer paralelos entre as cenas rodriguianas e aquelas que serviriam de casos de estudo para a psicanálise. “Seus personagens se debatem entre o pudor absoluto e a selvageria absoluta. São tipos de conflitos que, depois, seriam objeto da psicanálise”, explica a autora da tese.
O estudo sobre as tragédias de Nelson Rodrigues mostra que, olhando para o interior do ambiente familiar, o dramaturgo critica a formação da intimidade burguesa abrasileirada, baseada em uma herança aristocrática e patriarcal. Na periferia do capitalismo, trata-se do retrato de um país que se modernizou a reboque das referências europeias, fazendo nascer uma sociedade de protagonismos erráticos. “São personagens burgueses agindo de forma heroica em suas vidas desimportantes”, sintetiza a pesquisadora.


POLÊMICO, PORÉM HONESTO
A atualidade e a popularidade representam também grandes qualidades da obra de Nelson Rodrigues. Além do teatro o autor manteve uma expressiva produção nos meios impressos, abrangendo desde os folhetins – escritos sob o pseudônimo de Suzana Flag – até as crônicas e os contos da série “A vida como ela é…”, que depois ganhou uma adaptação para a TV nos anos 1990 com esquetes exibidas no programa Fantástico, da Rede Globo. “Nelson é um autor incontornável no teatro, mas pouco se falou da particularidade de sua poesia dramática, recheada de fórmulas paradoxais”, observa Borges, acrescentando que, em todos os formatos aos quais se dedicou, o autor manteve uma coerência absoluta na construção de personagens e suas ideias.
Inegável, também, é o caráter polêmico de sua obra, que sempre dividiu opiniões e acumulou episódios de censura. Abordagens tidas consensualmente como problemáticas, em especial quando à caracterização das mulheres e ao tratamento dado às questões raciais, poderiam fazer com que, hoje, o autor fosse facilmente “cancelado”. Para Borges, trata-se de uma leitura equivocada. “Falar que Nelson Rodrigues é politicamente incorreto é um anacronismo. Hoje levamos em conta debates que não estavam disponíveis naquela época.”
Para a pesquisadora, o incômodo que Nelson pode causar se explica pelo fato de seus personagens não conseguirem evoluir ou aprender. “O patriarca misógino expressa suas misoginias, a grã-fina fala coisas racistas, tudo sem pudor social algum. E não há punição para esses personagens. Os conflitos não se resolvem, assim como ocorre no mundo cotidiano”, defende. Além disso, deve-se destacar episódios em que Nelson atuou de forma vanguardista, como na concepção da peça Anjo negro (1947). Na ocasião, o papel central seria destinado ao ator Abdias do Nascimento, segundo o desejo do dramaturgo. No entanto, para seu desgosto, a única objeção da censura ao texto foi a presença de um ator negro no elenco. A liberação da peça dependeu da subida ao palco, como protagonista, de um ator branco maquiado – uma prática conhecida como black face.
Os pesquisadores também consideram que negar as contradições presentes na obra de Nelson e esperar que a ficção resolva problemas de ordem social é uma atitude moralista, semelhante à dos que defendem os valores tradicionais desconstruídos pelo dramaturgo. “A atualidade de Nelson Rodrigues se reflete na atualidade dessa reivindicação de pureza moral. Infelizmente, nos aproximamos disso hoje tanto por uma perspectiva alinhada à direita quanto também à esquerda”, reflete o orientador da pesquisa.