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Marinhagem manauara é tema de livro

Obra explora as condições de trabalho na capital do Amazonas dos séculos XIX e XX

Região central de Manaus em 1900, com a Ponte dos Remédios em primeiro plano
Região central de Manaus em 1900, com a Ponte dos Remédios em primeiro plano

Marinhagem manauara é tema de livro

Obra explora as condições de trabalho na capital do Amazonas dos séculos XIX e XX

Manaus-1900-Ponte-dos-Remédios-George-Huebner
Região central de Manaus em 1900, com a Ponte dos Remédios em primeiro plano

O livro Os Lugares da Marinhagem: Racialização e associativismo em Manaus, 1853-1919, de Caio Giulliano Paião, resultou de uma extensa pesquisa historiográfica acerca das estruturas de poder que ditavam as relações de trabalho da categoria marítima no período. A obra, dividida em três partes, narra a busca dessa classe por melhores condições de trabalho valendo-se do associativismo e do reconhecimento como o proletariado das águas. Além disso, o autor explora as relações raciais estabelecidas nesse contexto de coletivo heterogêneo, em que as posições hierárquicas eram influenciadas pela raça.

Graduado em história pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e doutor em história social pela Unicamp, Paião desenvolve atualmente um pós-doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), atua como professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Ufam e integra o Laboratório de Estudos sobre História Política e do Trabalho na Amazônia (Labuhta), também da Ufam. Na entrevista a seguir, o pesquisador detalha o processo de escrita da obra e as suas contribuições para a historiografia brasileira.

Jornal da Unicamp – Qual a motivação para a pesquisa que resultou nesse livro e quais as dificuldades enfrentadas durante a sua realização?

Caio Giulliano Paião – Essa obra é um desdobramento de uma pesquisa anterior sobre a navegação a vapor na Província do Amazonas, tema de meu outro livro [Para além das chaminés, Editora Valer, 2024]. Depois de estudar a recepção e o imaginário em torno dessa navegação, procurei entender o mundo do trabalho dos seus tripulantes. Primeiro, deparei-me com uma lacuna na historiografia, em função da própria dinâmica do ofício: tratava-se de personagens que viviam em movimento, por isso, personagens de difícil apreensão. Depois descobri que o acervo histórico da Capitania do Porto do Amazonas havia sido incinerado. Precisei então percorrer uma série de diferentes documentos, de variados tipos e procedências. Nesse sentido, acredito que o maior desafio da pesquisa deu-se ao acompanhar os movimentos desses sujeitos, que sabiam utilizar a mobilidade a seu favor.

JU – Quais contribuições a obra traz aos estudos historiográficos no Brasil?

Caio Giulliano Paião – Ainda são poucos os estudos sobre a categoria marítima no Brasil, especialmente enquanto trabalhadores, no período e no recorte geográfico do livro. A Amazônia chegou a abrigar a maior parcela desse contingente, por isso suas lutas foram fundamentais para que toda a categoria ganhasse reconhecimento como parte da classe trabalhadora. Diferentes dos tripulantes das grandes navegações, já bem estudados, os desse livro buscam preservar sua liberdade de movimento enquanto enfrentam o Estado e os patrões no campo dos direitos. Lutam contra lugares racializados que os relegavam à reserva militar, portanto, excluindo-os da cidadania. Assim, a obra contribui para a historiografia social do trabalho, mostrando que, ao ocuparem lugares como o de “trabalhadores”, essas pessoas conseguiram obter reconhecimento profissional e acessar direitos.

JU – Como o seu livro pode colaborar para o entendimento das relações de trabalho no mundo atual?

Caio Giulliano Paião – Vivemos um período em que a condição de “trabalhador” é vista como algo pejorativo e de pouco valor, enquanto a ideologia do “empresário de si” é usada para enfraquecê-la como identidade coletiva, visando dificultar a organização de classe e a luta por direitos. Essa desorganização dá-se por meio de uma profunda individualização e por meio de um isolamento hoje reforçado pelas redes sociais. No livro, vemos como a individualização foi usada para brecar a organização dos marítimos como classe, algo agravado pela racialização, que negava aos trabalhadores negros e mestiços o direito de reivindicar sua identidade racial em termos políticos ou a chance de denunciar o racismo no ambiente de trabalho. Trata-se de questões que ainda estruturam as relações de trabalho no tempo presente.

JU – Você vê alguma evolução na luta dos trabalhadores marítimos, especificamente nos dias de hoje?

Caio Giulliano Paião – O livro encerra a análise em 1919, justamente em um momento crucial de discussão e aperfeiçoamento da legislação marítima em todo o mundo. Meu intuito foi demonstrar sob quais circunstâncias a categoria chegou a esse debate e qual o papel dos amazônicos nisso. Sem dúvida, o repertório legislativo está muito mais sofisticado nos dias atuais, além de apresentar padrões internacionais de proteção a esses trabalhadores, uma pauta levantada a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. Contudo destaco uma conquista histórica, que é o reconhecimento e a inserção cada vez maior das mulheres no mundo marítimo. Na Amazônia, já viajei em barcos com tripulação 100% feminina. Um marco importante que pode ser visto como um dos resultados da luta feminista contra a masculinidade hegemônica do sistema capitalista.

JU – Em que o livro se diferencia de outros estudos do gênero e qual o público, para além dos estudantes e professores de história, que pode se interessar pela obra?

Caio Giulliano Paião – Nossa historiografia conta com excelentes estudos sobre o mundo marítimo, com foco nos oceanos e nos séculos XVIII e XIX. Embora se ancore nessas pesquisas, meu enfoque difere ao priorizar os trabalhadores fluviais em um recorte que ultrapassa o século XIX, oferecendo uma perspectiva sobre a Amazônia para além da visão de “pulmão do mundo”, ao explorar suas dimensões humanas. Na crise climática atual, os(as) leitores(as), acadêmicos(as) ou não encontrarão uma Amazônia onde populações com demandas próprias lutam por inclusão social e política. O público em geral, preocupado com a progressiva perda de direitos trabalhistas e com o colapso ambiental, pode se inspirar nos lugares da marinhagem em prol de um mundo menos opressivo e mais humano.


Os Lugares da Marinhagem
Os Lugares da Marinhagem

Título: Os Lugares da Marinhagem
Autor: Caio Giulliano Paião
Edição: 1ª
Ano: 2024
Páginas: 440
Dimensões: 16 cm x 23 cm

Editora
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