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Igrejas de garagem arrebanham milhões

Sociólogo vê templos autônomos pentecostais periféricos como fenômeno neoliberal

Igreja pentecostal em bairro da periferia de Campinas: fundadores de templos são, invariavelmente, trabalhadores precarizados
Igreja pentecostal em bairro da periferia de Campinas: fundadores de templos são, invariavelmente, trabalhadores precarizados

O número de brasileiros que se autodeclaram evangélicos, mas que afirmam não ter vínculos com igrejas conhecidas e consolidadas, disparou no Brasil nas últimas duas décadas – de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em apenas dez anos, a alta chegou a 466%. Nas periferias, essa explosão parece se relacionar com a proliferação de um tipo de igreja raro até a virada do século e que se distingue pela forma como surge: a partir de uma iniciativa individual, sem a participação de outras instituições religiosas.

Conhecida como igreja de garagem, quase sempre essa entidade nasce das mãos de um morador do bairro, que detém certa experiência na função pastoral e que, uma vez descontente com seu vínculo religioso-institucional, assume uma posição dissidente, criando sua própria igreja. Em uma pesquisa de mestrado realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), o sociólogo Jefferson Arantes examinou essas igrejas de pequeno porte, que definiu como “igrejas autônomas de periferia”.

O sociólogo Jefferson Arantes, autor da pesquisa: novas abordagens sobre o crescimento evangélico
O sociólogo Jefferson Arantes, autor da pesquisa: novas abordagens sobre o crescimento evangélico
O sociólogo Jefferson Arantes, autor da pesquisa: novas abordagens sobre o crescimento evangélico
O sociólogo Jefferson Arantes, autor da pesquisa: novas abordagens sobre o crescimento evangélico

A notória presença desse perfil de igreja, sobretudo nas periferias urbanas, assim como a velocidade com que se expandiram – fenômeno que o sociólogo chamou de “pentecostalismo marginal autônomo” – atraíram a atenção do pesquisador, determinando a escolha de seu tema. Como recorte, Arantes elegeu para seu assunto principal os fundadores dessas instituições, quase sempre trabalhadores precarizados que, além de exercerem a função pastoral, veem na criação de uma igreja não apenas uma oportunidade de evangelização, mas também de reconhecimento social e de melhoria das próprias condições de vida.

Interessava ao pesquisador explorar as histórias dessas pessoas, seus anseios e experiências, além de investigar quais as motivações e as condições sociais presentes na decisão de criar uma igreja autônoma – em vez de abrir, por exemplo, uma vinculada a instituições conhecidas ou mesmo se filiar a uma igreja já existente. De outro lado, a formação dessas igrejas autônomas o levou a estudar, também, a possível influência do pensamento neoliberal e da cultura do empreendedorismo sobre os agentes religiosos.

Seu estudo coincidiu com o atual momento de efervescência religiosa no Brasil, marcado pelo surgimento de novas expressões no campo evangélico. Justamente por serem recentes, diz Arantes, frequentemente essas igrejas acabam identificadas como neopentecostais – uma definição acadêmica para as práticas religiosas que se orientam pela teologia da prosperidade. Se não se encaixam no perfil tradicional de uma igreja pentecostal – caracterizada por pregar uma relação direta com deus por meio do espírito santo –, essas igrejas são automaticamente tidas como neopentecostais. O que é um erro conceitual, afirma. “Talvez a pesquisa possa vir a ser, de certa forma, um convite para que se comece a olhar essas novas feições do crescimento evangélico fora desse enquadramento pentecostal clássico ou do que se entende, na literatura, por neopentecostal.”

Arantes realizou seu trabalho sob a orientação do sociólogo Sávio Cavalcante, professor do IFCH que se dedica à pesquisa sobre a sociologia do trabalho e a sociologia das desigualdades. O tema do mestrado, explica o docente, insere-se em uma linha de projetos que tratam da organização do conservadorismo neoliberal no Brasil, uma linha coordenada pelo orientador da dissertação. “A pergunta do Jefferson era: qual é o enraizamento social do neoliberalismo e quanto isso fomenta o lado empreendor religioso nas periferias? Esse é um tema com uma literatura grande, nos estudos da religião, mas que, muitas vezes, não se vale do acúmulo de conhecimento ocorrido em outras áreas, como a sociologia do trabalho”, disse o orientador.

Para explorar o fenômeno, o sociólogo percorreu cinco bairros periféricos de Campinas (SP): Parque Oziel, Monte Cristo, Gleba-B, Sítio Paraíso e Jardim do Lago II, catalogando 60 igrejas autônomas. Além da forma peculiar como se originam, essas igrejas, notou Arantes, voltam-se para as pessoas que pertencem às camadas mais baixas da população. Esse segmento encontra-se, hoje, sob disputa. Apesar do atraso do censo, estima-se que, hoje, 30% dos evangélicos sejam indeterminados. De olho no seu crescimento, grandes igrejas têm realizado eventos para tentar amealhar as autônomas. Em Brasília, estuda-se a possibilidade de criar uma secretaria para dialogar com as pequenas igrejas e descobrir suas demandas locais.

O professor Sávio Cavalcante, orientador da tese: Investigando o enraizamento social do neoliberalismo
O professor Sávio Cavalcante, orientador da tese: Investigando o enraizamento social do neoliberalismo
O professor Sávio Cavalcante, orientador da tese: Investigando o enraizamento social do neoliberalismo
O professor Sávio Cavalcante, orientador da tese: Investigando o enraizamento social do neoliberalismo

Em sua etnografia, Arantes buscou explorar as histórias de vida, as experiências pessoais e as condições que permearam a decisão de fundar uma igreja. “Como estávamos tentando entender essas iniciativas autônomas, interessou-nos bastante investigar como o agente se motiva a montá-la”, explicou. “Essa foi uma decisão muito pertinente, de olhar para uma dimensão da vida que articula família, amizades, redes pessoais e religiosidade – e que está nos territórios das periferias”, disse Cavalcante.

Além de realizar entrevistas com dez agentes religiosos, o agora mestre em sociologia frequentou cultos, participou de festas das igrejas e acompanhou pastores em suas atividades. A maioria dos entrevistados, constatou o sociólogo, não cresceu em uma família evangélica: converteu-se em um determinado momento da vida. Em comum, todos relataram ter recebido um chamado de deus para não apenas servir como um fiel, mas para liderar e pastorear. Em suas antigas igrejas, embora fossem dotados de saberes religiosos que os permitiriam, por exemplo, conduzir um culto, não eram reconhecidos como pastores e ocupavam cargos menores.

A dissertação não apenas identificou a presença significativa do imaginário neoliberal entre os agentes religiosos, mas mostrou trajetórias profissionais bastante irregulares, caracterizadas predominantemente pelo desempenho de atividades manuais de baixa remuneração. Dado o forte impacto do neoliberalismo e do processo de precarização entre os anos 1990 e 2000, muitas dessas pessoas, munidas dos saberes religiosos, decidiram fundar suas próprias igrejas. “Todos alimentam uma expectativa de, talvez, conseguir sobreviver exclusivamente do trabalho religioso, no futuro. Uma coisa difícil: dentre todos, apenas dois conseguiram alcançar esse objetivo. Todos os outros estavam em um processo de tentativa de transição.”

Além de aspectos religiosos como vocação e missão, o sociólogo identificou a intenção de melhorar de vida e a busca por reconhecimento social como traços comuns a essas pessoas. “Nessas periferias, a figura do pastor é bastante respeitada até por quem não é evangélico. E isso não é de hoje. Então, trata-se realmente de um empreendimento que visa a uma nova vida.” Nas igrejas fundadas por pastoras, Arantes conta ter identificado uma rede de mulheres que funciona tanto para o cuidado mútuo com os filhos como para a troca de alimentos e de outros recursos materiais.

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