
Coprodução de conhecimento sobre o clima gera ganhos para o setor elétrico
Projeto envolvendo a Unicamp e a Unifesp explora o potencial da transdisciplinaridade
Todos os anos, o período de seca acende o alerta no setor elétrico brasileiro. O país tem a seu favor uma matriz elétrica composta por 85% de energia elétrica vinda de fontes renováveis, montante do qual 52% é gerado por hidrelétricas, segundo dados de abril de 2025 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Porém a força que vem dos rios depende do regime de chuvas. Caso os níveis dos reservatórios fiquem abaixo do ideal para a geração de energia, usinas termelétricas entram em ação, encarecendo o processo. O consumidor sente no bolso esses efeitos. Em maio de 2025, por exemplo, a bandeira tarifária de energia ficou amarela. Isso significa que, a cada 100 kWh (quilowatt-hora) consumidos, as distribuidoras cobraram um valor adicional de R$ 1,885. Adotado em 2015 pela Aneel, o sistema de bandeiras tarifárias informa o quanto a geração de energia elétrica encarece por conta da falta de chuvas.
O planejamento de todo o sistema de geração e transmissão de energia, por meio do Sistema Interligado Nacional (SIN), fica a cargo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que precisa levar em conta as informações climatológicas e as previsões meteorológicas. Isso demanda uma troca de informações e experiências com especialistas e órgãos de pesquisa dessa área. Quanto maior a colaboração e a produção conjunta de conhecimento e ferramentas, mais eficiente o trabalho do órgão e mais proveitosos os resultados e as aplicações práticas das pesquisas.
Essas foram as lições aprendidas a partir do projeto Climate Services Through Knowledge Co-Production (Climax) – serviços climáticos por meio da coprodução de conhecimento –, uma iniciativa apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e que reúne instituições de pesquisa europeias e sul-americanas para desenvolver a coprodução de dados científicos e ferramentas climáticas, fortalecendo setores como a agricultura na Argentina e o sistema elétrico no Brasil ao torná-los mais resilientes a eventos e contextos climáticos adversos.
Por meio de encontros, workshops e grupos de discussão, os pesquisadores conseguiram avaliar os ganhos e os obstáculos no esforço para promover a transdisciplinaridade entre os setores – no caso brasileiro, entre o ONS e o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os resultados do estudo, conduzido ao longo de cinco anos por Jean Carlos Hochsprung Miguel – professor do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp – e por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Inpe, saíram publicados na revista Climate Services.


Encontro de culturas
O envolvimento de Miguel com o projeto Climax iniciou-se por meio de sua atuação como cientista da área da sociologia da ciência e da tecnologia. O plano foi criar canais capazes de facilitar o processo por meio do qual a ciência fornece bases para a tomada de decisões na elaboração de políticas públicas e para a apropriação das tecnologias por instituições. “É importante sabermos que a ciência e a sociedade não estão em uma relação linear, em que o conhecimento científico é produzido e tem resultados e benefícios sociais na ponta, de forma imediata”, disse. No caso da execução do projeto no Brasil, Miguel argumenta que a coprodução de conhecimento implicou estabelecer uma cooperação entre o ONS e o CPTEC para, a partir do entendimento sobre como as informações climáticas são utilizadas, a produção científica do setor poder ocorrer de forma mais assertiva. “O Climax foi um projeto inovador no país porque partiu do princípio de que precisamos entender o contexto de uso das informações científicas para desenvolver os projetos de pesquisa.”
As etapas do projeto compreenderam a construção de uma agenda comum de pesquisa entre os participantes, a integração de conhecimentos e expertises, o realinhamento de metas e expectativas e a avaliação dos resultados. Isso envolveu os profissionais e especialistas do ONS e do CPTEC, bem como os estudiosos da área das ciências sociais responsáveis por avaliar como a troca de conhecimentos ocorria e pensar nas melhores estratégias para promover essa integração. “Trata-se do desafio de estar entre culturas profissionais e epistêmicas distintas”, resumiu Miguel, recordando vários episódios que explicitaram a falta de comunicação entre o desenvolvimento de uma pesquisa e os potenciais usuários do conhecimento e das tecnologias produzidos. “Coisas surpreendentes surgiram durante o projeto. O que se pensava ser produzido com uma utilidade apresentava vieses para um uso completamente diferente.”
Na avaliação dos pesquisadores, os maiores avanços conquistados por meio do projeto consistiram na ampliação do conhecimento dos participantes, na compreensão sobre como a ciência climatológica é produzida e utilizada e na interação entre áreas diversas por meio de um vocabulário de pesquisa comum. Entretanto os cientistas identificaram a existência de barreiras institucionais e organizacionais para a coprodução, já que isso implicaria mudanças nas culturas acadêmica e profissional. Segundo o professor, não resultou da coprodução uma ferramenta tecnológica passível de ser usada pelo ONS. “Mas elevamos o padrão de interpretação e de conhecimento climatológico sobre as ferramentas usadas. Isso já é um ganho real.”
Para além de ampliar a resiliência do setor energético no Brasil, o fomento de projetos calcados na coprodução desempenha o papel importante de chamar atenção para os ganhos e as limitações envolvidos no fazer uma ciência verdadeiramente transdisciplinar. De acordo com Miguel, isso passa também pela forma como grandes projetos científicos são elaborados e por seus modelos de financiamento e gestão, que demandam iniciativas de longo prazo e novas formas de mensuração dos resultados. “É preciso levar a transdisciplinaridade a sério, de ponta a ponta”, defende o pesquisador.