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A cura que brota da terra

Tese investiga o papel das farmácias públicas de manipulação inseridas no mercado de fitoterápicos

Dependências e fitoterápicos produzidos na Farmácia Viva da cidade de Jardinópolis, no interior de São Paulo: local conta com mudas, viveiros, laboratórios e até ambulatórios
Dependências e fitoterápicos produzidos na Farmácia Viva da cidade de Jardinópolis, no interior de São Paulo: local conta com mudas, viveiros, laboratórios e até ambulatórios

A cura que brota da terra

Dependências e fitoterápicos produzidos na Farmácia Viva da cidade de Jardinópolis, no interior de São Paulo: local conta com mudas, viveiros, laboratórios e até ambulatórios
Dependências e fitoterápicos produzidos na Farmácia Viva da cidade de Jardinópolis, no interior de São Paulo: local conta com mudas, viveiros, laboratórios e até ambulatórios

Tese investiga o papel das farmácias públicas de manipulação inseridas no mercado de fitoterápicos

O broncodilatador e expectorante Mikania glomerata, o famoso guaco, o calmante, analgésico e ansiolítico Cymbopogon citratus, conhecido como capim-santo, e o anti-inflamatório e antioxidante Curcuma longa, o popular açafrão-da-terra, oferecem exemplos de plantas medicinais facilmente encontradas nas feiras livres e nos mercados municipais de qualquer Estado brasileiro, nas formas in natura, a granel, em garrafadas ou como óleos essenciais. Essas plantas representam uma prova inequívoca da nossa biodiversidade vegetal – a maior do mundo – e do nosso conhecimento tradicional. Uma riqueza que, apesar de reconhecida, está longe de ter todo seu potencial explorado. Enquanto detém de 15% a 20% da biodiversidade vegetal do planeta, o país responde por ínfimos 0,1% do mercado global de fitoterápicos e ervas medicinais, que movimentou, em 2024, US$ 230 bilhões (R$ 1,3 trilhão).

Para entender as contradições e a complexidade da cadeia de fitoterápicos no Brasil, a engenheira agrícola colombiana Nataly Cubides Zuñiga pesquisou em sua tese de doutorado, dentro do Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica (PPG-PCT) do Instituto de Geociências (IG), as Farmácias Vivas. Instituídas em 2010, esses estabelecimentos funcionam como farmácias de manipulação públicas, dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), fornecendo gratuitamente plantas medicinais que cultivam e medicamentos que manipulam, além de prestarem assistência social farmacêutica. A atividade promove o encontro entre os conhecimentos tradicional e científico. “Esse é um patrimônio natural que precisamos integrar. Temos tanto o conhecimento técnico-científico quanto o tradicional, mas eles estão dispersos”, defende a engenheira agrícola.

Ao se aprofundar nesse espaço de convergência, Cubides Zuñiga concluiu que as Farmácias Vivas têm o potencial de articular essa cadeia técnico-produtiva porque estão inseridas no SUS e porque são capazes de criar ecossistemas de conhecimento a partir de ações de conexão e cooperação envolvendo diferentes atores, como universidades, institutos de pesquisa, organizações não governamentais, cooperativas de agricultores e comunidades. A pesquisa identificou múltiplas razões para a baixa produção de medicamentos fitoterápicos no Brasil. Uma delas é a carência de descrição e registro das espécies medicinais nativas, algo obrigatório para a produção dos insumos farmacêuticos ativos vegetais (Ifavs), necessários à manipulação dos medicamentos.

A engenheira deu início aos estudos junto com a equipe do Projeto Prospecção e Priorização Técnico-Produtivas para a Integração da Cadeia de Fitoterápicos Amazônicos (Profitos Bioam), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), entre 2021 e 2024.

A engenheira agrícola Nataly Cubides Zuñiga (à esq.), autora da pesquisa feita no IG, e a professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, orientadora: biodiversidade, convergência de saberes e crescimento econômico
A engenheira agrícola Nataly Cubides Zuñiga (à esq.), autora da pesquisa feita no IG, e a professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, orientadora: biodiversidade, convergência de saberes e crescimento econômico
A engenheira agrícola Nataly Cubides Zuñiga (à esq.), autora da pesquisa feita no IG, e a professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, orientadora: biodiversidade, convergência de saberes e crescimento econômico
A engenheira agrícola Nataly Cubides Zuñiga (à esq.), autora da pesquisa feita no IG, e a professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, orientadora: biodiversidade, convergência de saberes e crescimento econômico

Autonomia restrita

Ainda pouco conhecidas por parte da população e muitas vezes do próprio poder público – municipal, estadual e federal –, as atuais 226 Farmácias Vivas fazem parte da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) do governo federal. “As Farmácias Vivas são um instrumento da política nacional, cuja diretriz é incentivar a produção e o uso de plantas medicinais e de fitoterápicos no SUS. Entretanto a incongruência das regulamentações e a falta de monografias, em muitos casos, restringem a autonomia das Farmácias Vivas para trabalhar com espécies locais”, disse Cubides Zuñiga.

De acordo com a orientadora da pesquisa, professora Maria Beatriz Machado Bonacelli, deter uma grande sociobiodiversidade – conceito que inclui as populações responsáveis pelo conhecimento tradicional – não basta para promover avanços. “O Brasil tem uma grande diversidade e todo mundo acha que isso já basta. Mas só o recurso não resolve, assim como só a biodiversidade também não, nem só a política ou a legislação. Não se pode usar o conhecimento tradicional sem saber a origem desse conhecimento ou do seu povo. O conhecimento tradicional é riquíssimo e deve se somar ao conhecimento e método científicos. É preciso promover esse encontro. O conhecimento tradicional vem da herança indígena, dos ribeirinhos, dos quilombolas e da agricultura familiar”, afirmou Bonacelli.

Segundo a professora, o Brasil conta com cerca de 340 fitoterápicos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), enquanto a Grã-Bretanha está na casa dos 3 mil, a Alemanha, dos 10 mil e a China, dos 70 mil. O país, portanto, tem potencial para explorar sua sociobiodiversidade, promovendo o crescimento econômico, aponta a pesquisa. Os medicamentos fitoterápicos hoje não chegam a 2% do mercado farmacêutico brasileiro, enquanto na Alemanha esse percentual gira em torno de 20%.

Rigor da lei

A legislação sobre os fitoterápicos no Brasil, que começou a ser implementada nos anos 1980, ganhou um novo quadro regulatório em 2014. Segundo a pesquisa, com uma legislação nacional mais completa e mais próxima das normas internacionais, muitas empresas que antes exploravam as plantas medicinais, por não se enquadrarem nas novas diretrizes, deixaram de existir ou se concentraram na produção de fitocosméticos, suplementos e óleos essenciais. Hoje, no país, há cerca de 68 empresas de fitoterápicos, concentradas na Região Sudeste.

12 fitoterapicos
12 fitoterapicos

No caso específico das Farmácias Vivas, a legislação, criada a partir de 2010, dispõe sobre as etapas da cadeia produtiva, abrangendo das matérias-primas (plantas in natura e derivados vegetais) até os medicamentos fitoterápicos. Os Ifavs ou matérias-primas devem ser produzidos nas próprias Farmácias Vivas ou devem vir de produtores certificados, tudo isso sob o controle da Anvisa.

A gestão das farmácias é municipal ou estadual, a cargo das secretarias de saúde. Os funcionários desses estabelecimentos integram o SUS e instituições parceiras, além de haver alguns voluntários. Cada localidade desenvolve seu próprio modelo conforme suas especificidades, capacidades e necessidades. Muitas dessas farmácias se transformam em espaços comunitários de troca de conhecimentos, oferecendo ações de capacitação, seminários e rodas de conversa. Na avaliação da engenheira, a institucionalização das farmácias é um dos grandes desafios do programa no país.

A tese analisou unidades das Farmácias Vivas do Distrito Federal e de sete Estados, entre eles o Ceará, onde esses locais foram idealizados em 1983, por Francisco José de Abreu Matos, da Universidade Federal do Ceará (UFC). A Farmácia Viva da cidade de Jardinópolis (Farmácia da Natureza), em São Paulo, foi a mais completa que Cubides Zuñiga conheceu: possui viveiros, fornece mudas e tem laboratórios que produzem fitoterápicos em cápsulas, óleos, cremes, tinturas e xaropes. E conta ainda com um ambulatório para a realização de consultas à população. Nesse ambulatório trabalham médicos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (USP), de Ribeirão Preto. A farmácia fornece quatro fitoterápicos ao SUS. Em Campinas, a pesquisadora conheceu quatro Farmácias Vivas, que abrigam canteiros ou hortos.

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