
Força na medida certa
Fisiologista investiga interação entre aspectos técnico, tático e físico no futebol feminino
Força na medida certa
Fisiologista investiga interação entre aspectos técnico, tático e físico no futebol feminino

A força muscular pode contribuir para o resultado de um jogo de futebol? Qual a dose certa de treino de força antes das partidas decisivas? O trabalho do fisiologista Ronaldo Kobal de Oliveira Alves Cardoso com atletas de alto rendimento do futebol feminino, tanto no time do Corinthians como na seleção brasileira, motivou-o a desenvolver um protocolo de treino que fez cair por terra o paradigma “no pain, no gain” – disseminado no mundo fitness –, segundo o qual um treino bom deve levar o sujeito à exaustão. Em oposição a isso, o pesquisador defende o lema “no pain, more gain” (sem dor, mais ganho), porque, assim como no caso de um remédio, o efeito do treino de força depende de esse treino ser administrado na dose certa.
Com base nesse princípio, Cardoso desenvolveu sua tese de doutorado na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. No estudo, o pesquisador correlacionou os domínios técnico, tático e físico e confirmou que o aumento da capacidade neuromuscular incrementa a eficiência do atleta em campo. O desafio consistiria em acertar a medida da atividade física. Utilizar o aumento de força para alcançar melhores resultados em campo tem sido uma tendência nas equipes de futebol de todo o mundo.
O fisiologista se lançou no doutorado pouco antes do início da pandemia de covid-19, sem interromper suas atividades profissionais. Uma decisão acertada, porque nesse ínterim Cardoso conquistou uma medalha de prata nas Olimpíadas de 2024, em Paris, como integrante da equipe técnica da seleção brasileira de futebol feminino.
Futebol de elite
Unindo o conhecimento científico à atividade profissional, o pesquisador adaptou o treinamento de força de 32 jogadoras do futebol de elite – das quais, seis da seleção brasileira. Cardoso focou a potência muscular de membros inferiores e analisou o efeito do treino de força no desempenho neuromuscular, físico, técnico e tático durante três temporadas. Para quantificar os esforços físicos, utilizou um aparelho de GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global) instalado na roupa das atletas em campo. O dispositivo é usado para registrar dados como posição, velocidade e deslocamento das jogadoras durante uma partida. No total, somaram-se mais de cem jogos oficiais analisados.
Na avaliação do fisiologista, seu doutorado representa um grande passo nos esforços para consolidar a utilização do treino de força como treino complementar na rotina das atletas. Os achados sugerem uma influência do treinamento de força nos deslocamentos mais velozes durante as partidas. De acordo com os registros do aparelho de GPS, houve um aumento das distâncias percorridas em alta e máxima intensidade, do número de acelerações e desacelerações e da velocidade máxima alcançada.
O desempenho técnico apresentou uma alteração positiva de 17% e o número de finalizações aumentou 25% (valores esses medidos por meio da tecnologia de uma empresa de dados esportivos que trabalha com o desenvolvimento de índices e plataformas para avaliar o desempenho de atletas). Houve um aumento “geral” na eficiência técnica da equipe. “Os jogos ficaram, nitidamente, mais intensos.”


“Correr mais não significa ganhar ou conseguir melhores resultados, porque o gol passa por outras variáveis e há toda uma complexidade devido aos aspectos multifatoriais. Mas compreender a interação entre essas variáveis e saber como otimizá-las pode contribuir para o sucesso esportivo no futebol. Ainda vamos ter que entender como vamos conseguir melhorar o resultado direto do jogo”, avalia Cardoso, bacharel em esporte e mestre pela Universidade de São Paulo (USP).
O treino de força, até recentemente, não contava com uma boa adesão da parte dos jogadores e comissões técnicas porque faltavam ajustes no treinamento e na sua relação com as demandas do futebol. “Isso tem se desmistificado com o tempo por meio dos avanços científicos e tecnológicos”, pondera o fisiologista.
Segundo o professor da FEF Renato Barroso, orientador da pesquisa, o protocolo adaptado por Cardoso está quebrando paradigmas no futebol feminino. “Estamos difundindo isso em outros clubes.” A mesma lógica do treino de força utilizada pelo pesquisador pode servir para o vôlei, o handebol, o basquete, a natação, a corrida e outros esportes.
“O treino de força baseia-se na velocidade do movimento. Nesse protocolo evita-se a geração de fadiga, pois, se eu gerar cansaço, a atleta não vai conseguir atuar com eficiência durante os treinos e os jogos. A atleta precisa estar descansada para que consiga fazer sempre o melhor e com disposição. Esses são treinos curtos, de 20 a 40 minutos. Quanto mais próximo do jogo, menor o volume e o tempo. Pode ser três, duas ou até mesmo apenas uma série de exercícios. E isso faz muita diferença”, descreve.
Na infância, Cardoso tinha o sonho de se tornar jogador de futebol, assim como outras milhares de crianças. Porém o sonho de trabalhar com o esporte de alto rendimento nunca se perdeu. “Vi que outra alternativa de ingressar nesse mercado era por meio do conhecimento científico.” Até chegar à medalha de prata olímpica, o pesquisador acumulou diversas conquistas, entre as quais quatro títulos da Copa Libertadores da América, cinco campeonatos brasileiros, três título da Supercopa, cinco campeonatos paulistas e os títulos de vice do Campeonato Brasileiro e vice paulista, sempre no futebol feminino.
No laboratório de treinamento de força do professor Valmor Tricoli, na USP, Cardoso experimentou os primeiros contatos com a temática do treinamento de força. Depois, no Núcleo de Alto Rendimento Esportivo de São Paulo, trabalhou ao lado do professor Irineu Loturco. Em 2019, ingressou no Corinthians. “Adquirindo conhecimento, a gente vai identificando as lacunas, tanto no meio científico como no meio prático”, acredita o pesquisador.
Ciência e prática
Para o orientador, o diálogo entre a ciência e a prática nos esportes precisa ser aprimorado. “Muitas vezes, quem está na prática vê os cientistas como pessoas que não entendem o dia a dia dos treinos. E nós, cientistas, pensamos que alguns preparadores físicos não embasam a prática em conhecimento científico”, diz Barroso. “Como cientista do esporte, Cardoso faz essa ponte muito bem.” A tese teve o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Na última década, vem crescendo a utilização de equipamentos como o GPS para monitorar e caracterizar a demanda dos esforços físicos e táticos ocorridos durante as partidas de futebol e os treinos. Segundo o fisiologista, hoje existem softwares com tecnologia avançada, já utilizados na Europa, que podem integrar os dados de GPS e vídeo, melhorando a análise do desempenho esportivo. Esses equipamentos, porém, apresentam um custo altíssimo. Em sua pesquisa, Cardoso levantou dados sobre diversos campeonatos de futebol feminino e masculino em todo o mundo, como o inglês, o chinês, o alemão, o croata e o português, entre outros.