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Mario Vargas Llosa durante a abertura do XV Foro Atlántico, evento organizado em 2002, na capital espanhola, pela Fundación Internacional para la Libertad, entidade presidida pelo escritor peruano até a sua morte

As raízes liberais da extrema direita

Livro de cientista política analisa papel de entidade presidida por Vargas Llosa na difusão do liberalismo

Mario Vargas Llosa durante a abertura do XV Foro Atlántico, evento organizado em 2002, na capital espanhola, pela Fundación Internacional para la Libertad, entidade presidida pelo escritor peruano até a sua morte

As raízes liberais da extrema direita

Livro de cientista política analisa papel de entidade presidida por Vargas Llosa na difusão do liberalismo

Mario Vargas Llosa durante a abertura do XV Foro Atlántico, evento organizado em 2002, na capital espanhola, pela Fundación Internacional para la Libertad, entidade presidida pelo escritor peruano até a sua morte
Mario Vargas Llosa durante a abertura do XV Foro Atlántico, evento organizado em 2002, na capital espanhola, pela Fundación Internacional para la Libertad, entidade presidida pelo escritor peruano até a sua morte

Nem só de governantes e parlamentares se faz o campo da política. Diversos atores organizaram-se para influenciar, pressionar e determinar os rumos das políticas públicas e das leis que orientam um país ou uma região. Dos anos 1980 para cá, conforme a historiadora e cientista política María Julia Giménez, os think tanks (“laboratórios de ideias”) passaram a desempenhar um papel importante nesse cenário. No livro Um Atlântico Liberal: Think tanks, Vargas Llosa e a ofensiva da direita na América Latina, recém-lançado pela Editora da Unicamp, a pesquisadora analisou a atuação da Fundación Internacional para la Libertad (FIL), entidade que congrega organizações da Espanha, dos Estados Unidos e de países latino-americanos em uma rede voltada para a defesa e difusão do liberalismo.

Presidida pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa, falecido no dia 13 de abril, a FIL surgiu em reação ao avanço de governos progressistas na América Latina no início dos anos 2000. Nas palavras de seus fundadores, a entidade nasceu a fim de “defender o elementar perante a irracionalidade que parece ter se apoderado de extensas camadas da opinião pública mundial”. Para Giménez, nesse contexto, uma série de organizações recuperaram algumas das gramáticas políticas da Guerra Fria centradas no “perigo vermelho” e traduziram esses esquemas para o presente, incorporando novos problemas e novos inimigos, como o marxismo cultural, os movimentos populares e camponeses e os defensores e defensoras dos territórios originários.

“Vargas Llosa era uma figura que exemplificava esse processo histórico. Após ganhar destaque como um dos grandes escritores latino-americanos do boom do realismo mágico, já nos anos 70 ele se afastou do apoio ao processo revolucionário cubano, colocando-se como um ator anticastrista, abraçou o neoliberalismo e, graças ao apoio de uma vasta rede de think tanks liberais, se converteu em uma referência na defesa do liberalismo no mundo”, diz a autora.

Os think tanks, indica a autora, são uma forma política, assim como os partidos, e podem ser articulados em qualquer espectro político, embora sejam mais preponderantes e efetivos na direita. “Trata-se de um mercado de ideias”, sintetiza.

Em entrevista ao Jornal da Unicamp, Giménez aborda também a relação dessas organizações com a emergência da extrema direita na América Latina, citando como exemplo o caso do seu país de origem, a Argentina.

O livro resulta do doutorado em ciência política da autora, realizado na Unicamp. Confira a entrevista.

Jornal da Unicamp – O que são os think tanks e por que estudar a FIL?

María Julia Giménez – Os think tanks, sob uma perspectiva gramsciana, são um tipo de aparelho privado de hegemonia que se desenvolve no correr do século XX, chegando, nos anos 1980, a uma forma de advocacy, de defesa de ideias, trabalhando principalmente na incidência sobre um público específico, como consumidores, parlamentares, CEOs [diretores-executivos de empresas], grandes proprietários etc., criando e divulgando enquadramentos para a compreensão da realidade.

Trazendo aportes da teoria dos campos de Pierre Bourdieu, podemos dizer que eles articulam alguns elementos dos campos da comunicação, do empresariado, das universidades, do conhecimento científico e da política. Com isso, vão fazendo malabares entre esses capitais, dando uma forma própria à sua atuação, a depender de seus objetivos: defender valores, definir diretrizes na formulação de uma política pública, formar quadros políticos, incidir sobre processos eleitorais, entre outros.

É importante falar, no entanto, que os think tanks não são exclusivos da direita liberal. Eles são uma forma política cuja efetividade possivelmente tem a ver com o neoliberalismo. Mas existem think tanks de esquerda, existem think tanks conservadores, existem think tanks de grupos religiosos etc. Pode haver think tanks de várias correntes, porque são uma forma política.

Lembro que o falecido professor Reginaldo de Moraes, que me orientou no início do doutorado na Unicamp, dizia que, se a forma política do partido começou a se consolidar no decorrer do século XIX e foi efetiva para o regime político no século XX, a forma think tank vai se articulando ao longo do século XX e parece que se torna muito efetiva já no início do século XXI.

Podemos afirmar que, na especificidade do campo liberal latino-americano, a consolidação dos think tanks situa-se nos anos 1980, mas dá um salto qualitativo e quantitativo a partir dos anos 2000. Em ambos os momentos, verifica-se a importância desses institutos e de suas articulações internacionais. Daí meu interesse por estudar a FIL.

Uma série de estudos anteriores mostra que a rede estadunidense Atlas Network, criada em 1981, teve e tem um papel muito importante na constelação dos think tanks liberais em nível internacional, apoiando a criação de think tanks, vinculando-os e unificando as pautas em defesa do liberalismo. A América Latina foi um cenário-chave da expansão dessa rede internacional liberal. Numerosos think tanks nasceram em países como Chile, Argentina, Brasil, Peru, Equador, Guatemala, Venezuela, México, e alguns desses ainda estão ativos.

No começo dos anos 2000, é possível verificar a renovação dessa trama defensora do liberalismo, com a incorporação de novos think tanks e a ampliação das redes de articulação. Nesse contexto, nasce em Madri (capital da Espanha) a FIL, presidida por Mario Vargas Llosa até sua morte.

O que mostram os estudos como o do livro é que a explosão de think tanks liberais no começo do século XXI está atrelada a uma resposta sobre os processos populares de impugnação do neoliberalismo e ao surgimento do ciclo de governos progressistas em alguns países importantes da região: Venezuela, Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, Equador. Meu interesse pela FIL surge da busca por compreender o papel dos interesses espanhóis nesse tipo de articulação atuante na América Latina, historicamente organizada desde os Estados Unidos.

Além dos vínculos coloniais com a maioria dos países da região, é importante destacar que o capital espanhol foi um dos grandes beneficiários das reformas neoliberais e principalmente das privatizações dos anos 1990, com a presença de grandes corporações como Repsol, Telefónica, Red Electrica España, Banco Santander, BBVA.

No livro, buscou-se entender a atuação dessa rede de defesa de ideais liberais para fazer frente às mudanças do contexto político regional, vistas por essas pessoas como uma ameaça à ordem regional. Isso, porém, não apenas dependeu dos interesses externos à região, mas de uma articulação que vincula intelectuais, empresários, ex-mandatários, jornalistas, acadêmicos, escritores, ativistas e think-tankers da Espanha, dos Estados Unidos e da América Latina.


Paulo Guedes e Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio da Alvorada, em Brasília: para María Julia Giménez, “o bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita”
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio da Alvorada, em Brasília: para María Julia Giménez, “o bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita”

Quando o mercado de ideias abraça a razão neoliberal

Paulo Guedes e Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio da Alvorada, em Brasília: para María Julia Giménez, “o bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita”
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio da Alvorada, em Brasília: para María Julia Giménez, “o bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita”

JU – E essa forma é mais efetiva para a direita pelo poder econômico e pelas relações que mobilizam, por exemplo, com os grandes meios de comunicação?

María Julia Giménez – Em parte tem a ver com isso. Os liberais, imbuídos da defesa do capitalismo, conseguem mobilizar o grande empresariado, que dá apoio material, sim. Mas, também, porque trabalham sobre uma razão política que é a incidência e não necessariamente a formação.

Podemos dizer que eles precisam manter um senso comum que é dominante, que já está a um, dois, três passos à frente de outras formas de entender o mundo, em disputa. E porque eles não trabalham necessariamente sobre o livre dissenso, em tentar criar sujeitos livres de pensamento.

JU – Qual a diferença entre a incidência e a formação política?

María Julia Giménez – Se, desde a perspectiva da formação política, o desafio é que os povos possam escrever a sua própria história e participar dos processos políticos incorporando diversas formas de compreender o e atuar no seu presente, com esse tipo de aparelhos centrados na incidência e na persuasão, a ação política depende da mobilização e da efetividade de enquadramentos prontos para serem usados. Trata-se de um mercado de ideias. Na formação, há uma lógica que se afasta do mercado das ideias para trabalhar a partir do diálogo e da própria experiência do povo, da sua realidade concreta. Os think tanks prescindem disso.

Eu considero que a forma think tank, independentemente do campo político a que esteja vinculada, trabalha principalmente na lógica da incidência, e essa forma, por sua vez, une-se à razão neoliberal, trabalhando a partir da oferta de uma série de ideias ou enquadramentos limitados e prontos para serem consumidos. Então a sociedade se divide entre os bons e os maus, entre os comunistas e os anticomunistas.

A construção política vai além disso, tem a ver com os próprios desejos do povo, e isso se faz com um diálogo concreto e que se desenrola no território, com as próprias experiências da população, e não de forma persuasiva.

JU – Como você observa, a FIL diz que surge para “defender o elementar perante a irracionalidade”, em alusão ao avanço dos governos progressistas na América Latina. Diante disso, como você avalia a construção desse inimigo pela FIL e por outras organizações liberais? Qual a importância das bandeiras do anticomunismo e do antipopulismo?

María Julia Giménez – A gramática política centrada na ideia do anticomunismo foi chave durante a Guerra Fria tanto na disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética como para as ditaduras militares que se instauraram na América Latina. A Doutrina de Segurança Nacional, coluna vertebral das ditaduras latino-americanas dos anos 1960 e 1970, traz a ideia de um inimigo comunista que estaria se infiltrando e que precisava ser erradicado, um assunto de segurança nacional e internacional.

Às vezes entendemos que, com o fim daquele confronto entre os norte-americanos e os soviéticos e das ditaduras, isso teria acabado. De fato acabou. Mas isso não significou um completo “virar a página”, segundo mostram os planos de segurança hemisférica para a América Latina, vindos dos Estados Unidos no final da Guerra Fria. A ideia do “perigo vermelho” fica em um estado de latência, servindo a outros propósitos e à apresentação de novos perigos, como o narcoterrorismo, os movimentos camponeses, o indigenismo, as migrações. Essa ideia-força, porém, volta a se erguer de forma pungente nos anos 2000, atrelada à ofensiva contra o processo de impugnação do neoliberalismo e à consolidação do ciclo de governos progressistas em parte da região.

Vargas Llosa era uma figura que exemplificava esse processo histórico. Após ganhar destaque como um dos grandes escritores latino-americanos do boom do realismo mágico, já nos anos 70 ele se afastou do apoio ao processo revolucionário cubano, colocando-se como um ator anticastrista, abraçou o neoliberalismo e, graças ao apoio de uma vasta rede de think tanks liberais, se converteu em uma referência na defesa do liberalismo no mundo.

Diante da tentativa falida de alcançar a presidência do Peru, em 1990, Vargas Llosa se radica na Espanha, onde se transforma em uma reconhecida referência cultural na defesa dos valores e princípios do liberalismo. Isso devido ao apoio encontrado entre as fileiras do Partido Popular da Espanha, comandado por José María Aznar, e ao impulso dado por uma vasta rede de think tanks liberais que hoje em dia contam com um alcance mundial.

A recuperação dessa gramática anticomunista e o avanço das direitas na atualidade, inevitavelmente, têm que nos fazer refletir sobre a insuficiência dos processos de memória, verdade e justiça, importantes para a construção da democracia. Contudo, mesmo em lugares onde, sim, houve esse processo, é possível a aparição de figuras como Milei [Javier Milei, atual presidente da Argentina]. Então, evidentemente, os processos de memória, verdade e justiça precisam avançar mais.

O presidente da Argentina, Javier Milei, durante plenária sobre reforma das instituições no G20: eixos fundamentais do presidente argentino foram herdados do governo Macri
O presidente da Argentina, Javier Milei, durante plenária sobre reforma das instituições no G20: eixos fundamentais do presidente argentino foram herdados do governo Macri
O presidente da Argentina, Javier Milei, durante plenária sobre reforma das instituições no G20: eixos fundamentais do presidente argentino foram herdados do governo Macri
O presidente da Argentina, Javier Milei, durante plenária sobre reforma das instituições no G20: eixos fundamentais do presidente argentino foram herdados do governo Macri

JU – Falando de Milei e de outras lideranças da extrema direita, qual o papel dos think tanks liberais na emergência desses quadros?

María Julia Giménez – No caso de Milei, ao longo da campanha e até hoje, ele trata Alberto Benegas Lynch (filho) como seu herói político. Benegas Lynch (filho) é o criador da Eseade [Escuela Superior de Economía y Administración de Empresas], um think tank voltado à formação de economistas e administradores de empresas, além de ser uma escola de negócios, fundada no final dos anos 1970, em Buenos Aires [capital argentina]. No entanto foi o pai dele quem, no final dos anos 1950, criou um dos primeiros think tanks liberais da América Latina, uma entidade fundamental para estabelecer os primeiros contatos com e organizar uma série de viagens e intercâmbios envolvendo figuras como o economista austríaco Ludwig Von Mises e, posteriormente, Friedrich Hayek.

Então Milei apoia-se em alguém que cria um dos primeiros think tanks da região e que é filho de alguém fundamental para a divulgação do pensamento neoliberal na América Latina. Ou seja, não há uma completa novidade nessa extrema direita. O que vimos foi que, em um processo de crise, também da hegemonia liberal, essas pessoas foram ao extremo. Há princípios de uma postura antissistema nessas figuras que trazem novidades importantes, mas que não são uma completa novidade. 

Podemos determinar a historicidade do surgimento de uma série de condições que serviram de fermento para Milei ou para [o ex-presidente Jair] Bolsonaro. O chamado bolsonarismo é a articulação de uma série de demandas da direita – dos militares, do fundamentalismo religioso, dos liberais, dos ruralistas, dos armamentistas etc. Ou seja, isso que alimentou Bolsonaro em 2018 não é uma novidade. Porque, por exemplo, a linha do ex-ministro [da Economia Paulo] Guedes nos leva para trás, aos Chicago Boys [referência a um grupo de economistas pioneiros do pensamento neoliberal, que formularam, por exemplo, a política econômica da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile]. O mesmo poderíamos fazer se observamos a trajetória do entorno militar ou ruralista. Então até que ponto essa extrema direita é uma novidade?

A forma extrema como as coisas estão sendo levadas representa, sim, uma novidade, mas no livro eu termino com uma anedota. O ex-presidente argentino Mauricio Macri, que alguns analistas consideram uma direita “menos extrema” que Milei, se encontra com Vargas Llosa, que o recrimina. O governo Macri já estava em crise e era quase evidente que o então mandatário não seria reeleito. A questão girava em torno do gradualismo, da velocidade do programa neoliberal, não em torno da mudança desse programa. Tratava-se de saber se esse programa tinha que pisar no acelerador e ir para cima dos direitos do povo argentino ou se tinha que se fazer um pouco mais moderado e fingir ser democrático.

Segundo penso, o que muda de um para o outro é fingir ou não fingir ser democrático, o que não significa que Macri seja mais democrático que Milei. No caso da Argentina, veremos figuras importantes do governo Macri dentro do governo Milei. E Macri é um produto também da atuação de organizações próximas da FIL. A promoção de Macri também ocorre muito em uma chave internacional via esses institutos. Milei é desbocado, é descompensado na forma como se expressa. Mas a verdade é que, no governo Milei, a estrutura do aparelho econômico e do aparelho de segurança, dois eixos fundamentais de um Estado liberal, vêm do governo Macri. Assim como a referência política principal de Milei é uma família fundamental na estrutura desses aparelhos em nível regional.

Os think tanks trabalham não sobre a visibilidade de si mesmos e, sim, criando e divulgando enquadramentos e as figuras que os defendem. Macri ou Milei em parte são produtos desses empreendimentos. María Corina Machado, na Venezuela, também. Os think tanks e seus think-tankers, porém, não buscam fama, nem votos. Por exemplo, Alex Chafuen é um economista argentino naturalizado estadunidense e, durante 30 anos, o diretor da Atlas Network, a maior rede internacional liberal do mundo. Na Argentina, contudo, não passa um completo desconhecido. Alberto Benegas Lynch (filho) começou a ser conhecido na Argentina depois que Milei passou a falar sobre ele. Do contrário, ninguém, a não ser os que estudaram isso ou os próprios liberais, saberia quem Lynch era.

A historiadora e cientista política María Julia Giménez: “Os processos de memória, verdade e justiça precisam avançar mais”
A historiadora e cientista política María Julia Giménez: “Os processos de memória, verdade e justiça precisam avançar mais”

JU – Você poderia falar mais sobre o papel da Espanha e dos Estados Unidos na FIL?

María Julia Giménez – O lugar dos Estados Unidos no controle do seu “quintal”, a América Latina, vem desde a Doutrina Monroe, de 1823, sob o mote “América para os americanos”. Os EUA posicionam-se como uma espécie de tutor de nossa região, o que se repete no combate contra o inimigo comunista, contra a União Soviética.

Uma das transformações ocorridas após o fim da Guerra Fria na América Latina é o processo de transição das ditaduras para as democracias burguesas e restritas. No caso da Europa, a saída dos fascismos consolida outras burguesias nacionais mais ligadas a interesses liberais. Claro, aí há uma historicidade, não é o mesmo ser burguês na Europa e ser burguês na América Latina. Há uma diferença sobre onde está o botão para apertar e tomar decisões.

Então, ao histórico colonial que nunca se desagregou na região, une-se, nos anos 1980 e 1990, o desenvolvimento de um programa neoliberal de restrição das funções do Estado, em um projeto de Estado voltado principalmente para garantir a propriedade individual, a extração de recursos naturais, a livre circulação de mercadorias e o controle sobre a população. 

A burguesia espanhola, apoiada nessa relação cultural que mantém com a América Latina, começa a ser, de alguma forma, a “embaixadora” dos interesses europeus na América Latina, em consonância com os Estados Unidos, que, digamos, é quem domina não só o território latino-americano como também o território europeu ocidental e principalmente o sul da Europa. Então, a saída do fascismo, do franquismo, da Espanha também está vinculada, como no caso da América Latina, à construção de uma série de democracias burguesas e restritas, sob o controle do capital financeiro, que facilitaram, por essa relação já desigual entre a Europa e a América Latina, essa forma “embaixadora” da Europa como um segundo lugar no domínio sobre a região.

Então poderíamos dizer que, se os Estados Unidos eram o principal investidor, no sentido de que a América Latina recebia principalmente capital norte-americano no processo de privatização e destruição do Estado, o segundo país nesse processo era a Espanha, como representante da Europa. O capital espanhol, produto dessa burguesia que se fortalece no processo de transição do fascismo para as democracias restritas, será o principal beneficiário das privatizações na América Latina, manifestando um forte interesse em preservar essa ordem na região.

A ocorrência do processo de impugnação do neoliberalismo e de ciclos de governos progressistas que colocam em questão os interesses do Norte Global, seja dos Estados Unidos, seja da Espanha, e que colocam em questão as privatizações – em alguns casos, esse processo até culmina na nacionalização de empresas de setores estratégicos privatizadas nos anos 1990 – faz com que se consiga fortalecer esses vínculos atlânticos para por um freio às transformações na América Latina.

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