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Diferentes estágios de técnicas de melhoramento genético da cana-de-açúcar, do frasco à estufa, no Instituto de Biologia: plantas mais resistentes a condições adversas
Diferentes estágios de técnicas de melhoramento genético da cana-de-açúcar, do frasco à estufa, no Instituto de Biologia: plantas mais resistentes a condições adversas

Melhoramento genético acelera inovação no campo

Novo centro de pesquisas da Unicamp desenvolve tecnologias para o cultivo de cana-de-açúcar e forrageiras

Diferentes estágios de técnicas de melhoramento genético da cana-de-açúcar, do frasco à estufa, no Instituto de Biologia: plantas mais resistentes a condições adversas
Diferentes estágios de técnicas de melhoramento genético da cana-de-açúcar, do frasco à estufa, no Instituto de Biologia: plantas mais resistentes a condições adversas

A cana-de-açúcar é uma das culturas agrícolas mais importantes do Brasil, colocando o país no topo da produção e exportação de seus derivados no mundo. O país, por exemplo, é o maior exportador global de açúcar. Os canaviais ocupam 8,7 milhões de hectares do território nacional e o Brasil responde por mais de 30% do produto que circula no comércio internacional. Apesar de toda essa pujança, a cultura da cana não está livre de sofrer com intempéries que fogem ao controle até mesmo das tecnologias de manejo mais avançadas.

Segundo um levantamento divulgado em novembro de 2024 pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), prevê-se que a safra 2024/2025 de cana-de-açúcar registrará uma queda de 4,8% em relação à safra anterior, um recorde na série histórica. Na última safra, de 2023/2024, foram colhidas 713,2 milhões de toneladas do produto. Já para a safra atual, esperam-se 678,6 milhões de toneladas. A produtividade também deve cair, cerca de 8,8%, de 85,5 mil quilos por hectare (kg/ha) para 78 mil kg/ha, disse a Conab.

A queda na produção explica-se por conta das condições climáticas adversas que atingiram os canaviais, principalmente a falta de chuvas e as ondas de calor intenso, sobretudo no centro-sul, que concentra 91% da produção nacional. O problema não atinge apenas a safra de cana-de-açúcar, mas toda a agricultura. A participação do setor no produto interno bruto (PIB) de 2024 recuou 3,2%. E os prejuízos registrados em diversas culturas, segundo uma avaliação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), devem-se à crise climática.

Os esforços para mitigar os efeitos das mudanças climáticas mostram-se urgentes, mas os pesquisadores conseguem hoje tornar plantas como a cana-de-açúcar mais resistentes a condições adversas e a outros fatores que influenciam a produtividade agrícola. Por meio de processos de melhoramento genético, pode-se introduzir em cultivares propriedades que os tornam menos dependentes de interferências externas. Esse trabalho caberá ao recém-inaugurado Centro de Melhoramento Molecular de Plantas (CeM²P) – Center for Plant Molecular Breeding, uma rede de pesquisa instalada na Unicamp com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em parceria com empresas e instituições públicas, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Instituto Agronômico (IAC). Com foco nas culturas de cana-de-açúcar e de gramíneas forrageiras tropicais – espécies utilizadas em pastagens –, a unidade buscará acelerar o desenvolvimento tecnológico e a inovação nos processos de melhoramento genético e fortalecer os serviços prestados pelos órgãos públicos ao agronegócio.

O professor Rafael Ribeiro: melhoramento tem vários ciclos de plantio
O professor Rafael Ribeiro: melhoramento tem vários ciclos de plantio
O professor Rafael Ribeiro: melhoramento tem vários ciclos de plantio
O professor Rafael Ribeiro: melhoramento tem vários ciclos de plantio

Novas variedades

O melhoramento genético de plantas consiste na criação de novas variedades de espécies a partir da seleção de características desejáveis, como maior valor nutricional e resistência a pragas, por exemplo. A ideia é fazer com que os alelos (as formas alternativas de um mesmo gene) responsáveis por expressar as características desejadas se perpetuem nos novos indivíduos. A forma tradicional de se realizar esses melhoramentos vale-se do cruzamento entre espécies com materiais genéticos diferentes, da criação de híbridos, da separação e, finalmente, da seleção de indivíduos que apresentam as características desejadas, entre outros métodos. Trata-se de um processo longo, que exige grandes quantidades de material vegetal.

“O melhoramento clássico pode levar de 15 a 17 anos, em média”, detalha Rafael Ribeiro, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e pesquisador do CeM²P. “É necessário fazer os cruzamentos, analisar a genética da progênie [conjunto de descendentes resultantes dos cruzamentos], identificar os melhores materiais. Precisamos de vários ciclos de plantio e de colheita para comprovar quais dos novos indivíduos são realmente positivos.” No fim do processo, de acordo com o docente, poucas culturas conseguem sucesso.

Uma fronteira tecnológica da área foi cruzada pela edição gênica, que consegue fazer alterações diretamente no código genético das espécies. Nessa operação, os pesquisadores utilizam técnicas como a edição de DNA, retirando da cadeia de genes exatamente os que conferem à cultura os aspectos indesejados, como se os cortassem com uma tesoura. Entre os outros métodos possíveis constam a inserção de genes de organismos, como vírus e bactérias, no DNA das plantas para torná-las resistentes a esses organismos e a identificação de marcadores moleculares para genes específicos, que aceleram o processo de seleção de progênies, dispensando longos ciclos de plantio e colheita. O CeM²P pretende desenvolver esses recursos. “Podemos fazer pequenas alterações pontuais em meio a bilhões de bases moleculares do genoma”, aponta Marcelo Menossi, professor do IB e pesquisador do centro.

A professora Anete Souza, coordenadora do CeM²P: atividades integradas
A professora Anete Souza, coordenadora do CeM²P: atividades integradas

Por meio das técnicas, o grupo buscará acelerar o melhoramento já obtido por instituições parceiras como a Embrapa, o IAC, a Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta) e a Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa). Os avanços não se restringem ao trabalho diretamente relacionado com a genética das plantas. Tecnologias vindas de outras áreas de pesquisa também devem auxiliar a superar as futuras etapas. Os cientistas da rede pretendem aliar às ciências ômicas (envolvidas na caracterização e quantificação de conjuntos de moléculas biológicas) as técnicas de fenotipagem, a ciência de dados e a modelagem matemática.

Os docentes exemplificam como isso pode acelerar o processo. Nos casos em que se faz necessário avaliar as diferenças físicas e funcionais de uma planta para identificar quais indivíduos têm as características desejadas, o fato de haver uma grande quantidade de exemplares a serem analisados pode se tornar um entrave, como ocorre na avaliação de um canavial, por exemplo. “Nesse caso, pensamos em uma fenotipagem de alto rendimento, com instrumentação avançada, como o uso de drones e o processamento de imagens aéreas com inteligência artificial”, explica Ribeiro, em referência ao processo de descrição e análise dos aspectos físicos e funcionais das plantas. Segundo o professor, esse tipo de pesquisa precisa estar aliada aos estudos de modelagem e de ciência de dados. “Pensamos em uma estrutura na qual essas frentes conversem entre si.”

Para os pesquisadores, o intercâmbio entre diferentes especialidades proporcionado pelo caráter interdisciplinar do centro oferece um diferencial que beneficiará o setor agrícola. “Existem aspectos de fisiologia vegetal que não domino, mas o Ribeiro entende muito bem disso. No entanto eu tenho expertise para manipular a fisiologia de uma planta do ponto de vista molecular. Ele, não. Já a [professora] Anete Souza [coordenadora do CeM²P] domina os métodos para encontrar um gene específico relacionado a esses aspectos fisiológicos”, ilustra Menossi. Outra vantagem se dará com o ganho institucional para a Universidade por meio da infraestrutura a ser implantada. “Do ponto de vista da bioinformática, o poder computacional que teremos com o projeto equivale, hoje, a mais que o dobro da capacidade instalada no Instituto de Biologia”, reflete Renato Vicentini, também docente do IB.

O professor Marcelo Menossi: alterações em bilhões de bases moleculares
O professor Marcelo Menossi: alterações em bilhões de bases moleculares
A professora Anete Souza, coordenadora do CeM²P: atividades integradas
A professora Anete Souza, coordenadora do CeM²P: atividades integradas
O professor Marcelo Menossi: alterações em bilhões de bases moleculares
O professor Marcelo Menossi: alterações em bilhões de bases moleculares

Pastos e canaviais

Apesar de amplamente difundida no país, a cana-de-açúcar é uma cultura que apresenta uma série de desafios para seu melhoramento. Sob o olhar leigo, a maior limitação pode parecer a dificuldade de observar as características distinguíveis de uma grande quantidade de indivíduos aparentemente iguais em um mesmo canavial. Entretanto o grande entrave encontra-se no próprio genoma da planta. Souza conta que a cana-de-açúcar é um tipo de planta poliplóide, com mais de dois pares de cada conjunto cromossômico. O número pode variar de 10 a até 14 cópias de cada um, chegando a mais de 110 cromossomos individuais – os seres humanos, em comparação, apresentam 23 pares, totalizando apenas 46 cromossomos. “Mas nem sempre é assim, porque o número varia entre cada cultivar. Nunca sabemos ao certo quantos pares uma planta possui”, comenta a coordenadora.

A dificuldade de decifrar o genoma representa um ponto de partida decisivo para que esforços como a caracterização fenotípica de grandes quantidades de exemplares e as possibilidades de edição gênica façam-se viáveis. Para isso, os pesquisadores esperam contar com mecanismos tecnológicos que podem ser desenvolvidos pelo CeM²P. “Nossas atividades precisarão ser integradas. Se precisarmos identificar um gene específico, por exemplo, lançaremos mão da bioinformática e da análise de dados”, afirma Souza.

Outra cultura que merecerá a atenção dos pesquisadores envolvidos no projeto é a de gramíneas forrageiras, utilizadas como pastagem para a criação de gado. “O melhoramento de forrageiras é algo muito recente no país. Até meados de 2008, a pecuária só utilizava pastagens silvestres”, lembra a cientista. Essas espécies de planta também apresentam características genéticas complexas, como a tetraploidia (anomalia em que as células de um indivíduo possuem quatro cópias de cada cromossomo). Os desafios nesse caso, contudo, não se resumem às questões genéticas, envolvendo também desbravar pastagens desconhecidas, com espécies silvestres de que não se tem sequer o registro.

No Brasil, destacam-se os conhecimentos já obtidos em torno dos gêneros Brachiaria, Paspalum e Panicum. Porém cada um deles pode apresentar várias espécies, que demandam caracterização fenotípica e estudos genéticos antes de dar início a um processo de melhoramento, além de ser possível ocorrer o cruzamento entre diferentes espécies, originando novos indivíduos. Souza menciona os estudos realizados pela Embrapa para conhecer melhor as espécies de Paspalum, um gênero brasileiro, e uma colaboração já existente para o melhoramento das forrageiras. “Só agora a agropecuária percebeu a importância de estudarmos as forrageiras brasileiras. Não é possível dependermos apenas de poucas espécies”, argumenta a coordenadora, em referência à grande disseminação da Brachiaria, gênero natural da África.

Além da resistência a pragas, o melhoramento de forrageiras pode desenvolver novas variedades que combinem altas taxas de biomassa com um maior valor nutritivo para o gado. Os cientistas também trabalham para selecionar variedades que mantenham a produtividade ou que sofram perdas mínimas durante os períodos de seca. Atualmente, a agricultura consome cerca de 72% dos recursos hídricos do país – e 70% do mundo. Mesmo que muitas plantações aproveitem a água das chuvas, os períodos de seca mais longos devem ampliar a dependência em relação à irrigação. De outro lado, o retorno ao meio ambiente dessa água usada para irrigar pode ser danoso devido ao risco de levar aos lençóis freáticos agrotóxicos e fertilizantes e de aumentar a concentração de sais no solo. “Se reduzirmos a demanda por recursos hídricos, o benefício ambiental será muito grande”, aponta Menossi.

O professor Renato Vicentini: infraestrutura implantada vai trazer ganhos
O professor Renato Vicentini: infraestrutura implantada vai trazer ganhos
O professor Renato Vicentini: infraestrutura implantada vai trazer ganhos
O professor Renato Vicentini: infraestrutura implantada vai trazer ganhos

Novo modelo

A criação do CeM²P materializa um avanço que ultrapassa o desenvolvimento tecnológico dentro de sua área de atuação. O modelo das parcerias seladas entre os pesquisadores da Unicamp e os de instituições públicas também representa uma novidade. A forma mais comum de constituição de centros de pesquisa do tipo passa pelas parcerias com empresas e instituições privadas, que arcam com os custos financeiros. O CeM²P inova ao firmar parcerias com instituições públicas que oferecem como contrapartida campos experimentais com plantações e cultivos realizados, desafios reais já existentes e um setor agrícola pronto para implementar o que for desenvolvido. “Nosso objetivo é levar a inovação a essas empresas e instituições públicas”, afirma Souza, ressaltando que o modelo também permite que a propriedade intelectual das inovações obtidas fique nas mãos das instituições públicas. O valor investido pela Fapesp, por exemplo, somará R$ 38 milhões ao longo de dez anos.

Além da Embrapa, do IAC, da Apta e da Ridesa, o centro manterá parcerias com a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e outras instituições de oito países. Na Unicamp, o projeto envolve membros do IB, do Instituto de Computação (IC), do Instituto de Artes (IA), do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc) e do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (Cbmeg). “A quantidade de massa crítica que será formada pelo centro será muito grande”, diz Ribeiro. Os pesquisadores ressaltam ainda que a grande lição a perpetuar-se é o esforço interdisciplinar feito para encontrar soluções que fortaleçam o campo e as instituições públicas. “A agricultura tem mesmo esse caráter integrador”, sintetiza a coordenadora.

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