IA desencadeia cenário imprevisível na economia

Pesquisa investiga impactos de longo prazo da inteligência artificial

Enquanto as maiores empresas de tecnologia do mundo (as chamadas big techs) injetam centenas de bilhões de dólares na sua própria evolução, a China anunciou, recentemente, um fundo de cerca de 1 trilhão de yuans (cerca de US$ 138 bilhões) para bancar o desenvolvimento do setor. Os valores traduzem a complexidade da inovação e revelam a dimensão de uma competição que ganhou contornos geopolíticos. Agora doutor em ciências econômicas, Wagner Madeira explica que, para as grandes corporações, investir é a única alternativa: quem ficar de fora pode ver seu modelo de negócio ruir. Mesmo com aportes superlativos, o cenário mostra-se imprevisível. O impacto que a chegada da inteligência artificial chinesa DeepSeek causou, no início do ano, ofereceria um exemplo: 48 horas após seu lançamento, o valor de mercado das big techs despencou US$ 700 bilhões. Madeira examinou a inteligência artificial (IA) sob uma perspectiva econômica, em uma pesquisa de doutorado conduzida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. Sob orientação do professor Célio Hiratuka, o pesquisador realizou seu estudo no Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia (Neit) do IE. Do trabalho, originou-se a tese “Inteligência Artificial: Impactos Econômicos e Estratégias das Corporações na Aurora da Sexta Revolução Tecnológica”.
O autor iniciou sua pesquisa com uma análise a respeito da evolução da inteligência artificial sob uma perspectiva de longo prazo. Ao investigar a magnitude e a dimensão de seus efeitos sobre a sociedade e a economia, Madeira consultou textos que tratam de revoluções tecnológicas, sobretudo os trabalhos de Christopher Freeman e Carlota Perez, e apontou o que considera o surgimento de uma nova era. Para examinar como o novo mercado se organizou, o pesquisador estudou as estratégias adotadas pelas marcas mais poderosas – Google, Meta, Microsoft, Amazon e Apple – ao disputarem a supremacia tecnológica.
A fim de explorar os possíveis impactos da inovação, Madeira construiu um modelo econômico. Considerando especificamente a competição entre o trabalho e a inteligência artificial, constatou que a rápida popularização do uso da ferramenta – e consequentemente sua queda de preço – pode não ser benéfica para os trabalhadores. “Porque você terá um substituto para o trabalho com preço mais baixo.”


Escala e emergência
Embora a disseminação da IA seja comumente associada à ideia de uma quarta revolução industrial, para o pesquisador, seu desenvolvimento levou o mundo à sexta revolução tecnológica. Sucedendo, por exemplo, a chegada da tecelagem, símbolo da primeira revolução, e o lançamento do automóvel Ford T, que representou a terceira. O marco, segundo Madeira, seria o ano de 2012. Mais precisamente, o momento em que as chamadas redes neurais artificiais (sistemas de computador que imitam o funcionamento do cérebro humano) superaram pela primeira vez e de maneira inconteste o desempenho de outras tecnologias em uma tarefa de reconhecimento de imagem. “Foi a primeira vez que se destacou o uso das chamadas GPUs [sigla em inglês para unidades de processamentos gráficos, fundamentais para que a inteligência artificial atingisse seu revolucionário grau de desenvolvimento].”
O pesquisador criou o conceito de cognição sintética para distinguir o insumo comercializado pelas empresas de tecnologia da ideia de inteligência artificial como um campo de pesquisa científica. “É o produto que se vende, a aplicação da inteligência artificial para prover um serviço utilizado pelas firmas em seu processo produtivo.” Assim como o petróleo teria sido o insumo-chave da quarta revolução tecnológica e o semicondutor, da quinta, a cognição sintética representaria o elemento fundamental para a sexta revolução.
Em seu trabalho, Madeira busca discutir como as empresas estão mudando seus processos internamente ao usarem tecnologias que permitem a integração dos seus sistemas com os modelos de IA desenvolvidos pelas big techs. “Não se trata de um simples robô que está respondendo ao pedido de um cliente. Ao se comunicar com o sistema interno de uma empresa, o programa passa a realizar tarefas que antes cabiam aos funcionários. O acesso ao processo interno da empresa, aos pedidos dos clientes, à política interna da companhia, a seus dados e às características dos seus produtos, tudo isso permite que as big techs treinem seus modelos e perpetuem sua vantagem competitiva. Há um potencial econômico nessa integração.”
A pesquisa, ressalta Hiratuka, foca um ponto crucial que merece atenção: o fato de haver surgido uma possibilidade inédita de concentração de poder econômico. “Assim como em outros momentos históricos, a mudança tecnológica vem acompanhada do surgimento de corporações gigantes, marcadas pela tentativa de controlar economicamente os fluxos de renda associada à difusão da tecnologia”, destaca o professor. “Mas, como essa nova onda é basicamente digital, uma vez desenvolvida, pode ser distribuída em segundos. Sua adoção e difusão podem ser muito rápidas, o que pode revolucionar o jeito que se trabalha, como se ganha dinheiro, quem vai ter emprego e quem não vai ter emprego.”
O pesquisador notou que o cenário no qual a IA revoluciona a economia é singular e se distingue por duas características: escala e emergência. O volume de dinheiro necessário para financiar o processo de inovação, explica Madeira, supera os valores tradicionalmente aplicados na indústria. Já as propriedades que a inteligência artificial irá adquirir, com sua evolução, são emergentes, isto é, nem mesmo quem trabalha com a tecnologia consegue saber, de antemão, quais serão as suas novas habilidades.


A fim de investigar as estratégias que os líderes do mercado de tecnologia escolheram para competir entre si e com o restante do mundo, o pesquisador realizou um levantamento sobre patentes e publicações de modelos de inteligência artificial. O resultado, afirma, põe em xeque a capacidade de inovação dessas companhias e seu papel de liderança no desenvolvimento tecnológico. A participação das grandes corporações se mostrou inferior ao esperado, especialmente no campo das patentes, em que a China se destacou. O estudo aponta a existência de três correntes estratégicas distintas, que transcendem a inovação tecnológica. De olho na liderança do mercado, Amazon, Google e Microsoft, que possuem tecnologia de nuvem, apostam em investimentos massivos em infraestrutura e em seus modelos, além do controle da distribuição pela nuvem. “Elas desenvolvem seus modelos próprios e investem nas startups para poder distribuir seus produtos”, afirma o pesquisador. A Apple, que possui uma base grande de usuários fiéis, apostou no seu modelo-padrão de negócios, ou seja, lucrar com a distribuição da tecnologia no seu ecossistema.
Já a Meta, que não possui nuvem para comercializar inteligência artificial, abriu seus modelos para todos. Com a medida, procura forçar a queda do preço do produto e, consequentemente, diminuir a capacidade de geração de renda de seus concorrentes. Para o pesquisador, trata-se da tática mais interessante. “Zuckerberg [Mark Zuckerberg, controlador da empresa] divulgou uma carta explicando os motivos pelos quais era a favor de abrir os modelos, mas desconfio que não se trata de altruísmo. Como não ia ganhar dinheiro com isso, divulgou seus modelos.”
O surgimento da DeepSeek, segundo Hiratuka, mostra que novas rodadas dessa disputa podem estar por vir. Segundo o professor, as mudanças tecnológicas e econômicas impostas pela IA precisam ser acompanhadas de perto. “No caso do Brasil, que acabou de lançar o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, essa necessidade também é importante, a fim de descobrir quais espaços há para o país nessa disputa.”