

História impressa
Jornais e obras literárias embasam pesquisas de grupo de historiadores

A literatura e a imprensa de um determinado contexto histórico e geográfico transcendem o mero registro escrito, funcionando como testemunhos das complexidades sociais de sua época. Para os historiadores, cada elemento dessas produções culturais – desde o processo de editoração, o suporte material, as técnicas de impressão até as imagens, o público-alvo e o contexto de produção – se transforma em um grande repositório de informações, possibilitando compreender o passado.
Mais do que documentos, esses materiais oferecem janelas que permitem aos pesquisadores entender as nuances culturais, as tensões sociais, os imaginários coletivos e as estruturas de poder de um dado período. A análise desses bens culturais impressos permite reconstruir fatos históricos e os valores e as dinâmicas sociais que os produziram.
Tendo ciência disso e com um percurso de formação que remete a esse pensamento, dois jovens docentes do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp criaram o Núcleo de Estudos da Edição, Literatura e Imprensa (Neelim), um grupo que se dedica a pesquisar, além da história da imprensa e da edição, as relações entre história e literatura.
Criado e coordenado pelos professores Raquel Gomes e Rodrigo Camargo de Godoi, o grupo reúne estudantes da graduação e da pós-graduação interessados nas temáticas e na pesquisa realizada em arquivos físicos dos tempos das hemerotecas e em arquivos digitais.
“Trata-se de uma tradição de pesquisa já consolidada. O que queremos no Neelim é nos aprofundar nas relações que os historiadores e historiadoras podem estabelecer com o material escrito”, explica Gomes, chefe do Departamento de História.
Entre os trabalhos realizados no âmbito do núcleo, está a orientação de pesquisas sobre a imprensa haitiana no século XVIII, a sindicalização de jornalistas no Brasil entre 1870 e 1920 e a história das mulheres jornalistas no país. Há também investigações sobre as agências de notícias na América do Sul durante o período entre guerras e sobre a liberdade de imprensa no Brasil Império.
Godoi, coordenador do curso de graduação em história, pesquisou na sua livre-docência os crimes de imprensa cometidos no Brasil entre 1820 e 1930, analisando cerca de cem processos judiciais sobre injúrias verbais, escritas e impressas que correram em Campinas. “Eu estava interessado em entender como os regimes constitucionais do século XIX regularam a circulação de jornais e impuseram limites à liberdade de imprensa e expressão, responsabilizando-os legalmente no caso de abusos”, detalha.
Entre os projetos da graduação e da pós-graduação, as fontes de pesquisa variam enormemente. No caso do processo de sindicalização dos jornalistas, a orientanda debruçou-se sobre os habeas corpus obtidos por profissionais presos no período. Outra tese de doutorado trabalhou com censos profissionais para compreender o processo de feminilização do jornalismo.
O docente destaca a importância de retomar métodos tradicionais da historiografia em tempos nos quais o digital se sobrepõe ao analógico. “Tenho feito isso em minhas pesquisas e convidado meus alunos a fazerem o mesmo: vamos sair da hemeroteca. A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional é fundamental, pois preserva e dá acesso a milhares de páginas de jornais desde o século XIX. Mas é possível contar uma história da imprensa também com outras fontes, como processos criminais, que os historiadores já usam há muito tempo. Não se trata de nenhuma invenção da roda.”
Gomes, por sua vez, direciona suas pesquisas para a literatura sul-africana e seus desdobramentos no contexto pós-Apartheid. “A literatura é um espaço de negociação de identidades e memórias, especialmente em contextos de violência e opressão”, destaca.
A pesquisadora conta que teve maior acesso à história da África na sua graduação, após uma mudança na lei inserir o ensino da história daquele continente no currículo básico. “E foi nesse movimento que a Unicamp, o IFCH em particular, trouxe o primeiro professor de história da África para cá, um professor dedicado exclusivamente à história da África”, relata.
“Comecei a trabalhar com a história da África do Sul e a literatura sul-africana na graduação. Meu ingresso no mundo literário surge na relação da história com a literatura, por um não entender, uma incapacidade de compreensão do texto literário, porque eu não tinha informação sobre o que estava acontecendo naquele romance sul-africano”, explica.
Gomes também orienta pesquisas sobre a relação entre literatura e o imperialismo britânico na Índia e no Japão. “Trabalhamos com um olhar que busca deslocar o eixo de análise para outros espaços, como a África do Sul, o Japão e Cuba.” De acordo com a docente, essa abordagem amplia o entendimento sobre como os discursos literários e jornalísticos participam da construção da história global.


Nascimento
O Neelim surgiu em meados de 2019, dois anos após Godoi e Gomes ingressarem como pesquisadores e professores na graduação e pós-graduação em história. A história deles, porém, não começa na docência. Os dois se conheceram e se tornaram amigos no início de seus doutorados.
“Viemos de uma linha de pesquisa comum, com uma tradição forte no diálogo entre história e literatura”, explica Godoi, que cita Sidney Chalhoub, professor e pesquisador da Unicamp por 30 anos e que hoje atua na Universidade de Harvard (Estados Unidos). Gomes lembra também dos professores Omar Ribeiro Tomaz, Izabel Marson e Maria Stella Martins Bresciani, uma das fundadoras dos cursos de graduação e pós-graduação de história da Unicamp.
O Neelim surgiu meses antes da pandemia de covid-19. “Criamos o núcleo e poucos meses depois tudo fechou”, lembra Godoi. O desafio em promover o núcleo diante daquele cenário transformou-se em uma oportunidade para os pesquisadores ao organizarem webinários com pesquisadores de dentro e de fora do Brasil.
Atualmente, o Neelim acumula mais de 75 orientações entre iniciações científicas, mestrados e doutorados, além de supervisões de pós-doutorado. Neste ano, o grupo planeja retomar a realização de seminários presenciais e buscar financiamento para expandir os trabalhos de pesquisa. “Nosso objetivo é continuar expandindo os horizontes da pesquisa histórica e literária, trazendo novas perspectivas e conexões globais”, conclui Godoi.