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A guardiã das guardiãs da biodiversidade

Bióloga obtém registros fotográficos de onças-pardas e de outros felídeos, além de 30 espécies, em unidade de conservação

Onça parda
Flagrante de onça-parda: 34 câmeras espalhadas em áreas do Parque Estadual de Campos do Jordão
Bióloga obtém registros fotográficos de onças-pardas e de outros felídeos, além de 30 espécies, em unidade de conservação

A guardiã das guardiãs da biodiversidade

Bióloga obtém registros fotográficos de onças-pardas e de outros felídeos, além de 30 espécies, em unidade de conservação

Flagrante de onça-parda: 34 câmeras espalhadas em áreas do Parque Estadual de Campos do Jordão

Entre um fragmento e outro de mata, segundo estimativas, 14 mil onças-pardas (Puma concolor) – cerca de 10 mil na Amazônia e outras 4 mil nos demais biomas do Brasil – sobrevivem enfrentando ameaças crescentes, desde atropelamentos em rodovias até o avanço da urbanização, a caça, o ataque de animais domésticos e a própria degradação dos seus habitats. Em geral, onde há onça-parda, também se encontra um conjunto formado por outros felídeos neotropicais.

Com 34 armadilhas fotográficas espalhadas pelo Parque Estadual de Campos do Jordão (PECJ), a bióloga Rhayssa Terra de Faria capturou 138 imagens que confirmaram a presença do animal e de outros felídeos, entre os quais gatos-do-mato-pequenos-do-sul (Leopardus guttulus), gatos-maracajás (L. wiedii), jaguatiricas (L. pardalis) e gatos-mouriscos (Herpailurus yagouaroundi), além de outras 30 espécies de mamíferos de médio e grande porte, como o furão-pequeno (Galictis cuja), que nunca havia sido fotografado no local. O estudo concluiu que, não obstante o parque ser uma unidade de conservação (UC), o avanço do turismo representa hoje mais uma ameaça para os felídeos e para a própria diversidade como um todo do local.

Orientada pela professora Eleonore Zulnara Freire Setz, do Departamento de Biologia Animal (DBA) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, a bióloga investigou os diversos aspectos da ecologia dos felinos predadores que vivem no parque. A partir do levantamento, analisou em sua dissertação de mestrado a qualidade do habitat, com o propósito de apresentar dados para subsidiar as decisões em relação ao PECJ, sob a perspectiva da conservação das espécies.

Na sequência das fotografias feitas no parque, gato-do-mato-pequeno, paca com filhote, veado e queixada: fezes forneceram as revelações mais relevantes dos estudos
Na sequência das fotografias feitas no parque, gato-do-mato-pequeno, paca com filhote, veado e queixada: fezes forneceram as revelações mais relevantes dos estudos
Na sequência das fotografias feitas no parque, gato-do-mato-pequeno, paca com filhote, veado e queixada: fezes forneceram as revelações mais relevantes dos estudos
Na sequência das fotografias feitas no parque, gato-do-mato-pequeno, paca com filhote, veado e queixada: fezes forneceram as revelações mais relevantes dos estudos

Predador de topo

Dentro dos ecossistemas, os felídeos representam espécies-chave; e dentro do conjunto de felídeos, a onça-parda exerce o papel de predador de topo por, em muitos ecossistemas, ser o de maior porte. “Se você tira o predador de topo, a biodiversidade se desmancha. Há um desequilíbrio no ecossistema com o aumento da população das presas. Nessa cadeia em que um come o outro, vai sobrar o gambá, que anda tanto no chão quanto nas árvores e que pode acabar, portanto, com ratos e passarinhos. O controle populacional dos bichos maiores sobre os menores é importante. Por isso dizemos que a onça-parda é nossa guardiã da diversidade”, explica a orientadora.

Segundo Faria, tão importante quanto a guardiã, figura como fundamental a conservação das espécies menores de felinos, algo que, no entanto, tem sido negligenciado. “Ainda existem lacunas no conhecimento ecológico sobre os felídeos de menor porte”, diz a pesquisadora, apaixonada por essa família de animais desde a infância. “Os gatos eram os irmãos que eu nunca tive”, afirma a bióloga ao dar a dimensão de seu envolvimento com esses seres vivos. Hoje, Faria é tutora de dois gatos: Sukita e Wandinha. Mas, para realizar sua pesquisa sobre os felídeos, espécies discretas e de difícil visualização, precisou fazer um estudo in situ, de forma não invasiva. Além da captura de imagens com as armadilhas fotográficas, a bióloga lançou mão de um recurso que lhe permitiu aprofundar sua análise: a coleta de fezes.

A bióloga Rhayssa Terra de Faria exibe amostra recolhida em trabalho de campo: avanço do turismo é ameaça para espécies
A bióloga Rhayssa Terra de Faria exibe amostra recolhida em trabalho de campo: avanço do turismo é ameaça para espécies

As imagens contribuíram para a realização do estudo. No entanto as mais importantes revelações estavam nas fezes deixadas pelos animais nas trilhas percorridas dentro do parque, diz Faria, cuja pesquisa contou com a coorientação do professor László Károly Nagy, também do IB. Depois de seguir, literalmente, os rastros dos animais, em um minucioso trabalho investigativo, a pesquisadora analisou, no Laboratório de Ecologia e Comportamento de Mamíferos (Lama) do IB, os pelos, as penas, os pedaços de dentes de roedores, as escamas de cobras e os demais tipos de vestígio que encontrou nas amostras de fezes. “São coisas muito pequenininhas. Uma investigação de detetive.”

A coleta de fezes apresentou uma probabilidade de detecção de 37%, muito maior do que a obtida a partir das armadilhas fotográficas, de 12%. “Esse método para registrar os animais se mostrou uma alternativa mais barata e mais eficiente do que as armadilhas fotográficas”, diz a bióloga. “Pensando na falta de dinheiro das universidades e dos parques, isso pode ajudar.”

A bióloga Rhayssa Terra de Faria exibe amostra recolhida em trabalho de campo: avanço do turismo é ameaça para espécies
A bióloga Rhayssa Terra de Faria exibe amostra recolhida em trabalho de campo: avanço do turismo é ameaça para espécies
A professora Eleonore Zulnara Freire Setz, orientadora da pesquisa: predador de topo é fundamental para a biodiversidade
A professora Eleonore Zulnara Freire Setz, orientadora da pesquisa: predador de topo é fundamental para a biodiversidade

Ameaça anunciada

Dentre os resultados mais importantes da pesquisa inclui-se a constatação da importância da vegetação nativa para a ocupação de uma área por essas espécies. “Elas precisam de vegetação nativa, inclusive a onça-parda, que se desloca constantemente e que passa pelas plantações de cana-de-açúcar existentes ao redor do parque”, afirma. O PECJ compõe-se de um mosaico vegetal formado por matas mistas – com pinheiros (Pinus sp.), que cobrem 20% do território, e araucárias (Araucaria angustifolia). A temperatura média anual é de 14,9 ºC, com incidência de geadas no inverno.

Em sua análise, Faria concluiu que as áreas com habitats de maior qualidade para os felídeos encontram-se nas porções leste, sudeste e sul do parque, onde há uma menor degradação ambiental e uma menor presença humana, por conta do difícil acesso. As áreas funcionam como um refúgio para as espécies ameaçadas. As covariáveis de cobertura vegetal mostraram-se importantes para explicar a presença de gatos-do-mato-pequenos-do-sul e onças-pardas. Já no caso dos gatos-maracajás, a declividade revelou-se a covariável mais importante. O parque conta com formações que apresentam de 1.000 m a 2.000 m de altitude. No caso das jaguatiricas, a densidade hidrográfica e a densidade de trilhas foram as variáveis mais significativas, ambas com efeito positivo no grau de ocupação das áreas.

A professora Eleonore Zulnara Freire Setz, orientadora da pesquisa: predador de topo é fundamental para a biodiversidade
A professora Eleonore Zulnara Freire Setz, orientadora da pesquisa: predador de topo é fundamental para a biodiversidade

Localizado na Serra da Mantiqueira, na divisa do Estado de São Paulo com Minas Gerais, o PECJ foi o primeiro parque estadual paulista, criado em 1941. A área de 8.172 hectares transformou-se em um ponto turístico que atrai muitos visitantes interessados em conhecer uma das poucas manchas de floresta ombrófila mista da Região Sudeste do Brasil, com cachoeiras e vegetação nativa que podem ser apreciadas no percurso das trilhas. Sob a administração de uma empresa privada desde 2019, por meio de uma concessão pública, o parque deverá expandir, em breve, sua área turística.

“Se houver uma expansão do turismo, as espécies estão ameaçadas”, afirma a autora da dissertação, que cruzou dados levantados pelos registros fotográficos com o mapeamento da cobertura vegetal do parque e, finalmente, com as análises das fezes dos animais. Dessa forma, Faria investigou a cadeia alimentar das cinco espécies estudadas e suas relações com o ambiente no qual estão inseridas. “Ainda temos muitas amostras de fezes a serem triadas.” A orientadora do mestrado acredita que novas pesquisas ainda poderão ser realizadas com base nesse material. “A dieta dos felídeos no parque inclui ratinhos, porque eles comem o que acharem. Qual será o impacto da redução do tamanho das presas? Vão reproduzir menos? Serão mais magros? Tudo isso é muito importante”, destaca.

Durante sua pesquisa, Faria publicou um artigo na revista do Instituto Florestal que teve grande repercussão no meio científico em função do registro fotográfico inédito do furão. Entre as 30 espécies de mamíferos de médio e grande porte registrados pelas armadilhas fotográficas – como porcos, tatus, cervídeos, pacas e roedores diversos –, 26 eram espécies nativas e 4, exóticas.

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