Conteúdo principal Menu principal Rodapé
Resenha-logo
Saussure

Saussure, a estrutura de um pensamento na história

Saussure

Até agora, o leitor não especializado interessado em uma visão panorâmica, mas ao mesmo tempo rigorosa, sobre a vida e a obra de Ferdinand de Saussure teria que fazer um passeio por um certo número de publicações profissionais e técnicas, geralmente do campo da história das ideias linguísticas ou da historiografia linguística, áreas em que há uma vitalidade intelectual a indicar o quanto um “retorno a Saussure” ainda consegue suscitar questões para o campo dos estudos da linguagem e da(s) língua(s). John E. Joseph, professor da Universidade de Edimburgo (Reino Unido) e autor da biografia de Saussure resenhada aqui, realiza com notável erudição e meticulosidade a tarefa de apresentar o percurso pessoal e intelectual do mestre genebrino a um público mais amplo que o dos linguistas tarimbados.

Conforme ressalta o tradutor brasileiro da obra, se há uma distância de mais de 50 anos entre a versão original do Curso de Linguística Geral, de 1916, e a versão brasileira, de 1970, o fato de os manuscritos reunidos em Escritos de Linguística Geral, publicados pela primeira vez em 2002, terem levado apenas dois anos para saírem no Brasil indica haver um interesse pela obra saussuriana no nosso país. De fato, Joseph confessa ter ficado surpreso “com o alto nível das atividades na área” no território nacional a ponto de apontar o português como “a verdadeira língua materna da história da linguística na América”.

Nessa direção, não poderia ter vindo em mais boa hora a biografia publicada em inglês em 2012 e traduzida para o francês em 2021. A obra ganha agora sua versão em português, em uma tradução cuidadosa e precisa de Bruno Turra, ele mesmo um estudioso de Saussure com uma importante tese sobre a escrita em seu pensamento. Cotejando a versão em inglês com a versão francesa e depurando o texto da versão original de alguns erros, segundo afirmou o próprio Joseph – que enfatiza devermos considerar o texto em português como a “versão definitiva” –, a publicação demonstra o ânimo singular das pesquisas sobre Saussure em terras brasileiras, onde talvez sejam aquelas de maior vivacidade e originalidade no campo das pesquisas sobre o pensamento saussuriano.

Muito cedo, com apenas 21 anos, Saussure se notabiliza pelo Mémoire sur le Système Primitif des Voyelles dans les Langues Indo-Européennes, obra na qual surgem elementos que serão atribuídos apenas ao Saussure “maduro”, como a ideia de que tudo na língua opera segundo um sistema e valores negativos e diferenciais. De fato, o modo como Saussure conceitua o nascente conceito de “fonema” nesse momento já oferece as bases para o que será conhecido como estruturalismo, pois se trata de uma unidade dentro de um sistema socialmente partilhado. Esse Saussure acessível apenas a um público muito especializado agora se torna domínio comum graças à biografia ora lançada, que explora justamente o fato de que muito do que viria a se disseminar pelo Curso de Linguística Geral (CLG) já estava presente na obra do Saussure “jovem”. O próprio CLG chega bem tarde à biografia, mas isso tem razão de ser na medida em que os cursos ministrados por Saussure no período de 1907 a 1911 também chegaram bem tarde a sua vida. Não só por essa razão cronológica, mas também porque a biografia se demora muito justificadamente em expor a construção do pensamento de Saussure desde seus primeiros escritos, mobilizando formas de pensar a que o CLG simplesmente dará a forma definitiva.

Frase
Frase

Mesmo o CLG resulta de um acaso fortuito: tendo se aposentado o professor da cadeira de linguística geral da Universidade de Genebra (Suíça), em vez de contratar um novo professor, o Departamento de Instrução Pública decide atribuir a responsabilidade por esse curso ao docente de sânscrito e filologia comparada, isto é, a Saussure. Com 49 anos, Saussure fica encarregado de ministrar um curso mais generalista e para um público menos versado que seus alunos usuais de gótico, alto-alemão, sânscrito, lituano, grego etc. Na verdade, a disciplina de linguística geral era obrigatória e fazia parte do currículo de diversas formações, agregando alunos que nem sempre tinham um interesse específico pela questão das línguas. Além disso, tratava-se de um tema pelo qual Saussure não demonstrava exatamente muito entusiasmo, mesmo porque considerava difícil articular algo de definitivo a seu respeito.

Como já fizeram Françoise Gadet e Michel Pêcheux em A Língua Inatingível, mas também Émile Benveniste, e como Jacques Lacan mais de uma vez assinalou, o biógrafo de Saussure sustenta não haver dois Saussures, um da ordem, da simetria e da razão e outro da desordem, do acidental e do primitivo. Não há Ferdinand deux Saussures (como um certo pós-estruturalismo tentou fixar), mas sim um interesse vivo por aquilo que as línguas têm de paradoxal e de singular dentre os demais sistemas. Para captá-lo, Saussure transitou por anagramas, lendas germânicas, o problema da acentuação em lituano, a questão do tempo, a questão do espaço. É uma mesma pergunta obstinada que encontramos nessa diluição por diferentes temas: onde está o próprio da língua?

A busca por esse “próprio” revela um Saussure soterrado pelo peso de um bisavô cuja celebridade científica ele queria tocar (visada na qual considerava ter fracassado) e interessado por diferentes domínios: a relação entre língua e fenômenos espíritas, a questão da língua dos marcianos, a ideia de que a linguística se assemelha a um sistema de geometria, a questão das lendas germânicas, o mistério dos anagramas… Todas essas incursões nos mostram um Saussure que busca desenhar os fundamentos da linguística e que não se contenta com as formulações que circulam em seu tempo e sobre as quais não teria tempo de assinalar o que precisaria ser corrigido. Um homem que descobre sua vocação muito jovem, torna-se célebre muito jovem, escreve textos fundamentais muito jovem… E que tinha a sensação de não ter mais tempo… Aliás, não era esse um dos problemas fundamentais que apontava com relação ao estudo das línguas – a necessidade de levar em conta o fator “tempo” –, uma questão que coloca a linguística no campo das ciências históricas?


Lauro Baldini é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp

Título: Saussure
Autor: John E. Joseph
Tradução: Bruno Turra
Ano: 2024
Páginas: 904
Preço: R$ 198,00

Livros
Ir para o topo