Outras palavras, novo protagonismo
Outras palavras, novo protagonismo
Projeto rompe com abordagens hegemônicas na área do jornalismo científico

Romper com as lógicas hegemônicas da comunicação nas áreas de ciência e cultura é a proposta do projeto de pesquisa Comunicação, Decolonialidade e Interseccionalidade, desenvolvido pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Criado em 2023, o projeto engloba hoje quatro trabalhos que experimentam diferentes formatos de produção e análise de materiais por meio de abordagens decoloniais e contracoloniais. Uma pesquisa de especialização lato sensu e outra de mestrado inauguraram a fase de defesa dos trabalhos finais, abordando, a primeira, questões de raça e, a segunda, a divulgação cultural no movimento samba-rock em São Paulo e dos coletivos negros no ambiente acadêmico.
As integrantes do grupo de pesquisadoras dizem pretender desestabilizar estereótipos e mecanismos de opressão relativos a gênero, raça, sexualidade e classe presentes no fazer jornalístico, científico e audiovisual e que operam conforme uma ótica eurocêntrica e ocidental – por isso, fala-se em combater uma visão colonial. “Esses são trabalhos que dialogam nessa perspectiva de ruptura das perspectivas hegemônicas heteropatriarcais, brancas etc.”, afirma a pesquisadora do Labjor e orientadora dos estudos, professora Marta Mourão Kanashiro.
Kanashiro espera que o projeto se consolide nos próximos anos, conquistando financiamento e agregando mais trabalhos orientados por essa visão. No momento, também estão em desenvolvimento uma pesquisa que trata do audiovisual e da racialização de pessoas amarelas e outro que adota uma perspectiva transmídia para discutir o letramento racial.


Na prática
O trabalho de conclusão de curso (TCC) de especialização em jornalismo científico realizado por Poliana Martins experimenta a prática de um jornalismo decolonial e também da interseccionalidade dentro da ciência, apresentando uma série de reportagens em torno do tema “mulheres negras em movimento na universidade”. O TCC encontra-se disponível para leitura na revista digital ComCiência.
O material compõe-se de um editorial, duas reportagens e uma entrevista com Mônica Sacramento (pesquisadora e coordenadora programática da organização não governamental Criola), além da resenha do documentário Quem é essa mulher? (2024) – que conta a trajetória da historiadora Mayara Priscila de Jesus em sua pesquisa sobre a baiana Maria Odília Teixeira, a primeira médica negra do Brasil. “A maioria das fontes [jornalísticas] são mulheres negras, e nas fontes teóricas temos referências como Lélia Gonzalez e Kimberlé Crenshaw. O fato de termos mulheres negras na ciência trazendo as suas experiências marca essa interseccionalidade”, afirma Martins.
A primeira reportagem resgata a história das ações afirmativas nas universidades brasileiras. “Experimentando essa proposta de outro fazer jornalístico, eu não tratei o pesquisador da área como um especialista e o estudante que faz parte de um coletivo como apenas um personagem. Todos tiveram uma participação mais ativa dentro da reportagem”, observa Martins. Já a segunda reportagem trata das mulheres negras e a carreira científica, citando pesquisadoras que trabalham dentro e fora das universidades. “Foi muito importante ouvir os depoimentos dessas cientistas sobre como fazer parte de um coletivo negro que marcou a trajetória delas e como isso também abriu espaço para mudar a agenda de pesquisa dentro da universidade.”
Para Kanashiro, o trabalho mexe com a percepção do que é o jornalismo científico ao não apenas investir em uma bibliografia composta por autoras negras, mas também ao questionar como se constrói o material jornalístico e como se escolhem as fontes de informação. “É muito complexo mover o lugar da expertise que está muito enraizado dentro das universidades, ou seja, as pessoas que têm legitimidade para falar sobre ciência – que, em geral, não são as pessoas racializadas.”


Ciência e ficção
O segundo trabalho, a dissertação de mestrado de Bianca Mafra Elia, tem como foco a cultura do samba-rock – parte da cultura negra de São Paulo, considerada patrimônio cultural imaterial da cidade – por meio das ações do Projeto Groove 011, um grupo que mobiliza centenas de pessoas em aulas públicas de dança. A elaboração da pesquisa deu-se lado a lado com a de um documentário sobre esse estilo musical e os bailes de garagem, o que também influenciou a criação de uma metodologia científica que diverge da tradicional.
Nesse sentido, a pesquisa buscou se afastar da ideia de abordar com distanciamento as entrevistas dos membros do Groove 011, usando, ao invés disso, as informações para a narração de cenas, mesclando realidade e ficção. “Eu transformo isso em cheiro, em som, em diálogo. Minha intenção é fazer com o que o leitor entre na história, e não que leia uma pesquisa a partir da minha análise. Isso foi importante para que eu não reforçasse o papel de uma pesquisadora branca querendo decodificar o universo negro de forma distante e fria.”
Em um trabalho imersivo de campo, Elia participou das aulas semanais de samba-rock oferecidas em diferentes espaços de São Paulo, entre 2022 e 2024: Clube Desportivo Municipal (CDM) Anchieta, saída da estação do metrô Tamanduateí e Vale do Anhangabaú, além de eventos pontuais. Sua experiência pessoal faz parte da dissertação, colocando a própria branquitude como uma questão central de reflexão.


O caminhar pela cidade, um conceito inspirado no trabalho do filósofo francês Frédéric Gros, também compõe o processo de construção da pesquisa. Kanashiro destaca um trecho do texto que relaciona os pontos de encontro do Groove 011 com os rios canalizados durante o processo de modernização de São Paulo. “É onde você também tem uma população negra, empobrecida, que o projeto moderno de cidade quer invisibilizar. A possibilidade de essas pessoas estarem nesses espaços não mais pela marcação social negativa com que normalmente são vistas aparece no trabalho de Elia como pulsão de vida, com esses corpos negros dançantes na cidade.”
Kanashiro ressalta, por fim, a participação ativa no processo da banca examinadora, formada pelos professores da Unicamp Marcos Barbai e Carolina Cantarino, durante a realização da pesquisa: “Isso também rompe com hierarquias e promove reconhecimentos”.