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Beatriz Sarlo, uma rebelde disciplinada

Um passeio pela história de uma das maiores intelectuais argentinas e suas passagens pela Unicamp

Na sequência, Beatriz Sarlo em três fases de sua trajetória: criança (decidiu que seria intelectual aos sete anos de idade); com as colegas da Belgrano Girls’ School (terceira da esq. para a dir., na fila superior); e já como crítica conhecida do público

Não entender foi minha experiência primeira e definitiva. Comecei não entendendo e, quase imediatamente, aceitei que esse era o ponto de passagem para tudo o que valia a pena. Convencida de que entender era um trabalho, acostumei-me a que esse trabalho fosse um prazer. (Beatriz Sarlo em No entender, Editora Siglo XXI. A versão digital do livro foi cedida à reportagem pela editora).


“Indócil em tudo, quando se tratava de aprender meu caráter mudava, como se tivesse dupla personalidade.” As palavras, de Beatriz Sarlo, constam em sua última obra, No entender. Sarlo havia acabado de terminar a edição do livro quando morreu, em dezembro de 2024, após sofrer um acidente vascular cerebral. Considerada uma das principais intelectuais argentinas, a estudiosa dizia gostar de “irritar ou fascinar”, reações frequentemente surgidas nas críticas ou nos elogios que recebeu ao longo de sua vida e expressas cruamente em um dos textos sobre sua morte, intitulado “Amar odiá-la”, publicado na Revista Anfibia por Adriano Peirone.

Sua vasta produção conjuga crítica literária com política e torna difícil atribuir-lhe um perfil acadêmico muito rígido. Há quem encontre livros seus na área de literatura. Outros os acharão nas prateleiras de sociologia. “Convicta”, “polêmica” e “incisiva” são adjetivos que acompanharam sua trajetória. Uma criança que se decidiu por sua carreira aos sete anos, após descobrir que a palavra “intelectual” significava “alguém que pensava, lia e escrevia”, flertou na juventude com o peronismo e, na idade adulta, tornou-se uma pensadora crítica ao kirchnerismo. Sarlo deixou a militância dos anos 1960 e 1970, quando participou de organizações marxistas, para adotar uma posição, mais tarde, que classificava como “social-democrata sem partido”. Era uma rebelde e se colocava ao lado de outros rebeldes porque, em suas palavras, “são sempre melhores que os submissos”. 

Sarlo remodelou cânones literários, analisou de forma inovadora a obra de Jorge Luis Borges, um dos principais escritores argentinos, refletiu sobre a modernidade, a mídia, a arquitetura, o cinema e a política. Trabalhou também como jornalista e, ao buscar se aproximar de críticos literários tidos pela pensadora como referências, esteve na Unicamp na década de 1980, registrando o encontro em uma reportagem publicada na revista Punto de Vista, que editou por 30 anos.

A cientista social Caroline Tresoldi, que entrevistou Beatriz Sarlo: “choque” e “inveja” foram algumas das palavras usadas pela crítica argentina para descrever sua primeira passagem pela Unicamp, em 1980
A cientista social Caroline Tresoldi, que entrevistou Beatriz Sarlo: “choque” e “inveja” foram algumas das palavras usadas pela crítica argentina para descrever sua primeira passagem pela Unicamp, em 1980
A cientista social Caroline Tresoldi, que entrevistou Beatriz Sarlo: “choque” e “inveja” foram algumas das palavras usadas pela crítica argentina para descrever sua primeira passagem pela Unicamp, em 1980
A cientista social Caroline Tresoldi, que entrevistou Beatriz Sarlo: “choque” e “inveja” foram algumas das palavras usadas pela crítica argentina para descrever sua primeira passagem pela Unicamp, em 1980

Na Unicamp

Em um ambiente propício à circulação de ideias e livre de protocolos acadêmicos, não invejou apenas o calor tropical dos meios-dias na Unicamp, conforme escreveu na edição de número 8 da revista. No verão daquele ano, Sarlo embarcou, na cidade de Buenos Aires (capital da Argentina), em um ônibus que a levou até Campinas, onde chegou finalmente ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Lá, ocorreriam as Jornadas de Literatura Latino-Americanas, evento que buscava pensar a unidade e a diversidade da literatura no continente. A estudiosa ainda não era conhecida por aqueles que participavam do evento, como frisou em suas memórias. Ia de “penetra”, com a perspectiva de conhecer e entrevistar críticos literários que admirava, como o brasileiro Antonio Candido, professor do IEL à época e idealizador do evento, o uruguaio Ángel Rama e o peruano Antonio Cornejo Polar.

“Ela narra em alguns relatos e entrevistas esse encontro como ‘a famosa reunião em Campinas’ e menciona ainda seu encontro com as ‘grandes potências da América Latina’ [termo que utiliza para se referir aos três críticos]. Dois anos depois, em 1983, ela voltou para mais uma reunião na Unicamp. Dessa vez, não apareceu de ‘penetra’, mas como convidada”, descreve a cientista social Caroline Tresoldi.

“Choque” e “inveja” figuram entre as palavras utilizadas pela escritora ao descrever aquele primeiro encontro na Unicamp, diz Tresoldi, que entrevistou Sarlo para a sua pesquisa de mestrado em sociologia, defendida em 2019, na Universidade. “‘Choque’ porque ela viu Antonio Candido caminhando pela Universidade com seus antigos alunos. Uma jovem universidade, diga-se de passagem, que havia sido criada durante a ditadura militar e que abrigava, naquele momento, um encontro com livre circulação de ideias e de polêmica, como registra na matéria para a Punto de Vista. ‘Como isso era possível?’, perguntou-se recorrentemente durante o evento. E ‘inveja’ pela mesma razão. As boas relações de Candido com seus ex-alunos e com outros críticos da América Latina deram para Beatriz a impressão de que a universidade brasileira não havia interrompido carreiras e diálogos, como ocorreu na Argentina.” 

Uma visão exagerada, na opinão de Tresoldi, pois esse encontro “só foi possível quando o Brasil já caminhava para o encerramento – lentíssimo e gradual, como queriam os militares – de uma ditadura que também foi duríssima com seus intelectuais. De qualquer maneira, em Campinas, Beatriz tomou contato com outra experiência intelectual, que a marcou profundamente”.

Eduardo Mejía Toro, que analisou em seu doutorado o projeto da Biblioteca Ayacucho, uma das referências para o trabalho desenvolvido por Beatriz Sarlo: redes de solidariedade para enfrentar o exílio
Eduardo Mejía Toro, que analisou em seu doutorado o projeto da Biblioteca Ayacucho, uma das referências para o trabalho desenvolvido por Beatriz Sarlo: redes de solidariedade para enfrentar o exílio
Eduardo Mejía Toro, que analisou em seu doutorado o projeto da Biblioteca Ayacucho, uma das referências para o trabalho desenvolvido por Beatriz Sarlo: redes de solidariedade para enfrentar o exílio
Eduardo Mejía Toro, que analisou em seu doutorado o projeto da Biblioteca Ayacucho, uma das referências para o trabalho desenvolvido por Beatriz Sarlo: redes de solidariedade para enfrentar o exílio

A marca da ditadura

Sarlo graduou-se em letras em 1966, na Universidade de Buenos Aires (UBA). Naquele ano, o país enfrentou o seu penúltimo golpe de Estado do século XX – foram seis, ao todo. As ditaduras militares argentinas marcaram sua trajetória. “Ela pertenceu a uma geração que se formou em circuitos intelectuais que chamo de alternativos, porque não eram caracterizados pelas especialidades acadêmicas. Refiro-me aos jovens, ou não tão jovens, que, impedidos formal ou informalmente de estarem nas universidades em decorrência da forte repressão das seguidas ditaduras argentinas [1966-1973 e 1976-1983] contra os grupos de esquerda, construíram suas carreiras nas margens dos circuitos oficiais, trabalhando em editoras e colaborando com revistas literárias e culturais”, relata a cientista social.

Por isso, vir a Campinas e encontrar em uma universidade intelectuais de esquerda reunidos em debates públicos em plena ditadura significou algo surpreendente para Sarlo, que só iria voltar ao ambiente acadêmico da Argentina depois do fim do período ditatorial, mais de 20 anos após sua graduação.

As continuidades e descontinuidades na formação, bem como o exílio e as redes de solidariedade, atravessaram sua trajetória e a das demais gerações que vivenciaram períodos autoritários, reflete Eduardo Mejía Toro, doutor em teoria e história literária pela Unicamp.

Toro analisou, em seu doutorado, como o projeto da Biblioteca Ayacucho – entidade editorial fundada em 1974 na Venezuela – e seu editor literário, Rama, contribuíram para “a articulação de um grupo intelectual atravessado pela tragédia do exílio”. Segundo o pesquisador, “essas redes encontraram no trabalho editorial um modo de afirmar, propiciar e difundir certo projeto latino-americano”. 

Ele aponta que se trata de gerações diferentes, “mas todas atravessadas pela tragédia das ditaduras na América Latina”. Na elaboração de sua tese, Toro pesquisou o arquivo de Rama no Uruguai. “Lá estão as cartas do Antonio Candido e de outros intelectuais da região. Todos debatendo e preocupados, tentando compreender a magnitude da tragédia que estava em curso no continente e ao mesmo tempo criando laços para denunciar e consolidar espaços de resistência e de memória, como as Jornadas de Literatura Latino-Americanas que ocorreram no Brasil em um contexto complicadíssimo”, avalia.

A Biblioteca Ayacucho serviu como uma das referências mais importantes para o trabalho realizado por Sarlo, diz. “A ditadura já estava em andamento quando ela começa um projeto pequeno, mas sempre crítico.” 

Capa e página interna da edição de número 8 da revista Punto de Vista: menções ao encontro na Unicamp e aos críticos Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar
Capa e página interna da edição de número 8 da revista Punto de Vista: menções ao encontro na Unicamp e aos críticos Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar
Capa e página interna da edição de número 8 da revista Punto de Vista: menções ao encontro na Unicamp e aos críticos Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar
Capa e página interna da edição de número 8 da revista Punto de Vista: menções ao encontro na Unicamp e aos críticos Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar

Punto de Vista

Esse projeto era a revista Punto de Vista. A publicação começou a circular em 1978, no auge da última ditadura militar argentina. Devido ao contexto de censura e perseguições, só em 1981 o grupo de editores apresentou-se aos leitores. Na ocasião, Carlos Altamirano, Ricardo Piglia, María Teresa Gramuglio, Hugo Vezzetti e Beatriz Sarlo expuseram também o propósito da revista: “[…] defender, na prática, o espírito crítico e o nosso direito de divergência. Isto é, reivindicar a liberdade de pensar, escrever e difundir ideias diferentes: o direito ao ponto de vista”. Sarlo afirmava que a publicação era invisível a ponto de permitir falar sobre assuntos sensíveis para a ditadura. 

“A Punto de Vista era vendida em bancas de jornal e em alguma livraria em que ficasse um pouco confundida com outras coisas. Passava de mão em mão. Em um momento em que a repressão era tamanha, a existência de um veículo pequeno como esse, como espaço de resistência, foi decisiva. E depois a revista se consolida com a volta da democracia”, expõe Miriam Gárate, professora de teoria literária no IEL. 

Foto da capa de No entender, último livro de Beatriz Sarlo: intelectual, que morreu em dezembro de 2024, logo depois da edição da obra, afirmava que gostava de “irritar ou fascinar”
Foto da capa de No entender, último livro de Beatriz Sarlo: intelectual, que morreu em dezembro de 2024, logo depois da edição da obra, afirmava que gostava de “irritar ou fascinar”

A docente, conterrânea de Sarlo, realizou junto com outros colegas o lançamento da revista na Província de Rosário (Argentina), onde estudava. “Éramos meia dúzia de estudantes que juntaram dinheiro para a passagem e para que dormissem em um hotel. E o lançamento da revista foi uma espécie de semissegredo”, conta.

Para Gárate, a publicação mostrou-se importante para o país pois difundiu de modo sistemático a leitura da obra de intelectuais como Walter Benjamin e Raymond Williams, além da de pensadores de cultura de mídia, do urbanismo, da música e das neovanguardas.

Na edição número 8 da Punto de Vista, constam as entrevistas com Candido, Rama e Polar. Nas palavras de Toro, “os questionamentos referem-se sempre àquilo que virão a ser as grandes reflexões de Sarlo, como a ideia de tradição, de nação, de imaginação literária e de imaginação política”.

Ao longo das edições, pensadores latino-americanos e de outros países eram convidados a colaborar com artigos. Um deles, o professor de filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Arantes. Arantes conheceu Sarlo durante a estadia da pensadora argentina no Brasil, em 1980, e escreveu em 2006 para a Punto de Vista sobre a onda de atos violentos promovida pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Por e-mail, o professor recebeu um convite para falar sobre seu encontro com Sarlo e avaliar o legado da crítica literária. O filósofo respondeu: “Li os livros. Não todos, é claro. Mas as memórias pessoais, embora preciosas, são escassas. Dois ou três encontros em breves relances de eventos coletivos, e sempre graças à intermediação de um amigo comum, Roberto Schwarz. Devo, no entanto, registrar minha gratidão por um pequeno gesto de Beatriz que me encantou pela generosidade e atenção. Em 2006, chegou-me um pedido de artigo da Punto de Vista sobre o assim chamado levante do PCC em São Paulo, para ontem, como se diz. Ao receber a revista, vi que a própria Beatriz se dera ao trabalho de me traduzir. Entrei assim pela porta lateral do amplo círculo dos happy fews que tiveram a chance de conhecê-la pessoalmente”.

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Beatriz Sarlo posa, em rua de Buenos Aires, para campanha de incentivo à leitura organizada pelo editor Boris Spivacow: intelectual argentina não abria mão da polêmica

No ‘borrado domínio das possibilidades

Além da revista Punto de Vista, Sarlo atuou em outros espaços, como a revista Los Libros e o Centro Editor de América Latina (Ceal). Da Los Libros, a pensadora chegou a ser editora por um período, junto a Carlos Altamirano, seu marido na época, e Ricardo Piglia. “Eles assumiram por um tempo a direção da revista e passaram a propor que discussões estéticas e políticas caminhassem lado a lado. A revista foi invadida e fechada pelos militares com a nova ditadura, que se instalou em 1976, e os amigos passaram a se reunir no Ceal ou na casa de algum deles”, conta Tresoldi.

O centro havia sido fundado por Boris Spivacow, com quem Sarlo trabalhou na editora da Universidade de Buenos Aires (UBA) até ele ser afastado em decorrência da ditadura. “O Ceal, como ela gostava de dizer, serviu-lhe como uma espécie de pós-graduação”, aponta a cientista social. Leituras estruturalistas e teorias sociais e políticas elaboradas nessa época formaram uma base para o pensamento de Sarlo, afirma Tresoldi. “Esse foi o chão, digamos assim, para que ela começasse a elaborar, desde meados dos anos 1970, uma crítica literária de forte conteúdo histórico-social.”

As editoras, as revistas e os círculos intelectuais surgidos em torno dessas ideias fizeram parte de uma formação autodidata realizada enquanto o espaço acadêmico continuava inacessível devido aos governos ditatoriais. Somente em 1984, Sarlo retornou à UBA, permanecendo até 2003, como docente. Ela ainda foi professora visitante em universidades estadunidenses e na Universidade de Cambridge (Reino Unido) e deixou as salas de aula em um momento no qual passou a buscar na imprensa um espaço para seguir com suas reflexões, dessa vez tentando atingir um público mais amplo.

A crítica literária já escrevia periodicamente na imprensa desde meados de 1990 e intensifica essa presença depois de deixar o ambiente acadêmico. No Brasil, Sarlo chegou a ser entrevistada, em 2007, em um episódio do Roda Viva, programa consagrado da TV Cultura.

Miriam Gárate, professora de teoria literária no IEL e conterrânea de Beatriz Sarlo, participou como organizadora do lançamento da Punto de Vista na Província de Rosário: revista passava de mão em mão

A intelectual pública 

“Beatriz Sarlo foi alguém que sempre se manifestou com muita convicção e veemência e com muito desejo de participar da arena das discussões. Durante suas primeiras décadas de atuação, isso ocorreu fundamentalmente no espaço universitário e no espaço editorial. Mas, a partir do final dos 1990 e início dos 2000, há uma virada em que passa a participar da imprensa periódica”, diz Gárate.

Esse trânsito ocorre depois de a crítica literária ter chegado a uma conclusão, afirma a docente. “Beatriz falava que o que a interessava da cultura estava em outro lugar e que, para esse outro lugar, ela queria ir.” A transição não foi bem vista por alguns de seus colegas intelectuais, que a acusaram de, por exemplo, “se vender” aos jornais, justamente no período em que os mais importantes veículos se transformaram em opositores do kirchnerismo. “Durante uma entrevista que se tornou célebre, ela fez um gesto que virou bordão. ‘Comigo, não!’, disse, com o dedo em riste. Sarlo arguia estar trabalhando sem restrições para dizer aquilo que queria dizer. Na medida em que não a censurassem, iria continuar”, analisa Gárate.

A ocupação do espaço midiático deu-se de forma constante desde então. Ainda nos últimos meses de 2024, antes de sofrer o acidente vascular cerebral, Sarlo apareceu com frequência em podcasts, na televisão e na internet.

Uma das últimas entrevistas longas concedidas aconteceu em um videocast chamado El Método Rebord. A entrevista é curiosa, com diversos momentos nos quais Sarlo deixa o entrevistador desconcertado. Logo no início do programa, esse entrevistador a saúda: “É um prazer recebê-la”. Ao que ela responde: “Espere até o fim”.

Em um momento do diálogo, Sarlo relata a precocidade com que decidiu tornar-se intelectual. “Aos sete anos, encontrei em uma nota no jornal a palavra “intelectual”. Não sabia o que queria dizer, mas, quando me disseram que era alguém que pensava, lia e escrevia, decidi que queria ser isso.”

Impaciente com algumas perguntas, ela alterna relatos profissionais com análises culturais. Quando visivelmente se cansa, olha para o relógio e fala que precisa ir embora: “Vou ao teatro”.

“Nós, argentinos, fazemos questão de ser profissionalmente desagradáveis e inflexíveis”, brinca Gárate. A docente também comenta que, “nos programas, [Sarlo] virava uma grande professora”. Afinal, tratava-se de uma intelectual de peso, talvez a mais influente da Argentina.

A sua presença em veículos de imprensa, no entanto, rendeu algumas cisões com a intelectualidade argentina. “Houve ruídos com parte da intelectualidade, sobretudo pelo que foi a intervenção muito crítica dela em relação aos governos kirchneristas. Ela começa a trabalhar no La Nación [jornal de oposição aos Kirchner] justamente no governo Macri [Mauricio Macri, presidente da Argentina entre 2015 e 2019], embora tenha sido crítica ao Macri”, exemplifica a docente.

As polêmicas, avalia Gárate, também ocorriam pelo fato de as análises de Sarlo reverberarem nos cânones literários, ocasionando um “movimento de escolhidos e rejeitados”.

“Ela era uma polemista durante o tempo todo e apaixonada por se envolver nas discussões”, resume.

A obra

Gárate divide a produção de Sarlo em dois grandes momentos. “Os primeiros livros foram publicados em 1982 e 1983, em uma parceria com Altamirano, que na época era também o parceiro de vida, e dão o tom do que foi sempre o foco privilegiado do discurso teórico e crítico de Beatriz Sarlo. Destaca-se, nos dois primeiros livros [Literatura-sociedad e Ensayos argentinos: de Sarmiento a la vanguardia], sobretudo, o tipo de olhar com uma perspectiva na qual a política permeia a cultura e a cultura é uma intervenção política permanentemente.”

Depois dessas obras, diz a professora, Sarlo publica livros “ fundamentais tanto pelo período sobre o qual se debruçam quanto pelas mudanças no tipo de perspectiva em relação a uma série de objetos culturais”. O primeiro deles é Império dos Sentimentos, considerada por Sarlo como sua tese e em que analisa os folhetins sentimentais publicados entre 1917 e 1927. Em entrevistas, a escritora relatava que, como teve uma formação interrompida pela ditadura, tornou-se docente sem um mestrado ou doutorado.

Na segunda parte da produção de Sarlo, que inclui Cenas de la vida posmoderna (1994) e A cidade vista (2009), analisa Gárate, há um deslocamento dentro da cena contemporânea. “Eu diria que Sarlo começa a circular no Brasil mais a partir dessa segunda parte da produção, quando de algum modo, sem abandonar a literatura, vai incorporar uma leitura da cena contemporânea, com a análise sobre fenômenos arquitetônicos, as alterações no espaço público, as alterações de sensibilidade que isso produz e também as alterações em relação ao lugar da literatura, como uma espécie de discurso ordenador de efeitos de cultura.”

Foram dezenas de livros publicados. O último, recém-lançado pela Editora Siglo XXI, reúne suas memórias. Por coincidência ou não, na página final, Sarlo reflete: “O que eu teria feito e não fiz? Não sei porque, como o verbo indica, pertence ao borrado domínio das possibilidades, muitas delas infundadas, muitas desconhecidas, muitas de difícil cumprimento, mais difícil do que a própria condição. De repente, me vem à memória uma frase de Thomas Bernhard: ‘A morte é a meta’. E se essa repetição hipnótica estivesse me aproximando de uma ideia da morte? Em Scritture estreme, Franco Rella cita um aforismo de Kafka: ‘Há um ponto a partir do qual já não é possível o retorno. Esse é o ponto a ser alcançado’.”. (Liana Coll)

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