

Tolkien e a magia fora da linha do tempo
Cientista social detalha elementos usados pelo escritor britânico para inaugurar a fantasia moderna
Ao longo de quase seis décadas, o escritor britânico John Ronald Reuel Tolkien produziu uma vasta coleção de lendas, contos, mapas, poemas e idiomas, com a intenção de narrar a história de Arda, o mundo onde se passam os dois livros mais famosos do autor, O Hobbit (1937) e O Senhor dos Anéis (publicado em três volumes nos anos de 1954 e 1955). Após a sua morte, em 1973, seu filho Christopher reuniu e publicou esse legendarium (coleção de lendas e contos) em livros como O Silmarillion e Contos Inacabados, instigando o imaginário de fãs ao redor do mundo. Essas publicações todas também marcaram a história do século 20 ao inaugurarem a fantasia moderna enquanto gênero literário, dando origem a uma série de obras com características estéticas, filosóficas e políticas únicas.

Essa a conclusão do cientista social Thiago Antunes em sua tese de doutorado em teoria e história literária, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Antunes argumenta que J. R. R. Tolkien foi o primeiro autor a incorporar o que, na opinião do pesquisador, configuraria os dois elementos-chave da chamada fantasia moderna: o deslocamento da narrativa em um tempo “fora” do tempo e a constituição de um mundo de magia. Em outras palavras, o pioneirismo de Tolkien produziu uma narrativa que se passa em uma época impossível de ser incluída em nossa linha histórica e na qual a magia, mais do que um componente daquele mundo, funciona como a própria forma de compreendê-lo.
“Alguns teóricos defendem que outros autores, como Lord Dunsany, William Morris ou George McDonald, inauguraram a fantasia moderna. Parece-me, no entanto, que eles ainda estão dentro de gêneros como novela, conto de fadas ou do maravilhoso”, avalia Antunes, explicando que, na maior parte dessas obras, o mundo “fora” do tempo não é um mundo “normal”, mas um lugar acessado por meio de recursos como portais. “Além disso, nenhuma dessas obras, segundo creio, parece ter o componente de o universo ser pensado como mágico. O ser mágico aqui não é simplesmente ter magia, porque isso existe em diversos gêneros. Na fantasia moderna, porém, há a noção de que o mundo é criado a partir da magia”, afirma.
Um exemplo desse conceito: a espada que o hobbit Merry recebe de Tom Bombadil no início de O Senhor dos Anéis. Essa arma havia sido forjada milhares de anos antes para ser usada na guerra contra Angmar, o reino fundado pelo Rei Bruxo dos Nazgûl – os nove cavaleiros que servem ao vilão Sauron. Na última batalha da Guerra do Anel, Merry apunhala o líder dos Nazgûl com a espada, quebrando o encanto que o protegia e permitindo que Éowyn o matasse e cumprisse a profecia de que nenhum homem conseguiria destruí-lo. Com sua missão finalizada, a lâmina derrete. A espada, assim, não era mágica em si e funcionou como uma arma comum no restante da narrativa. A intenção do artesão, contudo, incorpora-se às qualidades do objeto a ponto de torná-lo mágico no momento de cumprir seu desígnio.
Para Antunes, essa ideia da magia como a própria natureza do universo traz consigo uma noção ética de controle e intenção das ações responsável por gerar uma série de desdobramentos políticos e filosóficos. Tal postura expressaria a própria visão política de Tolkien, um católico conservador e desconfiado da modernização que buscou em pensadores neoplatônicos e do Renascimento teorias sobre o mundo como um lugar harmônico e perfeito. Isso teria influenciado a fantasia moderna como um todo, uma vez que essas obras tendem a apresentar uma visão idílica e romantizada do passado mítico, embora autores como Ursula Le Guin, Robert Jordan e George Martin tensionem essa perspectiva em suas histórias.
“Nesse mundo, por se tratar de um lugar harmônico, tudo tem que estar no lugar. Há o papel definido da mulher, o do lorde e o do camponês. Há um papel tão incorporado do rei que ele cura pelas mãos. Aragorn, o rei Elessar, retorna a Gondor sem ter nascido lá. Sua família está fora do reino há centenas de anos, mas ele vai ser reconhecido como rei porque cura as pessoas à beira da morte”, comenta o pesquisador. “Até a distinção entre elfos e humanos entra nessa discussão. Os seres humanos são tão imperfeitos que morrem. O tema da mortalidade, do tempo como finitude, percorre toda a obra de Tolkien. Eu diria, porém, que percorre todo esse gênero que se inaugura ali.”


Sucedâneo
A princípio, em sua tese, Antunes desejava somente reconstruir a formação da fantasia moderna. Entretanto, conforme o estudo avançou, o autor percebeu que o gênero possui como uma de suas características fundamentais o fato de ser um simulacro de gêneros arcaicos ou pré-modernos como sagas, novelas de cavalaria e epopeias. Empregando o termo alemão Ersatz – imitação artificial do e inferior ao produto que substitui –, o pesquisador defende que Tolkien incorpora gêneros literários em sua obra na tentativa de fazê-la se passar por uma obra pertencente a esses gêneros, produzindo, porém, uma versão de baixa qualidade.
Ex-fã de Tolkien, o pesquisador explica que um gênero literário, como forma de relacionar uma determinada obra à história e ao tempo, apresenta características que dificultam a sua transposição para outros períodos. O conto de fadas, por exemplo, é uma narrativa oral que incorpora o senso prático de resolução de problemas e de lição de moral, algo inviável na organização social industrializada do século 20. Tolkien, por outro lado, ao incorporar elementos de contos de fada e de romance histórico em suas obras, construiu um sucedâneo que, para Antunes, não conseguiu manter sua autenticidade.
“Não haveria problema nenhum se ele se inspirasse nesses gêneros, deixando claro, no entanto, que suas obras não pertencem a esses gêneros. A questão do Ersatz é que há uma dimensão de falsidade, de fingimento, da qual a gente precisa falar”, pondera o cientista social, exemplificando isso com o fato de que, ao começar seus escritos sobre Arda, Tolkien tinha a intenção de propor um mito para a Inglaterra. “Só que um mito é uma narrativa sagrada para um povo. Ele é criado ao longo de gerações e não tem autoria. Há a questão de estar vinculado àquela cultura e àquela sociedade. Tolkien, não. Ele recria todo esse aparato artificialmente. Isso não é algo autêntico”, argumenta.
Apesar dessa sua conclusão, Antunes afirma não compartilhar o desprezo de alguns críticos em relação à obra de Tolkien, críticos esses para os quais seu legendarium constitui uma literatura escapista e infantil. De acordo com o pesquisador, o autor inglês teve o mérito de mostrar o que poderia ser feito com o gênero fantasia, além de registrar uma época de grandes transformações. “O Senhor dos Anéis surge quando as mudanças tecnológicas, políticas e científicas estão avançando e as guerras estão varrendo a Europa. Tolkien, então, escreve sua obra para defender a volta ao folclore, às tradições e às lendas locais. Só que ele está vendo a história acontecer. Esse é um tempo inexorável, a consumir tudo aquilo que o autor valoriza. Parece-me que ele vê esse avanço como algo inegável”, finaliza.