
Mentiras que matam
Linguista analisa a disseminação e os impactos de fake news durante a pandemia de covid-19


Mentiras que matam
Linguista analisa a disseminação e os impactos de fake news durante a pandemia de covid-19
O poder destruidor das palavras não é apenas simbólico: há textos que matam. Das centenas de milhares de pessoas que morreram de covid-19 no Brasil, muitas perderam a vida vítimas da desinformação e de mentiras a respeito da doença e dos tratamentos médicos. O linguista José Elderson de Souza Santos, em sua tese de doutorado, orientada pela professora Anna Christina Bentes da Silva, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, investigou as fake news e seu efeito letal durante a pandemia. A guerra de narrativas que se trava traduz a disputa pelo poder sobre o conhecimento e seus valores sociais. Verdadeiras armas, as fake news funcionam como microrrupturas que se avolumam e se tornam capazes de promover macrorrupturas, tais quais golpes e guerras.
Ao analisar o material discursivo e textual em circulação no período de junho a novembro de 2020, o pesquisador identificou mecanismos usados na construção de valores sociais que estabilizam as mentiras e as fundamentam culturalmente a ponto de fazê-las se passar por verdades. Há um confronto em relação às referências sociais e culturais consolidadas na sociedade para que se cumpra o objetivo das fake news de legitimar um “outro” modo de conhecer.
“Estamos em um contexto de disputa pela construção do conhecimento. Nesse cenário, os textos são armas”, afirma Santos, dando ênfase ao fato de essa não ser uma prática abstrata, mas concreta. “Muita gente morreu à toa, pelo simples fato de ser enganada ou de se deixar enganar.”


Em todo o mundo
O linguista menciona outros eventos ocorridos ao redor do mundo, como o Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), o assassinato da socióloga e vereadora Marielle Franco (seguido da tentativa de desconstrução da sua imagem) e a primeira eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, fatos sobre os quais circularam textos com o potencial de provocar danos às relações sociais, às democracias e a determinados atores políticos. “Sem o episódio da pandemia, contudo, certamente levaríamos muito mais tempo para chegar a essa conclusão de forma tão marcante.”
O trabalho estuda as fake news como um “danoso objeto social” porque se trata de textos que matam tanto do ponto de vista simbólico, ao afetar reputações e aniquilar formas de ver o mundo, quanto do ponto de vista material, como aconteceu durante a pandemia.
Há textos sobre aquele período em circulação até hoje. “A formulação de que as vacinas causam doenças é um exemplo que permaneceu no imaginário e contribuiu para a legitimação de um outro tipo de conhecimento sobre as vacinas. O poder simbólico é realmente um poder fundamental”, diz a orientadora da tese. Silva lembra quando o então presidente Jair Bolsonaro qualificou a covid-19 como uma “gripezinha”. “Ele tenta instaurar um modo de conhecer um objeto no e do mundo. Como todos sabem o que é uma gripe, ele faz a covid parecer não letal como a maioria das gripes.”
Ao mesmo tempo que produzem rupturas em relação a conhecimentos existentes, esses textos necessariamente encontram-se atrelados ao já conhecido, do contrário, não conseguiriam existir. As fake news não contribuem para a total substituição dos sistemas de referência tradicionais, mas produzem uma corrosão desses sistemas, explica Santos.
O funcionamento das fake news é sistêmico e massivo, provocando microrrupturas no padrão textual que vão anteceder as macrorrupturas. O número de mortes decorrentes da covid no Brasil, em torno de 700 mil, representa uma macrorruptura social. Assim como a invasão das sedes dos três poderes federais no 8 de janeiro de 2023 traduz-se em uma macrorruptura institucional, afirma o pesquisador. “Antes das macrorrupturas, nós temos um conjunto de microrrupturas que levam, por acúmulo, às macrorrupturas.”
As fake news constroem uma base comum de conhecimentos que, durante a pandemia, levou pessoas à morte convencendo-as a tomar medicamentos ineficazes, a não usar máscara e a boicotar as vacinas. Inicialmente, essas falsas notícias consolidaram a ideia de que não existia uma pandemia. Depois os textos do tipo defenderam, sem comprovação científica, que alguns medicamentos inadequados ofereciam uma proteção contra a doença, mas a vacina, não. “Ao longo do período analisado, os textos foram mudando. Mas, em todos os casos, se mostraram danosos”, diz Santos.


Parece caótico, mas não é
Para a análise, o pesquisador coletou 148 textos identificados como falsos pelas agências Lupa e Aos Fatos no período sob foco do estudo. Santos reuniu também os metadados sociodigitais, como o número e os locais de compartilhamento. “Pegamos um conjunto de textos que, de início, pareciam caóticos, mas que, na verdade, apresentam uma organização sofisticada por trás deles.” O linguista fez um recorte com 30 textos divididos em dois subgrupos: 7 deles buscam replicar a estrutura de textos noticiosos e 23 apresentam outros tipos de estrutura.
Os não noticiosos, no entanto, recorreram a recursos característicos de textos jornalísticos, como supor a legitimidade da fonte de informação. “Eles não estão fora do campo jornalístico porque buscam se construir como legítimos para poder disputar esse espaço.”
Muitos textos revelaram-se confusos porque passam de um tópico para outro estabelecendo relações que jamais poderiam constar de um texto informativo. “Para muitas pessoas, no entanto, essas mudanças abruptas de tópico fazem sentido e parecem acessíveis porque são legitimadas pelo modo como os sujeitos se comunicam cotidianamente e pelo sistema de referências que adotam. Há certos enunciados sobre a pandemia de covid-19 que vão funcionar para sempre na cabeça das pessoas”, analisa Santos.
A narração e a argumentação, aponta o pesquisador, costumam adotar um tom de denúncia. “Isso contribui para colocar os interlocutores desses textos em estado de alerta e medo.” A tese, portanto, desmistifica a ideia de que as fake news são textos desestruturados e desorganizados, afirma a orientadora.
Nesse movimento de absorção das fake news por meio da (re)construção de conhecimentos, Santos identificou operações textuais-discursivas como a organização composicional, a construção/mobilização de fontes, a utilização de citações e/ou paráfrases e a construção de objetos de discurso.
Entre os conceitos aos quais recorreu em seu estudo, o pesquisador serviu-se do de intertextualidade, mecanismo pelo qual ocorre a construção da fonte. “A intertextualidade é um fenômeno constitutivo dos textos. Todo texto tem uma relação com um texto anterior. As fake news se colocam dentro de uma cadeia intertextual que leva as pessoas a se conectarem e a legitimarem aquele modo de dar a conhecer determinado tema.”
Ecossistema de desinformação
O fato de algo ser verdade ou mentira passa a ser uma questão secundária, acrescenta Santos. “As fake news são textos elaborados que tentam legitimar modos de manipulação de verdades existentes.” Portanto, continua o pesquisador, a existência desses textos não representa uma quebra de confiança. “Pelo contrário, trata-se de uma tentativa de fazer com que aquilo que você está definindo como realidade seja confiável.”
“A linguagem é um modo de agir no mundo, não só por meio de textos. Nesse sentido, há textos que matam. A produção textual tem um impacto concreto sobre a vida das pessoas. Quando há um ecossistema de desinformação, esse ecossistema exerce um impacto sobre a vida das pessoas”, afirma Silva. “Isso acontece porque nosso conhecimento sobre o mundo social pode ser (re)construído por meio da linguagem.”