Judicialização de medicamentos põe em risco sistema público de saúde
Judicialização de medicamentos põe em risco sistema público de saúde
Estudo de farmacêutica investiga impactos e temporalidade das decisões judiciais em Campinas


De 2017 a 2021, o município de Campinas despendeu R$ 47,7 milhões para, por determinação da Justiça, prover assistência farmacêutica em casos específicos – 67% desse valor destinou-se à compra de medicamentos. No entanto apenas 0,3% dos recursos públicos referem-se à aquisição de produtos listados no Componente Básico da Assistência Farmacêutica (CBAF) da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) do Sistema Único de Saúde (SUS), algo da alçada municipal. Isso quer dizer que a quase totalidade do valor gasto pela cidade deveria ter sido custeado pelo Estado de São Paulo ou pela União – por meio do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (Ceaf) (23,7%) – ou diz respeito à requisição de itens ausentes das listas oficiais do sistema público de saúde (76%), principalmente remédios oncológicos e imunobiológicos, teoricamente financiados pelo governo federal. Isso causa um desequilíbrio no planejamento e no orçamento de Campinas, prejudicando o atendimento à população.
Essa figura como uma das principais descobertas apresentadas por uma dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e que investigou o perfil e o custo da judicialização no quinquênio citado por meio da análise de dados vindos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Para a autora do trabalho e farmacêutica da Prefeitura Municipal de Campinas, Stefane Oliveira, a via judicial, ainda que legítima – tendo em vista o direito fundamental à saúde previsto na Constituição Federal –, não representa o caminho mais adequado.
“A judicialização arrisca a sustentabilidade do sistema público de saúde municipal, ocupando recursos que deveriam ser destinados para a atenção básica, e não se traduz em equidade de acesso para a população”, afirma. Entre os problemas elencados, está a falta de ressarcimento ao muncípios por parte dos entes estadual e federal – situação tratada recentemente pelo Superior Tribunal Federal (STF) por meio da Súmula Vinculante 61, arrolando os casos em que pode ocorrer a concessão judicial de medicamentos não incorporados ao SUS.
A pesquisadora adotou uma perspectiva dupla na pesquisa, avaliando tanto a questão assistencial quanto a da gestão pública e abordando uma situação ainda pouco explorada na literatura: o tempo das decisões judiciais, da distribuição do processo e de uma eventual antecipação de tutela – determinando o fornecimento do medicamento antes de uma decisão final do juiz – até a sentença ou a extinção do processo.
A tutela antecipada ocorreu em 43% dos casos, em até 30 dias para a maior parte das decisões. Já o tempo médio até o julgamento final foi de 6,5 meses, com decisão favorável ao autor em 81,7% dos casos, impondo a manutenção do fornecimento por tempo indeterminado. Nesse cenário, apesar de a quantidade de ações ter diminuído em Campinas durante o período analisado, as despesas continuaram a crescer, pressionadas pelo comprometimento orçamentário de longo prazo bem como pela busca por tecnologias mais avançadas e custosas. “Isso atrapalha muito porque a gestão não sabe por quanto tempo será necessário programar a aquisição daquele medicamento”, defende Oliveira.


Genérico é alternativa
Medicamentos para tratamento do sistema nervoso e de doenças degenerativas crônicas encontram-se entre os mais solicitados. Há vários fatores que podem levar um paciente a optar pela judicialização – um caso comum é o pedido do remédio pelo nome comercial, especialmente no caso daqueles não incorporados ao SUS. Dos 506 medicamentos dispensados pela Farmácia Judicial no quinquênio, apenas 46,3% foram adquiridos pela denominação genérica e 75,5% possuíam equivalentes terapêuticos. Por outro lado, a compra de marcas específicas respondeu por 85,4% do total gasto. “Um exemplo é a somatropina [princípio ativo com diferentes nomes comerciais], um medicamento fornecido pelo Ceaf. Porém o demandante queria uma marca específica e, por isso, recorreu à Justiça. Esse é um produto difícil de se comprar por ser barato, e a indústria ou distribuidora não considera vantajoso vender pequenas quantidades do medicamento”, relata Oliveira.
A prescrição médica tem grande peso no acesso ao tratamento, principalmente porque a maioria das decisões judiciais baseia-se exclusivamente nesse documento. Nesse caso, caberia aos profissionais médicos prescrever remédios disponíveis no SUS, quando isso se mostrasse possível, a fim de evitar a judicialização. “Na consulta, o médico não deveria olhar somente para a doença do paciente, mas entender todo o contexto socioeconômico dele”, opina a orientadora da dissertação e professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da FCM, Marília Visacri.
Em muitos casos, as prescrições médicas e decisões judiciais contrariam, até mesmo, pareceres da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), que não recomendam a incorporação de determinados medicamentos considerando aspectos como efetividade e segurança da tecnologia, além da avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação a alternativas já disponíveis no SUS. É o caso do nintedanib, usado para o tratamento de fibrose pulmonar e que causou o maior impacto financeiro entre os medicamentos judicializados em Campinas. As pesquisadoras defendem um maior intercâmbio de informações entre o Judiciário e o Executivo, bem como a determinação, na tutela antecipada ou na sentença, de comprar genéricos e de encaminhar a cobrança financeira ao ente federativo responsável.
O perfil demográfico traçado pela pesquisa indicou que 52,3% dos que acionaram a Justiça eram mulheres, 43,1%, adultos e 27,6%, idosos. A maioria se declarou estudante (28,6%), aposentado ou pensionista (25%) ou sem ocupação formal (24,1%). Do total, 2,2% não residiam em Campinas. Além disso, 69,8% foram representados por um advogado particular e 84,4% obtiveram o benefício da justiça gratuita. Para a autora da pesquisa, os resultados podem auxiliar a gestão municipal na área da saúde, ao colaborar com a criação e o monitoramento de indicadores que apoiem a formulação de estratégias mais eficientes no enfrentamento da judicialização da assistência farmacêutica, além de promover um acesso mais equitativo e oportuno aos medicamentos.