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Cinco anos depois, perduram impactos da pandemia de covid-19

Avanço na produção de vacinas e onda de desinformação são partes de herança ambígua da doença no país

Montagem inicial
Na sequência de fotos, integrantes da Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19 durante atividade no Largo do Arouche, na região central de São Paulo, em 2021

Existem datas que marcam mudanças profundas na forma como conhecemos e experimentamos o mundo. O dia 11 de março de 2020 foi uma dessas. O vírus que ditaria o ritmo de nossas vidas nos próximos anos já tinha se espalhado pelo mundo, deixando milhares de pessoas doentes e registrando centenas de mortes. Não havia mais retorno. Naquele dia, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, veio a público comunicar a mudança para o status de pandemia da epidemia de covid-19, doença provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.

A partir daí, o que se seguiu ficou marcado na vida de cada pessoa que sofreu os efeitos diretos e indiretos da doença, desde a pior das situações – a perda de familiares e amigos – até a incerteza sobre por quanto tempo mais precisaríamos ficar em casa, mantendo distância das demais pessoas, usando máscaras e realizando, na medida do possível, as atividades do dia a dia.

Passados cinco anos desde o início da pandemia, sua herança revela-se extensa. O Brasil registrou mais de 700 mil mortes; noções típicas do universo científico, como “vacinas de RNA mensageiro” e “preprints”, passaram a fazer parte de conversas do cotidiano; pela primeira vez, o anúncio da aprovação de uma vacina pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi transmitido ao vivo na televisão e acompanhado como uma final de Copa do Mundo; e uma enxurrada de desinformações, algumas beirando o absurdo, prejudicaram e ainda prejudicam a saúde de milhares de pessoas, alimentando dúvidas infundadas sobre a credibilidade da ciência.

É compreensível que muitos ainda estejam cansados demais para falar sobre a covid-19. Faz-se, porém, necessário assimilar as lições que a emergência sanitária deixou, desvendar os mistérios envolvidos na doença e em seus efeitos de longo prazo e pensar a respeito de formas de sobreviver, enquanto indivíduos e sociedade, a uma futura pandemia. O Jornal da Unicamp conversou com vários pesquisadores da Universidade, que fizeram um balanço sobre os principais efeitos sanitários e sociais da covid-19 e apontaram os pontos nos quais estamos melhores hoje do que em março de 2020 e quais pontos ainda constituiriam entraves no caso de uma nova doença do tipo — um cenário frequentemente citado como provável por diversos especialistas.

Raquel Stucchi, infectologista e professora da FCM: vacina eficaz contra todas as variantes é um dos desafios
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Luis Carlos Dias
Luiz Carlos Dias, químico e professor do IQ: ciência de baixa qualidade legitimou decisões equivocadas
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Sem fronteiras

Não há um consenso sobre como o SARS-CoV-2 entrou em contato com os seres humanos, inicialmente na cidade de Wuhan, na China. Segundo a hipótese mais citada por estudos, as primeiras contaminações ocorreram devido ao contato com animais intermediários entre o meio silvestre e as zonas urbanas. O SARS-CoV-2 pertence ao mesmo grupo de coronavírus que inclui o SARS-CoV, responsável pelo surto de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) em países asiáticos, em 2003, e o MERS-CoV, que causou o mesmo tipo de surto no Oriente Médio entre 2012 e 2015. No entanto o SARS-CoV-2 apresentou uma capacidade de disseminação maior do que a de seus antecessores. “Trata-se de um vírus com um poder muito grande de transmissão. Com a globalização acelerada, dificilmente uma situação como essa ficaria restrita a uma única região”, analisa Raquel Stucchi, infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.

Os primeiros casos da doença em Wuhan, que acenderam o alerta na OMS, vieram à tona em 31 de dezembro de 2019. Dentro de um mês, a covid-19 havia chegado à Itália, um dos países europeus mais afetados. E, em 26 de fevereiro de 2020, o Brasil registrou seu primeiro caso. “Os patógenos não conhecem geografia ou geopolítica. Eles não respeitam fronteiras”, comenta Luiz Carlos Dias, professor do Instituto de Química (IQ) e autor do livro Não há mundo seguro sem ciência (Editora Paraquedas, 2024), no qual narra os esforços da comunidade científica no combate à desinformação em torno da pandemia. “Começamos a ser bombardeados pelas notícias [sobre a pandemia] e ficamos assustados. Sabíamos que, cedo ou tarde, a doença chegaria ao Brasil”, lembra.

A Unicamp foi a primeira universidade brasileira a interromper as atividades presenciais e adotar o modelo remoto. A emergência sanitária também demandou dos pesquisadores flexibilidade para atender ao que a ciência pedia então. “Todo mundo se tornou um pouco virologista naquele momento. Aprendi muito lidando com um tema que não era a minha especialidade”, conta Marcelo Mori, professor do Instituto de Biologia (IB) e coordenador da Força-Tarefa Unicamp contra a Covid-19, um grupo multidisciplinar de pesquisadores formado no período.

Mori lembra que um dos primeiros desafios deu-se na padronização da forma de diagnosticar a doença. “O exame sorológico não era muito preciso e, naquele período, ainda não tínhamos a metodologia padronizada para realizar o RT-PCR.” Graças a uma amostra do vírus doada pela Universidade de São Paulo (USP), à infraestrutura instalada na Unicamp e ao esforço de dezenas de voluntários, os cientistas conseguiram padronizar o método PCR, o que ampliou a capacidade de diagnósticos das unidades de saúde da Universidade. “Foram testadas mais de 200 mil amostras naquele período.” A colaboração entre cientistas de diferentes áreas permitiu o desenvolvimento de ações importantes visando mitigar os efeitos da doença, desde estudos que buscavam compreender os efeitos da covid-19 no organismo a campanhas de testagem em massa em comunidades periféricas. “Foi necessário inovar. Tivemos que nos reinventar e nos aventurar em outras áreas”, diz.

20250217_2_Maria Laura Costa do Nascimento_Covid_5 Anos_Caism_scarpa_AJS_4572
Maria Laura Costa, obstetra e professora da FCM: inclusão do Brasil em um protocolo de pesquisa internacional
Gastão Wagner
Gastão Wagner, sanitarista e professor da FCM: “A pandemia foi muito esclarecedora sobre nossas dificuldades”
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Desafios continuam

Os pesquisadores ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que o ponto de virada nos esforços para combater a covid-19 ocorreu no início da vacinação – em termos mundiais, no dia 8 de dezembro de 2020, na Inglaterra; no Brasil, em 17 de janeiro de 2021. O curto espaço de tempo para a obtenção do imunizante representa o maior avanço científico ocorrido no período. “As vacinas que lançam mão da tecnologia de RNA mensageiro nunca tinham sido utilizadas, mas foi uma época em que precisávamos de respostas rápidas e já havia um arcabouço de estudos suficiente para tirá-las do papel”, comenta Mori.

Atualmente, a cobertura vacinal contra a covid-19 no país registra quedas progressivas conforme a dose. Dados do Ministério da Saúde mostram que 86,4% do público-alvo tomou as duas doses iniciais das vacinas monovalentes. No caso da terceira dose, de reforço, essa cifra cai para 56,13% e, na quarta dose, atinge apenas 19,5%. Já para a vacina bivalente, a cobertura é de apenas 21,65%.

Stucchi explica que um dos desafios ainda existentes consiste em desenvolver uma vacina eficaz para todas as variantes do SARS-CoV, pois é da natureza do vírus sofrer mutações, demandando uma atualização dos imunizantes. A proteção conferida por essas vacinas também cai ao longo do tempo, o que exige aplicar novas doses. “Talvez tenha sido um erro classificarmos as doses como primeira, segunda, terceira. As pessoas se cansam e, como a covid-19 não é mais notícia, acabam não se vacinando”, avalia. Segundo a infectologista, a melhor abordagem possível seria uma parecida com a adotada no caso da vacina contra a gripe, aplicada todos os anos. A médica observa, porém, que isso deve se fazer acompanhar da atualização dos imunizantes, um outro desafio, pois o coronavírus não se comporta de forma previsível, como os vírus influenza.

Stucchi alerta também para o cuidado necessário com grupos vulneráveis – idosos, gestantes, crianças e pessoas com imunidade comprometida –, pois a covid-19 continua a fazer vítimas. “Se pensarmos que se trata de uma doença com tratamento disponível no SUS [Sistema Único de Saúde] e vacinas, não era para termos registrado quase 6 mil mortes no ano passado.” Em 2024, no Brasil, a covid-19 matou 5.960 pessoas.

Outro fator-chave na gestão da pandemia no país: a estrutura do SUS, que garantiu a distribuição de vacinas pelo território nacional e o atendimento médico, sobretudo nos casos mais graves. “A pandemia foi muito esclarecedora a respeito de nossas dificuldades e de nossos problemas. Não foi preciso que as pessoas os apontassem. Eles falaram por si”, defende Gastão Wagner Campos, médico sanitarista que esteve à frente do projeto de criação do SUS e professor da Unicamp. Segundo Campos, devido à mobilização de Estados e municípios, o país conseguiu adicionar R$ 40 bilhões ao orçamento do SUS durante os dois anos de pandemia e ampliar em 40% a capacidade das unidades de terapia intensiva em apenas seis meses.

Ainda assim, o Brasil assistiu a tristes cenas, como a falta de oxigênio nos hospitais de Manaus em janeiro de 2021. Na opinião de Campos, isso se deveu, de um lado, às desigualdades regionais. “Infelizmente, o direito universal à saúde no Brasil depende de onde você mora.” De outro lado, faltou, nos altos escalões, uma coordenação sobre a crise sanitária, algo que deveria ter partido do Ministério da Saúde, à época dominado por motivações políticas erráticas que punham a perder os esforços de gestores da saúde. “Ele [o ex-presidente Jair Bolsonaro] desconstruiu a capacidade de coordenação do Ministério da Saúde de forma muito rápida, por conta das debilidades normativas do SUS, colocando em cargos estratégicos pessoas sem nenhuma experiência”, denuncia o professor, que destaca como fundamentais a atuação de secretarias estaduais e a de alguns outros órgãos, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Butantan.

A parceria entre o SUS e instituições de pesquisa também ajudou os profissionais da saúde a compreenderem características particularidades de grupos específicos. Maria Laura Costa, médica obstetra e professora da Unicamp, com pesquisas desenvolvidas junto ao Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti (Caism), afirma: “Assim que a pandemia surgiu, acionamos nossas maternidades parceiras no Brasil e começamos uma ação de vigilância”. Essa iniciativa permitiu a inclusão dos brasileiros em um protocolo de pesquisa internacional, junto com dez países e com o apoio da OMS. Graças à rede de pesquisa formada por conta da pandemia, os cientistas conseguiram estabelecer parâmetros importantes, como o da segurança do aleitamento materno, o do baixo risco de transmissão vertical durante a doença e o dos riscos de a covid-19 favorecer desfechos adversos na gestação e no pós-parto.

Marcelo Mori
Marcelo Mori, biólogo e professor do IB: “Tivemos que nos reinventar e nos aventurar em outras áreas”
Marcelo Mori
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