Uma necessária abordagem interdisciplinar
Uma necessária abordagem interdisciplinar
A ideia de universidade pressupõe a noção de confluência de saberes. Em sentido moderno, traça-se a origem da universidade à corporação medieval, mas é lícito que se lhe confira, ao menos em espírito, raízes mais antigas na grande fonte inspiradora do pensamento ocidental: a Grécia. Tendo isso em vista, seja-nos permitido que nos entreguemos ao incrível exercício de imaginar que, no curso de alguns anos, em Atenas, seria plausível ouvir Sócrates, em um espaço público, levantar os problemas que ainda formam a base de nossas reflexões; ou Platão, com seus pupilos, na escola que criou, cujo nome se confunde com o próprio ideal da busca do saber: Academia; ou, ainda, o sábio de Estagira, Aristóteles, cuja escola recebeu o não menos simbólico nome de Liceu. Nesses espaços, discutiam-se muitos temas, os quais podem ser agrupados em escaninhos variados: ética, política, metafísica, poética, retórica, além de elementos do que hoje, orgulhosamente, chamamos de ciência. Havia, portanto, uma patente interdisciplinaridade, muito natural, aliás, na eterna alternância entre unidade e multiplicidade – jogo de chiaroscuro tão conhecido dos que têm a audácia de buscar saber (sapere aude)! “Interdisciplinaridade” não era, então, uma palavra ad usum Delphini, um adorno para discursos de dirigentes universitários e diretores científicos de agências de fomento; ela era um fato belo e causador de perplexidade, como um mar que um navegante observa, parado, no porto de partida.
Ai de nós, pois, em nosso tempo, as universidades estão domesticadas, e o modelo advogado pelos burocratas universitários – e consagrado por sua prática – é o de uma instituição que “se paga”, que gera divisas, que ostenta “empresas-filhas”. Que triste visão a de uma universidade que anda na ponta dos pés e implora pelo direito de existir. Uma universidade assim, a universidade pública hegemônica em nosso país, é uma visão tão tétrica quanto, para usar uma imagem de Schopenhauer, a de um Pégaso forçado a labutar sob o peso de uma canga.
Em tão desalentadora realidade, a interdisciplinaridade adquire o valor de um instrumento de luta, de um toque de despertar diante da alienação trazida pelo modelo que equiparou o fazer intelectual a uma tarefa produtiva e transformou o acadêmico, primeiro, em especialista feroz, e, em seguida, em empreendedor científico. Em um momento no qual a tecnologia se tornou pouco mais que um meio para fascinar (e explorar) as massas, a ciência apresenta sinais nítidos de estagnação e mesmo banalização, e o fundamentalismo ameaça subverter o modus faciendi acadêmico, a interdisciplinaridade traz um caminho para revigorar a universidade e uma base para a construção de uma formação verdadeiramente humanista – uma forma saudável e necessária de subversão.
A construção de uma autêntica interdisciplinaridade, não obstante, é um enorme desafio do ponto de vista da prática de pesquisa e de ensino. Com poucas exceções, nossas estruturas curriculares são obsoletas e cristalizam uma compartimentalização que, embora útil para uma universidade que tem o dever de alimentar o “mercado de trabalho” com diplomados, pouco contribui para o estímulo ao pensamento como meio de formação integral e libertadora. Diante desse cenário, é importante que se aplaudam esforços como os dos professores Sergio Russo Matioli e Diego Trindade de Souza, autores de Introdução à Bioinformática, da Editora da Unicamp.
Como muito bem apontam os autores em seu texto, a relação entre a computação e a biologia foi notada e explorada por pioneiros da informática, como Alan Turing, Claude Shannon e John von Neumann. Atualmente, é natural e necessário compreender a biologia molecular e a genética como áreas organicamente vinculadas à ciência de dados. A capacidade de análise trazida pelo computador digital e pelos modelos de aprendizado de máquina é uma ferramenta indispensável diante da estupenda complexidade dos mecanismos essenciais à vida.
O livro dos professores Matioli e Souza é uma contribuição valiosa para que os(as) estudantes das ciências da vida possam compreender as bases da computação digital e os enormes subsídios que ela pode trazer à pesquisa nessa área. Após um capítulo introdutório sobre a ideia de bioinformática, os autores apresentam três capítulos voltados a temas básicos em computação, abrangendo tanto elementos de hardware quanto de software. Esses capítulos permitem que o(a) estudante que não teve formação sistemática nesses temas compreenda o modus operandi das máquinas digitais e possa, assim, lidar com os elementos computacionais da bioinformática a partir de uma visão mais ampla e rica. Em seguida, os autores passam a discutir em profundidade problemas como o alinhamento entre sequências de macromoléculas, a filogenética, a filogenômica, os motivos e as estruturas de ácidos nucleicos e de polipeptídeos e as proteínas. Por fim, são apontadas perspectivas de desenvolvimento na área, o que estabelece uma ponte entre a formação e os desafios de pesquisa que os(as) leitores(as) poderão vivenciar caso desejem trilhar o caminho da investigação sistemática da área. Cabe destacar, por fim, que o livro é fruto da experiência didática dos autores – isso faz com que sua organização seja uma base sólida para que docentes de nosso país e de outros países da comunidade lusófona construam seus cursos no tema.
Romis Attux é professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp.
O Projeto Resenha é fruto de uma parceria entre a Editora da Unicamp e a Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp).
Título: Introdução à Bioinformática
Autor: Sergio Russo Matioli e Diego Trindade de Souza
Ano: 2021
Páginas: 176
Preço: R$ 61,00