A hora da escolha
Estudo busca entender as razões de gestante na decisão de manter ou não a gravidez em caso de malformação fetal
Os avanços tecnológicos na medicina conseguiram aperfeiçoar os exames pré-natais de modo a permitir diagnósticos cada vez mais precisos e proporcionando uma maior conexão entre os pais e o bebê durante a gestação a partir de ultrassons cujas imagens possuem tal grau de nitidez que permitem ver cada detalhe do novo ser em desenvolvimento, quase como uma fotografia.
O que ajuda a estreitar os vínculos, porém, também pode trazer notícias inesperadas e difíceis de enfrentar, como o diagnóstico de uma malformação fetal tão grave a ponto de o bebê ser incompatível com a vida.
Nesses casos, a mulher se vê de frente com uma avalanche de emoções. Perplexidade, angústia e profunda tristeza contam-se entre alguns dos sentimentos frequentes. Se não bastasse a notícia da iminente perda de um filho, a grávida ainda enfrenta o dilema de ter que decidir qual caminho trilhar: manter a gestação e realizar o parto ou interrompê-la. No Brasil, gestantes que recebem diagnósticos de malformação fetal grave podem solicitar judicialmente a interrupção legal da gravidez. Somente nos casos de anencefalia há previsão legal para a realização do aborto.
Compreender o que leva a mulher a decidir ou não pela interrupção da gestação nesses casos foi o objetivo da dissertação de mestrado da psicóloga Liliane Zapparoli, defendida em novembro na Faculdade de Ciência Médicas (FCM) da Unicamp. O estudo mergulha nos aspectos emocionais e nos motivos que levam à tomada de decisão nessas situações. “O estudo buscou, entre outras coisas, garantir que as mulheres fossem ouvidas e acolhidas, independentemente de suas escolhas”, afirma Zapparoli.
Adotando uma abordagem qualitativa, a psicóloga entrevistou 11 gestantes encaminhadas para o Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) por suspeita de malformação fetal grave e que tiveram no centro a confirmação do diagnóstico. “Era fundamental compreender não apenas a decisão final, mas todo o caminho percorrido por essas mulheres até chegar a essa decisão”, explica Renata Azevedo, docente do Departamento de Psiquiatria da FCM e orientadora da dissertação.
O estudo estruturou-se em torno de três questões fundamentais: as reações emocionais iniciais ao diagnóstico, os fatores que influenciaram a tomada de decisão e as expectativas para o pós-parto e o futuro mais distante.
Em sua pesquisa, a psicóloga encontrou uma divisão quase equilibrada entre as escolhas: seis mulheres optaram por manter a gestação, enquanto cinco decidiram pela interrupção legal. Independentemente da decisão tomada, todas manifestaram um intenso sofrimento e relataram uma “montanha-russa” emocional, marcada por sentimentos de perplexidade, angústia, ansiedade e culpa.
Universo particular
Entre as mulheres que escolheram continuar a gravidez, a responsabilidade pelo cuidado do filho e o desejo de prolongar o tempo com ele representaram fatores determinantes. Já para aquelas que optaram pela interrupção, a confiança no diagnóstico médico, o medo de alguma complicação e a busca por aliviar o sofrimento contaram como aspectos cruciais.
A dissertação observou ainda que motivações outras, como crenças religiosas, podem levar a decisões diferentes, evidenciando como cada experiência é única e profundamente influenciada por contextos sociais e pelas trajetórias pessoais de cada mulher. Enquanto uma gestante que optou por prosseguir com a gravidez afirmou ter fé em Deus e que um milagre poderia ocorrer, outra que escolheu interrompê-la afirmou ter confiança que Deus apoiava sua decisão.
Segundo Zapparoli, o processo de luto de uma mulher nesses casos é minimizado e pouco validado pela sociedade. Azevedo corrobora: “Muitas vezes, essa mulher é vista como se estivesse vivendo um luto menor, como se não se tratasse de um filho verdadeiro”.
Direitos em xeque
A professora ressalta a importância de legitimar todas as escolhas das gestantes nesse momento delicado. “Algumas mulheres vão optar pela interrupção da gestação, e isso precisa ser totalmente respeitado. Já outras decidirão seguir até o final e querer ver o bebê, e isso também deve ser permitido.”
“O estudo ganha mais relevância no contexto atual de potenciais retrocessos legislativos”, afirma a orientadora. No final de novembro, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê a proibição do aborto legal. A proposta ainda será levada para o plenário da Câmara dos Deputados, onde passará por duas votações. A versão aprovada na CCJ torna ilegal a interrupção da gravidez nos três casos de aborto previstos hoje pela legislação: estupro da vítima, anencefalia do feto e risco à vida da mulher.
Hoje, no caso de gestações com malformação incompatível com a vida, a decisão de abortar precisa ser chancelada por um juiz. Na maioria dos casos, a justificativa apresentada pelo diagnóstico médico é acatada.
Para Azevedo, “a ameaça de revisão das situações previstas em lei pode desencorajar as mulheres de exercerem direitos já garantidos, criando um ambiente de insegurança tanto para as pacientes quanto para as equipes médicas”.
Na realidade jurídica atual, ainda há desafios a serem enfrentados pelo sistema de saúde, algo de que a psicóloga trata na dissertação. De acordo com Zapparoli, faz-se necessário adaptar os serviços para oferecer um atendimento ágil e humanizado, respeitando a decisão das mulheres e proporcionando o suporte psicológico necessário.
Um dos desafios mais significativos diz respeito ao risco de dessensibilização dos profissionais de saúde devido à exposição constante a casos graves. Como alertou Azevedo, “para o médico, aquele pode ser o 300º caso. Para a mulher, trata-se de algo único e devastador”. A equipe médica enfrenta também o desafio de manter a neutralidade diante de suas crenças pessoais, ao mesmo tempo em que lida com o impacto emocional dessas situações.
A fim de oferecer um atendimento adequado a mulheres que se veem diante de um diagnóstico chocante, o Sistema Único de Saúde (SUS), afirma a dissertação, precisa fazer investimentos na capacitação contínua das equipes médicas, na aquisição de equipamentos adequados, no desenvolvimento de fluxos de encaminhamento regionalizados e na implementação de protocolos mais sensíveis e integrados, visando mitigar o sofrimento da mulher e de seu núcleo familiar e relacional.