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O pensador do (nosso) subdesenvolvimento

O pensador do (nosso) subdesenvolvimento

Economista lançou novas bases para interpretar o capitalismo na América Latina

Economista lançou novas bases para interpretar o capitalismo na América Latina

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Documentos pessoais, na Exposição e Seminário Celso Furtado: Para Além da Fantasia, que ocorreu no Instituto de Economia da Unicamp entre 6 e 8 de novembro: há 50 anos, diagnóstico premonitório sobre o meio ambiente
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Documentos pessoais, na Exposição e Seminário Celso Furtado: Para Além da Fantasia, que ocorreu no Instituto de Economia da Unicamp entre 6 e 8 de novembro: há 50 anos, diagnóstico premonitório sobre o meio ambiente
Celso Furtado caminha por Paris, em 1948
Celso Furtado caminha por Paris, em 1948

Em 1º de agosto de 2024, a demanda da humanidade por recursos naturais ultrapassou a capacidade, do planeta, de produzi-los ou até mesmo de renová-los. Segundo uma comparação citada pela ong WWF Brasil, a sociedade teria entrado no “cheque especial” do mundo. O chamado Dia de Sobrecarga da Terra é calculado todos os anos pela organização Global Footprint Network com base na razão entre a biocapacidade do planeta e a demanda por recursos naturais. A data chega cada vez mais cedo: na primeira vez de sua fixação, em 1971, estimou-se que a sobrecarga ocorreria a partir do 25 de dezembro. Na virada do milênio, em 2000, o esgotamento já havia saltado para setembro. Se o padrão de consumo mantiver-se no mesmo patamar, é provável que, já em 2025, a fatídica data caia no mês de julho.

Celso Furtado caminha por Paris, em 1948
Celso Furtado caminha por Paris, em 1948

Esse dia resulta de uma média, pois a cifra varia entre os países a depender de seus níveis de desenvolvimento, padrões de consumo e a pegada de carbono. Em 2024, o Brasil teve uma mínima vantagem em relação à média mundial. Por aqui, o Dia de Sobrecarga ocorreu em 4 de agosto. Na China, o dia apresentou-se mais cedo, em 1º de junho, e nos Estados Unidos, maior economia do mundo, considerada referência para os padrões de desenvolvimento capitalista, a sobrecarga instalou-se em 14 de março. Segundo a Global Footprint Network, a humanidade precisaria hoje de 1,7 planeta para atender às demandas de todos os países. No entanto, se todos seguissem os padrões de consumo norte-americanos, esse número saltaria para cerca de quatro planetas.

Livro
Capa do livro O Mito do Desenvolvimento Econômico
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Capa do livro O Mito do Desenvolvimento Econômico

Acerca dessa situação, uma análise provou-se certeira: “A evidência à qual não podemos escapar é que em nossa civilização a criação de valor econômico provoca, na grande maioria dos casos, processos irreversíveis de degradação do mundo físico”. Ao contrário do que pode parecer, o diagnóstico não se baseia nos dados mais recentes. Ele foi escrito em 1974, por Celso Furtado, um dos maiores economistas de nossa história e uma das mentes mais visionárias no desafio de compreender o país. Em 2024, a morte de Furtado completa 20 anos e uma de suas obras mais inovadoras, O Mito do Desenvolvimento Econômico – da qual saiu o trecho citado –, completa 50 anos de publicação. Para celebrar as datas, o Jornal da Unicamp recupera a trajetória do homem que estudou o desenvolvimento e o subdesenvolvimento dos países latino-americanos e cujo legado intelectual permanece vivo em centros de ensino e pesquisa, como o Instituto de Economia (IE) da Universidade.

Um sertanejo no mundo

Um sertanejo no mundo

Na sequência de fotos, Celso Furtado em conferência da Cepal, em Quito (Equador), em 1954; em Recife, na sede da Sudene, da qual foi o primeiro superintendente; com João Cruz Costa, Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda, na USP, em 1961; e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília
Na sequência de fotos, Celso Furtado em conferência da Cepal, em Quito (Equador), em 1954; em Recife, na sede da Sudene, da qual foi o primeiro superintendente; com João Cruz Costa, Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda, na USP, em 1961; e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília
Na sequência de fotos, Celso Furtado em conferência da Cepal, em Quito (Equador), em 1954; em Recife, na sede da Sudene, da qual foi o primeiro superintendente; com João Cruz Costa, Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda, na USP, em 1961; e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília
Na sequência de fotos, Celso Furtado em conferência da Cepal, em Quito (Equador), em 1954; em Recife, na sede da Sudene, da qual foi o primeiro superintendente; com João Cruz Costa, Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda, na USP, em 1961; e com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Brasília

Celso Monteiro Furtado nasceu em 26 de julho de 1920 em Pombal, no sertão da Paraíba, o segundo dos oito filhos de Maurício de Medeiros Furtado, um advogado, e de Maria Alice Monteiro. Em 1927, a família mudou-se para a capital do Estado, na época ainda chamada Cidade da Paraíba, onde Furtado estudou no Liceu Paraibano. Anos depois, no Recife, mais especificamente no Ginásio Pernambucano, concluiu o ensino secundário. Cumprindo o destino que parecia então natural, mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1939, para estudar direito. “Como todo jovem que chegava à capital para se tornar advogado nos anos 1940, Celso tinha uma pretensão intelectual”, conta a jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado. A verve intelectual o levou a atuar como jornalista da antiga Revista da Semana, período em que chegou a acompanhar Orson Welles na passagem do cineasta norte-americano pelo país. Em 1944, a aventura pelo mundo das ideias viu-se interrompida por uma convocação para integrar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) e lutar na Itália, no fim da Segunda Guerra Mundial.

O professor André Tosi Furtado, filho do economista: rotina doméstica atribulada em razão das frequentes viagens do pai
O professor André Tosi Furtado, filho do economista: rotina doméstica atribulada em razão das frequentes viagens do pai

De volta ao Brasil, Furtado desistiu da carreira jurídica, rendendo-se à economia. Na busca por aprofundar seus conhecimentos, ingressou no doutorado da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Paris-Sorbonne (França), onde defendeu uma tese sobre a economia brasileira do período colonial, em 1948. Durante a estadia no país europeu, conheceu Lúcia Piave Tosi, sua primeira esposa, com quem teve seus dois filhos, Mário e André Tosi Furtado.

Em 1949, tornou-se membro da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), órgão criado pela Organização das Nações Unidas (ONU) para incentivar a cooperação econômica entre os países do continente. Sob o comando do argentino Raúl Prebisch, Furtado assumiu a direção da Divisão de Desenvolvimento da instituição, realizando missões na Argentina, na Costa Rica, na Venezuela, no Equador e no Peru. Por meio do contato com a realidade desses locais, os economistas do grupo consolidaram suas bases de pensamento, calcadas na escola estruturalista de economia, que busca explicar os rumos do desenvolvimento e os aspectos do subdesenvolvimento de uma região olhando para a estrutura produtiva e social constituída ao longo de sua história. “Trata-se de uma tentativa de interpretar o capitalismo na periferia do mundo e suas manifestações concretas, sejam elas econômicas, sociais ou políticas”, sintetiza Alexandre de Freitas Barbosa, professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP) e especialista no método histórico-estrutural desenvolvido por Furtado e outros intelectuais brasileiros.

Ao longo dos anos 1950, seu trabalho combinou a atuação junto à Cepal com projetos desenvolvidos em parceria com o antigo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, hoje BNDES) para subsidiar políticas de industrialização, como o Plano de Metas do governo de Juscelino Kubitschek. Mais tarde, passou uma temporada de estudos na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Nesse período, escreveu sua principal obra, Formação Econômica do Brasil, lançada em 1959.

“Meu pai recebia muita gente. Lembro de acompanhar as conversas dele com [a economista e professora da Unicamp] Maria da Conceição Tavares, sempre intensas”, recorda André Tosi Furtado, segundo filho de Celso e professor do Instituto de Geociências (IG) da Universidade. Tantas atividades exigiam da família um esforço redobrado para acompanhá-lo. “Passei minha vida toda sempre viajando. Houve uma vez em que meus pais foram para o México, e meu irmão e eu ficamos com nossos avós. Depois, meu irmão também viajou para o México, antes de mim, e coube ao [economista chileno] Osvaldo Sunkel me levar para lá. Eu tinha menos de 2 anos”, revela.

A jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado: “Ele era um homem de muita reflexão, mas de muita ação também
A jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva de Furtado: “Ele era um homem de muita reflexão, mas de muita ação também

Em 1959, a pedido de Kubitschek, Furtado participou da criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e atuou como seu primeiro superintendente. Já em 1962, recebeu um convite de João Goulart para ser o primeiro ministro do Planejamento do país, cargo que ocupou até 1963, quando voltou para a Sudene. “Ele era um homem de muita reflexão, mas de muita ação também”, ressalta d’Aguiar. À frente da pasta, o economista idealizou o Plano Trienal, cujos objetivos incluíam o estímulo ao crescimento econômico e o combate à inflação com distribuição de renda e impulsionamento das reformas de base.

O projeto de materialização de seu pensamento para o país interrompeu-se devido ao golpe civil-militar de 1964. Furtado, um dos vários indivíduos que tiveram os direitos políticos cassados pelo Ato Institucional Nº 1, precisou exilar-se. Seu primeiro destino foi Santiago (Chile), onde trabalhou com a Cepal, indo mais tarde para New Haven (Estados Unidos), onde atuaria como pesquisador da Universidade de Yale. Porém, em 1965, transferiu-se para Paris, onde passou a lecionar na mesma Sorbonne em que havia defendido seu doutorado.

O período na França traduziu-se no de maior produtividade intelectual do economista, publicando então 10 de seus mais de 40 livros, além de textos integrais, obras organizadas e compilações de textos. “Ele foi traduzido em diversas línguas, até em farsi. Lembro que nos ligaram uma vez do Irã comunicando que a tradução tinha sido feita do espanhol, sem autorização. Em agradecimento, nos enviaram um exemplar do livro e uma caixa de pistaches iranianos”, lembra d’Aguiar com humor. Furtado também esteve em diversos países, em meio a missões da ONU e em viagens de pesquisa. Da França, retornou ao Brasil apenas em 1979, com a Lei da Anistia. No mesmo ano, casou-se com Rosa Freire d’Aguiar, com quem permaneceu até o fim da vida.

O professor Alexandre de Freitas Barbosa: Furtado interpretou o “capitalismo na periferia do mundo e suas manifestações concretas”
O professor Alexandre de Freitas Barbosa: Furtado interpretou o “capitalismo na periferia do mundo e suas manifestações concretas”
O professor Alexandre de Freitas Barbosa: Furtado interpretou o “capitalismo na periferia do mundo e suas manifestações concretas”
O professor Alexandre de Freitas Barbosa: Furtado interpretou o “capitalismo na periferia do mundo e suas manifestações concretas”

Da cultura ao desenvolvimento sustentável

Da cultura ao desenvolvimento sustentável

Celso Furtado, então ministro da Cultura, cargo que ocupou entre 1986 e 1988, recebe o compositor Gilberto Gil: criando as primeiras leis de incentivo na área
Celso Furtado, então ministro da Cultura, cargo que ocupou entre 1986 e 1988, recebe o compositor Gilberto Gil: criando as primeiras leis de incentivo na área

Conforme as ideias de Furtado se consolidavam e ganhavam maturidade nos debates econômicos, o contato com a realidade histórica e material dos diferentes locais onde atuou fez com que o pesquisador incorporasse novos elementos a sua leitura de mundo. “A ideia de desenvolvimento é seu conceito primordial, mas, à medida que ele desenvolveu sua teoria, incorporou adjetivos a ela”, comenta d’Aguiar.

Nos anos 1950, no doutorado na Sorbonne e na experiência junto à Cepal, Furtado voltou-se para o desenvolvimento econômico. Com a criação da Sudene e o trabalho com as mazelas da Região Nordeste, passou a considerar que a pujança econômica não poderia ser dissociada do desenvolvimento social e da redução das desigualdades. Ao longo dos anos 1970, a vida junto à intelectualidade parisiense e a efervescência dos debates sociais e culturais abriram duas novas dimensões em seu pensamento: as implicações do desenvolvimento para o meio ambiente e o papel da cultura nesse processo.

A preocupação com o meio ambiente surge com mais força na obra do economista a partir da publicação de O Mito do Desenvolvimento Econômico. A consciência ecológica, porém, já figurava como tendência entre seus contemporâneos. “Essas eram ideias que já estavam em debate e ele as sintetizou e as catalisou”, afirma André Furtado, que cita a influência do franco-polonês Ignacy Sachs, um dos responsáveis por formular o conceito de ecodesenvolvimento, um conceito que mais tarde receberia o nome de desenvolvimento sustentável.

Outra influência importante para essa abordagem, algo mencionado pelo próprio Furtado em sua obra, deu-se por meio do relatório Os Limites do Crescimento, elaborado por cientistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) sob o comando de Donella Meadows. O documento saiu publicado em 1972, por encomenda do Clube de Roma. Na época, a obra conquistou popularidade ao analisar a evolução de variáveis como o crescimento populacional, a industrialização e o consumo de recursos naturais e ao concluir que, sem uma mudança no modelo de crescimento, o desenvolvimento desenfreado levaria a um colapso ambiental.

O estudo corroborou o que Furtado já havia teorizado acerca da realidade brasileira: não ocorreria uma convergência de desenvolvimento entre todos os países. Caso isso acontecesse, o modelo dos países centrais não seria o mais adequado ao Sul Global. E, ainda assim, se implementado, um modelo de desenvolvimento sem controle esbarraria nos limites impostos pelo meio ambiente. O economista chegou a adotar uma postura crítica em relação aos que consideravam as novas tecnologias uma forma de minimizar o problema, afirmando que a própria produção dessas tecnologias provocaria impactos ambientais. Por isso, se para os pesquisadores do MIT o desenvolvimento resultaria em algo limitado, para Furtado, a promessa de desenvolvimento pleno, aos moldes centrais, constituía um mito.

No fim dos anos 1970 e ao longo da década de 1980, a discussão sobre a dimensão cultural do desenvolvimento também ganha contornos mais nítidos. O debate surge em 1978 com Criatividade e Dependência na Civilização Industrial, obra em que o economista reflete sobre a necessidade de os países periféricos utilizarem suas próprias capacidades materiais e imateriais para elaborar modelos de desenvolvimento que garantam autonomia. “A partir do momento em que temos a criatividade de pensar novas formas de interação entre o desenvolvimento e as estruturas sociais, novas formas de política e de inserção no cenário externo, a economia deixa de ser um elemento dado, uma sequência pré-determinada”, reflete Barbosa.

Furtado passou então a se dedicar à cultura brasileira, vendo-a como um motor para a criação de novos modelos de consumo e de crescimento. “Ele via a cultura como uma atividade econômica que, no futuro, seria cada vez mais importante por conta das transformações da sociedade industrial, em que bens intangíveis se tornariam mais relevantes”, lembra André Furtado. Tal pensamento pôde ser posto em prática pelo economista. Ao retornar para o Brasil após a Lei da Anistia, Furtado filiou-se ao então Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em 1981. Com a ascensão de José Sarney à Presidência, em 1986, assumiu o Ministério da Cultura, onde ficou até 1988, período no qual tomou várias medidas, entre as quais a criação das primeiras leis brasileiras de incentivo fiscal à cultura.

Placa no IE em homenagem a Celso Furtado, que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp em 1990
Placa no IE em homenagem a Celso Furtado, que recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Unicamp em 1990
O professor Paulo Fracalanza: pensando o desenvolvimento econômico para além do proposto até então
O professor Paulo Fracalanza: pensando o desenvolvimento econômico para além do proposto até então
Celso Furtado concede entrevista em 1963 como ministro do Planejamento do governo de João Goulart, que foi deposto pelos militares: intelectual na linha de frente

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