O corpo como instrumento
Técnica desenvolvida por musicóloga é testada em pacientes que sofreram AVC
O corpo como instrumento
Técnica desenvolvida por musicóloga é testada em pacientes que sofreram AVC
Em um pequeno estúdio da Unicamp, uma mulher dança delicadamente. Seus braços e pernas fluem com elegância, criando uma harmonia com a música e imagens coloridas que ganham vida nas paredes. A cada gesto da bailarina, o ambiente se transforma: quando eleva os braços e desloca os ombros, as imagens explodem em uma vibrante fusão de cores. Quando contém seus movimentos, as figuras se acalmam, retornando a um tranquilo tom de amarelo claro.
Nessa performance, registrada no Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics) da Universidade, a bailarina demonstra o funcionamento do BehCreative, uma caverna digital desenvolvida pela musicóloga e pesquisadora de pós-doutorado Elena Partesotti. A tecnologia, cujo nome deriva da expressão em inglês behave creatively – comporte-se de forma criativa –, consiste em um instrumento musical digital estendido (EDMI, na sigla em inglês) de realidade virtual e aumentada, em que imagens e sons podem ser manipulados pelos usuários com o apoio de recursos interativos.
Usando um computador, um rastreador de gestos, projetores de imagem e caixas de som, o BehCreative gera respostas visuais e auditivas baseadas nos movimentos realizados pelo usuário, movimentos esses associados a diferentes sons e padrões de cor. “A ideia é que seu corpo vire um instrumento musical. Não há um objeto físico. Você com seus movimentos produz sons e imagens, algo conectado ao paradigma da cognição incorporada”, explica Partesotti, referindo-se à teoria filosófica segundo a qual as experiências cognitivas humanas são influenciadas pela interação do corpo com o ambiente.
Criado para explorar como os sons e os movimentos podem se combinar em ambientes imersivos, a proposta inicial desse EDMI é estimular processos artísticos e criativos no âmbito da musicoterapia. Isso porque estudos já demonstraram que intervenções musicais oferecem importantes instrumentos para a promoção do bem-estar físico e psicológico de pacientes. Essas ferramentas estimulam a produção de hormônios como ocitocina, dopamina, norepinefrina e adrenalina, conectados a emoções como amor e prazer, e de melatonina, que regula processos biológicos como o sono e o despertar e, por isso, conseguem reduzir a ansiedade e a depressão, além de aliviar a dor e melhorar a qualidade de vida de pessoas com déficits cognitivos como a doença de Alzheimer.
No entanto estudos mais recentes também vêm apontando efeitos positivos da terapia musical na neuroplasticidade do cérebro – a capacidade do sistema nervoso central de se adaptar a novos estímulos ambientais – e na reabilitação de pessoas que sofreram um acidente vascular cerebral (AVC). Por esse motivo, um dos objetivos da musicoterapeuta é avaliar a capacidade do BehCreative de reabilitar a função motora e a capacidade cognitiva desses pacientes, um projeto levado a cabo sob a orientação da docente Gabriela Castellano, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW).
De acordo com a docente, o instrumento musical desenvolvido ainda está na fase de protótipo, mas os pesquisadores pretendem que, um dia, ele possa ser utilizado pelos pacientes dentro de suas próprias casas, como uma forma complementar de tratamento fisioterapêutico. “A gente sabe que doenças debilitantes estão se tornando mais comuns por conta do estilo de vida sedentário e também do envelhecimento da população. Então há cada vez mais pessoas com sequelas neurológicas devido a diversas condições de saúde. E hoje em dia as clínicas e fisioterapeutas já não dão conta da demanda crescente de pessoas com essas sequelas”, observou a professora.
Reabilitação cognitiva
Castellano é uma das pesquisadoras principais do Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia (Brainn, na sigla em inglês) da Unicamp, que investiga os mecanismos causadores da epilepsia e de AVCs e os danos gerados por essas ocorrências. Antes de trabalhar com Partesotti, a professora já desenvolvia aplicativos de realidade estendida para terapia de pacientes com AVC, em parceria com o pesquisador de pós-doutorado Alexandre Brandão. “A gente tem avaliado quais mudanças cerebrais decorrem do uso desses aplicativos, com a ideia de entender como o cérebro se reorganiza depois disso. Para tanto, usamos técnicas de neuroimagem, como a ressonância magnética funcional e a eletroencefalografia”, explica.
No entanto tais dispositivos não empregam recursos musicais e, por serem voltados à reabilitação motora, demandam movimentos específicos e pré-determinados do paciente, o que limita a criatividade do usuário e, consequentemente, uma possível resposta cognitiva. Por esse motivo, as pesquisadoras desejam agora empregar as mesmas técnicas de neuroimagem na avaliação de usuários do BehCreative, verificando se, por se tratar de uma atividade mais criativa, isso levará a uma melhora na capacidade cognitiva dessas pessoas.
Testes preliminares utilizando ressonância magnética funcional já demonstraram que, após o uso do BehCreative, pessoas saudáveis passaram por uma alteração de conectividade em regiões associadas às emoções, influenciando a regulação emocional e aumentando a expressão criativa dos usuários. Esses dados estão para ser publicados no Nordic Journal of Music Therapy (NJMT), um dos maiores periódicos de musicoterapia do mundo. Entretanto, devido às limitações impostas pela pandemia de covid-19, os testes envolveram apenas cinco pessoas, o que dificulta a generalização dos resultados. Mais recentemente, o estudo foi refeito com 15 usuários saudáveis, mas esses dados ainda estão sob análise.
Neste momento, Partesotti e Castellano estão iniciando os experimentos com o BehCreative em pacientes de AVC e buscando novos candidatos para participarem da pesquisa. Em um total de dez dias de testes, na Unicamp, os usuários utilizarão o equipamento por um período máximo de 10 minutos, quando passarão por uma eletroencefalografia, para registrar quaisquer alterações no funcionamento do cérebro, e receberão atendimento de um fisioterapeuta. “A ideia é que a pessoa decida como se expressar nesse equipamento. A gente chama isso de empoderamento criativo, que significa oferecer instrumentos para que ela possa aplicar o que gosta de fazer em sua reabilitação, buscando uma melhora motora e cognitiva”, afirma a pesquisadora.