Conteúdo principal Menu principal Rodapé

Publicidade captura o discurso ambiental

Estudo analisa como o marketing digital usa a sustentabilidade para captar consumidores

Atividade de ecoturismo em manguezal no Rio Majé, que deságua na Baía da Guanabara: marketing digital usa urgência ambiental para criar estratégias de apelo mercadológico
Atividade de ecoturismo em manguezal no Rio Majé, que deságua na Baía da Guanabara: marketing digital usa urgência ambiental para criar estratégias de apelo mercadológico

A materialidade digital se expande a olhos vistos neste início do século XXI. Um espaço livre no qual o marketing digital surfa por temas (e produtos) diversos. A questão ambiental não poderia escapar dessa apropriação porque, diante da sua importância e urgência, esse assunto consegue capturar o tempo e a atenção das pessoas. Como a venda publicitária está atrelada aos dados do consumidor e à forma como usa seu tempo, o marketing digital cria estratégias para organizar os e se apropriar dos discursos ambientais, de modo a acelerar a circulação de mercadorias. Tendo essa trama em mente, o jornalista Enrico Cândido Pereira da Silva identificou dois discursos inconciliáveis, o da perspectiva da extinção dos recursos naturais e o do imaginário brasileiro de natureza abundante e sem fim – finito versus infinito.

Para analisar esses discursos, Silva saltou da web para a carta de Pero Vaz de Caminha. A descrição das primeiras impressões sobre a nova conquista portuguesa, feita pelo escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, fala da beleza e exuberância da fauna e da flora na terra indígena de Pindorama. Essa ideia constitui um dos discursos fundadores do Brasil, atualizado amiúde na elaboração da identidade nacional.

O Brasil tem se descrito como um “gigante por natureza” – conforme a letra do Hino Nacional – e um grande produtor de alimentos, destaca o pesquisador. “O marketing digital produzido por grandes marcas vem determinando a circulação dos discursos no ambiente digital.” Em sua dissertação “Sentidos à venda: uma análise da apropriação do discurso ambiental pelo marketing digital”, Silva evidencia a forma de construção das mercadorias simbólicas – pelo marketing –, que delimita as formulações no ambiente digital. A dissertação contou com orientação do professor Marcos Barbai, dentro do Programa de Divulgação Científica e Cultural (PDCC) do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) em parceria com o Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

A publicidade é a principal fonte de renda das redes sociais. Nesse contexto, o marketing se apropria, por exemplo, do discurso das causas sociais e ambientais como estratégia para reter a atenção dos consumidores. A expansão da materialidade digital pelo marketing altera a forma de produção da publicidade, que por sua vez condiciona como os discursos vão circular no ambiente digital.

Silva utilizou como aparato teórico a análise de discurso materialista, que se propõe a entender os efeitos de sentido da linguagem em seu funcionamento, dando visibilidade ao que está transparente. Por essa perspectiva, o pesquisador descreve a publicidade organizada pelo marketing como responsável por “perturbar os sujeitos no espaço urbano impondo a obrigatoriedade de escolher como desejam ser lidos”. O produto comprado, portanto, não é tão somente um objeto, explica o pesquisador, “mas é a imagem que você vai passar com aquele objeto”. Trata-se de uma escolha que, de uma forma ou outra, não depende do consumidor, porque está fora dele. “Por isso, as marcas constroem essa camada de valor agregado aos produtos.”

O autor da dissertação, Enrico da Silva: uma análise da apropriação do discurso ambiental pelo marketing digital
O autor da dissertação, Enrico da Silva: uma análise da apropriação do discurso ambiental pelo marketing digital

Identidade nacional

Com essa ideia sobre como os sujeitos desejam ser lidos, Silva investigou a identidade nacional, ou seja, como o Brasil deseja ser lido, “ou como ele é lido, dentro da sua subjetividade” e quais os discursos que existem nesse sentido. Em sua tese, o pesquisador citou Pero Vaz de Caminha e a frase “nessa Terra, em se plantando tudo dá”, atribuída ao escrivão português, mas que não aparece nas cartas. Uma frase que, de toda forma, fincou-se no imaginário brasileiro. “A relação que busco desse imaginário com o consumo é a seguinte: na medida em que a sustentabilidade se torna uma dessas mercadorias simbólicas, como funciona esse discurso e quais os sentidos que esses consumidores compram?”

Além de Pero Vaz, Silva tratou em sua pesquisa de Lima Barreto (Triste Fim de Policarpo Quaresma), Oswald de Andrade (Manifesto Antropofágico) e Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil). “Tentei apresentar uma documentação que atestasse esse antigo conflito existente nas discussões sobre a preservação ambiental, porque, ao mesmo tempo que sempre tivemos essa significação de uma natureza exuberante e infinita, a ser explorada, também existiu a noção da finitude.”

Citando Raízes do Brasil, Silva aborda a questão da finitude. Holanda descreve como era raro uma fazenda permanecer nas mãos de uma mesma família por muitas gerações porque esses produtores desgastavam a terra até o limite e, então, mudavam de lugar. “Essa documentação mostra como esse modelo destrutivo não é de hoje e sempre foi muito custoso para nosso desenvolvimento”, afirma o pesquisador.

Com Oswald de Andrade, Silva trata da metáfora da antropofagia, trabalhada pelo autor dentro do movimento modernista na tentativa de ressignificar a constituição da identidade brasileira. O modernista defende a ideia de que o brasileiro dialoga com todos os tipos de cultura, incorporando-os antropofagicamente. “Mas eu acrescento a isso a metáfora da indigestão antropofágica, porque nossa sociedade não consegue digerir esse conflito dos discursos, não consegue se entender sobre o senso comum da natureza infinita e a realidade ambiental.”

Apropriação do discurso

De acordo com Silva, se de um lado existe o discurso da responsabilidade ambiental nas cobranças dos movimentos sociais, nas reportagens de jornais e em posts nas redes sociais, por outro lado existem as empresas buscando controlar o discurso sobre a natureza, ao tentarem se colocar como protagonistas e como donos de uma iniciativa ambiental. O pesquisador sublinha esse descompasso. “A apropriação dos discursos pelo marketing acabou promovendo uma reconfiguração de nossa subjetividade.”

O corpus de pesquisa tem composição bem diversa, incluindo marcas do setor de alimentos e bebidas que se apropriam da causa da sustentabilidade, anúncios digitais, reportagens, notas de movimentos sociais, embalagens, tratados sobre o meio ambiente, mensagens do Instagram e do X (antigo Twitter), clipes de música, posts do TikTok e do YouTube e dossiês de movimentos sociais. “Esse conjunto reflete a dispersão autoral característica da materialidade digital. Há um discurso em circulação do qual não se sabe quem seja o autor.”

A clivagem do consumidor, explica Silva, se dá de acordo com a forma como os algoritmos funcionam, identificando interesses de cada um e mapeando grupos. “O sujeito que compra produtos que se dizem sustentáveis pode se sentir parte da solução e não parte do problema”, afirma o jornalista, que aponta ainda o paradoxo de o próprio discurso de preservação ambiental se transformar em mercadoria simbólica. “Trago como exemplo de mercadoria simbólica o boné do MST [Movimento dos Trabalhdores Rurais Sem Terra]. O marketing faz os discursos críticos se tornarem produto.”

Ir para o topo