Do campo à merenda escolar
Do campo à merenda escolar
Tese analisa o papel do Pnae na valorização da agricultura familiar e os desafios logísticos na distribuição de alimentos
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), considerado o maior programa do tipo no mundo, atende a aproximadamente 40 milhões de estudantes, quase um quinto da população brasileira. Essa alimentação é em parte garantida pela agricultura familiar, que oferta produtos de qualidade às crianças. No entanto, para fazer chegar os alimentos às escolas, os produtores enfrentam desafios logísticos. Em uma tese de doutorado defendida no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, Heloísa Lopes se deteve sobre esse assunto e analisou os usos agrícolas do solo a partir de um trabalho de campo realizado no Estado do Paraná.
“O Pnae é uma política pública de abrangência nacional e, junto com o salário mínimo e a aposentadoria, uma das mais capilarizadas no nosso país”, aponta a pesquisadora. O programa não apenas garante a alimentação dos alunos, mas também dá apoio aos pequenos agricultores, que em muitos casos têm no Pnae sua principal (ou mais estável) forma de sustento.
Pelo fato de o governo destinar 30% dos recursos do programa, obrigatoriamente, para a compra de alimentos oriundos da agricultura familiar, essa acabou incluída como cobeneficiária da política, a partir de 2009. Dessa forma, explica a geógrafa, o programa incentivou o circuito inferior da economia agrária, do qual fazem parte os pequenos produtores. A ideia de dois circuitos da economia urbana, diz, foi cunhada pelo geógrafo Milton Santos, e na tese Lopes a transpõe para a questão agrária.
A pesquisadora menciona também em seu trabalho o circuito superior da economia agrícola que, de acordo com a professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) Denise Elias, abrange o agronegócio globalizado, setor voltado à agricultura de escala internacional. Segundo Lopes, o circuito inferior, caracterizado pela força de trabalho familiar, inclui “uma parcela da agricultura que não conseguiu se modernizar no mesmo ritmo. Essa, no entanto, sofre os efeitos da modernização e precisa se adaptar ao mundo globalizado sem estar inserida plenamente nesse processo”.
Por meio de entrevistas com membros de cooperativas do Paraná sediadas em Cascavel, Ivaí, Jardim Alegre e Lapa, a pesquisadora constatou que, para o circuito inferior, o Pnae desempenhou um papel transformador. Antes do programa, os agricultores ficavam reféns de atravessadores. Nos relatos que Lopes colheu, muitos apontaram que o Pnae permitiu uma forma de autonomia. E, para algumas mulheres que não tinham acesso a nenhum tipo de renda financeira, o programa também funciona como uma forma de empoderamento.
Dasafios logísticos
Ao mesmo tempo que mudou a vida no campo, o Pnae também exigiu adaptações. “Esses agricultores precisam pensar em quantidade, em formas de produzir e em calendários específicos do programa. Precisam pensar não só na circulação, o fator classicamente ligado à logística, mas em todo o processo organizativo, tanto para produzirem de forma coletiva quanto para fazer esse alimento chegar às escolas no tempo certo, em quantidade e com qualidade específicas. Tudo isso se agrega aos desafios enfrentados pela agricultura familiar quando se trata do Pnae”, afirma a pesquisadora.
A logística, identificou a geógrafa, representa a principal dificuldade no caso dessas pessoas, já que o transporte de alimentos perecíveis até diversas unidades escolares é um processo complexo. Falta apoio do Estado para sanar os problemas enfrentados. Mesmo no Estado do Paraná, o único que, na época do início da pesquisa, utilizava 100% dos recursos repassados pelo governo federal para comprar produtos da agricultura familiar, os órgãos públicos concentram-se em oferecer auxilio logístico para os grandes fornecedores. “Quando compra das indústrias arroz, feijão, biscoito ou macarrão em quantidade, por exemplo, o Estado assume a logística, por entender que ela é muito complexa para as empresas fazerem. Existe então uma disparidade no tratamento dos agentes, mesmo quando falamos de um Estado teoricamente mais empático com os pequenos agricultores”, avalia.
Assim, cabe às cooperativas e aos agricultores organizados encarregarem-se do transporte dos produtos. Os entrevistados na pesquisa apontaram que, mais do que esperar o Estado oferecer o transporte, esperam haver valorização do que já é feito por eles, até porque consideram algo positivo o seu contato direto com cada núcleo escolar.
“Eles contaram sobre o quanto é relevante ter contato com a diretora da escola, com a merendeira. E apontaram a relevância de ter retorno da comunidade que recebe o alimento, afirmando ser importante que saibam quem são e como o elaboram, para que o alimento não perca sua identidade. Então, acho que mais do que uma logística do Estado para os pequenos, no caso do Pnae, chegamos à conclusão de que o conhecimento acumulado por esse segmento precisa ser valorizado e que o Pnae precisa ter recursos específicos voltados para a logística.”
Segundo o orientador da tese, professor Ricardo Castillo, isso seria importante para que o programa de fato alcançasse o patamar de 30% das verbas destinadas à agricultura familiar e para que até mesmo elevasse esse percentual. “Isso precisa ser superado. Se não for superado, não vai dar pra reivindicar 40% ou 50%, o que seria importante porque o alimento da agricultura familiar é nutricionalmente superior aos produtos processados comprados dos grandes atacadistas. A qualidade nutricional dos alimentos dos alunos também está em jogo.”
A tese, afirma o docente, mostra que o circuito inferior da economia agrária também precisa de uma inteligência para a logística, algo ainda pensado, em sua avaliação, mais para o setor corporativo. “Quem produz alimentos são os pequenos. E os pequenos precisam de inteligência para a distribuição e a circulação. Identificamos isso como um quesito que precisa avançar junto à agricultura familiar. Trata-se de algo muito importante dentro do Pnae, porque cada vez mais o próprio programa exige das cooperativas e dos produtores uma organização sofisticada.”