A crise da legitimidade dos discursos
Para o cientista político Luis Felipe Miguel, mídias digitais promovem um ambiente que fragiliza o debate democrático e incentiva a superficialidade
As tecnologias de comunicação e informação ocupam, cada vez mais, um papel central na vida contemporânea. Muito mais do que dispositivos e espaços virtuais de troca e consumo de conteúdos, as novas mídias modificam nossas formas de sociabilidade a ponto de influenciar os rumos da política e da democracia. Se antes os jornais, as rádios e a televisão detinham a capacidade de legitimar os discursos em circulação na esfera pública, hoje as mídias oferecem a cada um a capacidade de consumir e reverberar as informações que mais se encaixam a uma visão de mundo agradável e conveniente para esse sujeito.
Cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB), Luis Felipe Miguel analisa as implicações e os riscos dessa nova realidade social. Miguel esteve presente na Unicamp durante o 48º Encontro Anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais). Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o professor reflete sobre os dilemas da esquerda ao se comunicar nos espaços digitais e avalia como pesquisadores e universidades podem aproveitar as mídias para defender a ciência e o pensamento crítico.
Jornal da Unicamp – O senhor analisa a situação da democracia diante de um contexto em que o jornalismo passa por uma crise de legitimidade impulsionada pelo uso das novas mídias. O senhor acredita haver um deslocamento dessa legitimidade para alguma outra instância ou não é mais possível pensar um espaço capaz de desempenhar essa função?
Luis Felipe Miguel – A tendência, acredito, é a erosão de qualquer balizamento apto a ensejar a produção de um discurso que circule socialmente como o mais legítimo. Isso não acontece apenas com o jornalismo. Vemos uma redução da autoridade da ciência, do conhecimento produzido pelas escolas… Todos os espaços que produziam um conhecimento antes reconhecido socialmente como autorizado encontram-se sob ameaça. Por um lado, isso poderia ser bom. As pessoas não se sentiriam indefesas diante das autoridades. Mas o que vemos hoje é uma espécie de vale-tudo. Tudo vira uma opinião. Não temos mais como nos opor a isso de forma eficaz. E o jornalismo cumpria essa função quanto aos fatos do dia a dia.
Claro que há o problema de existir um viés nas mídias, uma certa relação entre as empresas e determinados interesses. Mas, ao mesmo tempo, havia um sistema que ajudava a balizar nossa vida cotidiana por meio de um conjunto de informações que, na qualidade de um padrão, aceitávamos como verdadeiros. Isso não existe mais. As pessoas se fecham em bolhas nas quais os jornalistas são vistos, por exemplo, como comunistas, membros de conspirações, mentirosos. E não há como se contrapor a isso. O jornalismo investe na checagem de fatos, mas as agências de checagem podem ser acusadas de participarem das mesmas supostas conspirações. Isso não significa que haja um outro centro detentor da credibilidade. Tudo varia conforme as circunstâncias. Vivemos uma espécie de caos da legitimidade dos discursos. Trata-se de uma espécie de livre mercado discursivo e, como qualquer livre mercado, quem tem maior poder econômico acaba favorecido.
JU – Talvez uma razão para isso seja a progressiva individualização do consumo por meio dessas mídias?
Luis Felipe Miguel – Penso que esse seja um aspecto. Embora a gente sinta que, com essas plataformas sociodigitais, estejamos em algum tipo de conexão permanente, na verdade estamos cada vez mais isolados. Nossas relações desenrolam-se cada vez mais à base de reações padronizadas. Nós reagimos curtindo uma postagem, eventualmente compartilhando essa postagem. Isso substitui qualquer outra relação mais forte. Parece que os espaços nos quais costumávamos compartilhar nossas impressões e éramos capazes de, pelo diálogo, construir alguma visão de mundo compartilhada estão sendo erodidos. Cada um fica isolado em seu canto e o único espaço comum em que estamos todos presentes é controlado pelas grandes empresas de tecnologia. As plataformas conseguem determinar a maneira como as relações ocorrem e nos empurram para o isolamento, para a fragmentação.
JU – Antes nós tínhamos um cenário de mídias analógicas, quando se criticava bastante a concentração de veículos nas mãos de poucas empresas. Porém as big techs, que controlam as mídias sociais hoje, compõem um cenário ainda pior, não é?
Luis Felipe Miguel – Sim. Temos corporações muito mais transnacionalizadas. As empresas operam de forma global, com decisões implementadas por todo o mundo. Isso é curioso porque as regras-padrão de garantia da concorrência deveriam intervir nesse cenário. Como é possível Instagram, Facebook, WhatsApp, tudo nas mãos de uma mesma corporação? Temos visto algumas tentativas de governos de quebrar esses monopólios, mas é difícil por causa do peso político que essas empresas possuem. Então a situação está pior a partir desse ponto de vista. Há o Elon Musk, um aloprado que faz questão de ostentar abertamente sua influência em favor de determinados grupos, interesses e plataformas políticas. Isso é mais fácil de ser combatido. Por outro lado, há o [Mark] Zuckerberg, que faz o papel de adulto na sala, mas na prática não age de forma muito diferente. Trata-se de pessoas usando o peso que têm para defender seus interesses, interesses esses que, embora muito pragmáticos, de ampliar o lucro e o valor das empresas, coincidem com a plataforma da extrema direita, no sentido de que não deve haver nenhum tipo de regulação. Trata-se de uma ideia de livre mercado muito rasa, como se diante desses gigantes houvesse uma livre competição, tanto empresarial quanto de ideias.
Exceto no caso de Elon Musk, não acho que exista uma adesão completa ao ideário da extrema direita por parte dessas pessoas. Pelo contrário, muitas delas vêm de posições progressistas. Acontece que a extrema direita defende um ambiente completamente desregulado e isso coincide com os interesses dessas empresas. Essas corporações, inclusive, operam de maneira ambígua. Quando acham necessário, querem as mesmas prerrogativas dos órgãos de imprensa. Porém, quando acham conveniente, dizem ser um simples canal neutro de informações, uma empresa de tecnologia. Tentam garantir o melhor dos dois mundos com absoluta irresponsabilidade em relação às consequências sociais do que fazem.
JU – Neste cenário, como o senhor avalia o embate ocorrido entre a rede social X, antigo Twitter, e o Supremo Tribunal Federal (STF)?
Luis Felipe Miguel – Estamos diante de uma questão complicada. É óbvio que isso foi necessário. Essa é uma questão de soberania. O Estado brasileiro tem de ser capaz de regular o que ocorre nas redes e, evidentemente, o Twitter estava operando de maneira afrontosa em relação às instituições do Estado. Acho correta a suspensão [da rede social, imposta pelo Poder Judiciário] e o fato de essa medida ter sido prorrogada também mostrou que o discurso alarmista feito pelas big techs, de que seria um caos suspender a rede, não se concretizou. Por outro lado, não temos parâmetros claros a respeito disso. É complicado dizer como regular as redes para garantir a sanidade do debate sem ameaçar o valor da liberdade de expressão. Isso não pode depender do arbítrio de um ministro do STF. Esse debate precisa ser feito no Parlamento, no Judiciário e na sociedade civil. Sempre é difícil regular a liberdade de expressão, mas sabemos que deixar esse quesito sem regulação significa abrir portas para abusos. A chance de ocorrer esse debate, porém, está interditada, porque a extrema direita, aliada com as big techs, faz de tudo para bombardear a possibilidade. Foi o que aconteceu com o PL 2.630/2020 [o projeto conhecido como Lei das Fake News]. Aquele era o momento de debater quais seriam essas balizas. No entanto, para evitar a aprovação de algo que reduziria o número de fake news, realizou-se uma campanha gigantesca de desinformação, que não destruiu apenas o projeto, mas o debate. No fim, houve uma discussão entre se devemos ou não aprovar uma regulação ao invés de uma discussão sobre a questão central, que é como regular esse assunto.
JU – Hoje em dia vemos parlamentares e membros do Executivo se utilizando das mídias sociais para fazer suas campanhas, divulgar suas plataformas, apresentar questões para a opinião pública. Por que a direita e a extrema direita conseguem se utilizar desse expediente com mais sucesso? O senhor acredita que isso precisa ser feito também pela esquerda?
Luis Felipe Miguel – Muitas vezes parece que a solução para a esquerda é, simplesmente, mimetizar o que a direita faz. Vemos, por exemplo, o deputado André Janones muitas vezes defendendo algo nessa linha. Ele sempre está na fronteira da legalidade. A verdade é que, ilegal ou não, o tipo de uso que Janones faz das mídias não eleva o nível do debate político. Pelo contrário, muitas vezes reproduz preconceitos, reforça estereótipos. E nunca leva de fato o debate para questões centrais. Devemos ter uma visão pragmática da política e enfrentar as coisas como essas coisas se apresentam. Mas, por outro lado, se não somos capazes de mudar a agenda, estaremos sempre na reação, correndo atrás do prejuízo. Precisamos usar as redes de outra maneira, aproveitando-as para construir uma nova agenda, apresentar novos enquadramentos e um novo horizonte para orientar a disputa política.
Isso, porém, é difícil não apenas por causa de uma incapacidade da esquerda, mas porque existe uma afinidade entre o tipo de ambiente criado pelas redes e o discurso da direita. Um ambiente no qual a disputa pela atenção acelerou tudo, no qual o discurso ideal dá-se na forma do meme, no qual uma frase encerra uma questão. Uma frase, porém, não alcança nenhum tipo de complexidade. O discurso da esquerda, marcado pelo objetivo de transformar o mundo, exige mais concentração porque deve desconstruir o que já está posto. Por exemplo, fica mais fácil dizer que “bandido bom é bandido morto” do que explicar as razões sociais da criminalidade. Não se consegue discutir isso em um tweet ou em um meme. Faz-se necessário um esforço para construir outros caminhos de raciocínio e, nesse ambiente, isso revela-se mais difícil.
JU – Desse ponto de vista, e considerando a experiência recente das eleições municipais, seria mais fácil para a esquerda disputar eleições nacionais, nas quais é possível debater grandes temas, do que disputar eleições municipais, nas quais as questões ganham contornos mais pragmáticos?
Luis Felipe Miguel – Não sei. Há uma dificuldade nesse cenário. Os governos municipais possuem uma amplitude de ação muito mais limitada. Embora seja possível para a esquerda abordar algumas questões, essas questões sofrem uma regulação por parte do sistema federativo. Então é difícil não fazer mais do mesmo. Isso leva ao dilema central de todo político comprometido com a esquerda em uma estrutura capitalista: adaptar-se para fazer o possível, reduzindo seu diferencial em relação aos outros, ou marcar posição e ser derrotado permanentemente, mas com um projeto de longo prazo. Isso representa um fator grave no Parlamento e mais ainda quando se chega ao Poder Executivo. Talvez nas eleições nacionais haja mais espaço para discutir temas de maior amplitude e discutir projetos de sociedade de uma maneira mais aberta.
JU – O senhor é um usuário frequente de mídias sociais. Como é sua experiência? De que forma o senhor acredita que os acadêmicos e as universidades devem se colocar nessas mídias?
Luis Felipe Miguel – É importante entendermos que o pesquisador visa a um tipo de atuação profissional. O divulgador científico visa a outro tipo. Às vezes, o pesquisador pode ser um divulgador científico e às vezes, não. Isso não é demérito nem para um nem para o outro. Às vezes, esse sujeito pode ser apenas divulgador científico, o que é importantíssimo, ou ser um pesquisador sem talento para fazer divulgação científica. E há o influenciador digital, algo completamente diferente. Precisamos olhar de forma objetiva para esses tipos de atuação e evitar ceder às tentações, porque as mídias tendem a transformar tudo em um “Fla-Flu”. A pessoa passa a ter fãs e haters e acaba condicionada a não decepcionar os fãs e a provocar os haters. Isso faz parte do jogo no ambiente digital. Porém o papel do cientista, inclusive do cientista social, não pode ser esse. Por mais que nosso estudo esteja sempre politicamente posicionado, o cientista social não é um marqueteiro de partidos políticos. Ele pode ser militante, mas como cientista social. O melhor que pode fazer em prol de sua militância é manter o espírito crítico.
Também penso que as universidades devem ter estratégias institucionais de comunicação em defesa da própria universidade e do conhecimento científico. As instituições possuem condições de produzir materiais de qualidade permanente. Temos material humano com competência para produzir isso e mostrar o que é a universidade, qual a contribuição que essa instutição e a ciência dão à sociedade todos os dias. Isso deve ser feito não de forma isolada, mas pensado em uma estratégia conjunta a fim de avançarmos nos diferentes espaços. O que vemos hoje é um esforço permanente de destruição simbólica do conhecimento científico, principalmente do das ciências humanas, e também do das naturais e da ideia de universidade pública. Há um esforço de fazer com que a sociedade se volte contra as universidades, como se essas instituições fossem um desperdício de dinheiro e não houvesse um retorno à sociedade. Precisamos reagir a isso pensando em uma política de comunicação efetiva.