Pesquisa revela valsa desconhecida de Carlos Gomes
Pesquisa revela valsa desconhecida de Carlos Gomes
Apresentada no I Festival Unicamp de Ópera, obra instiga novo olhar sobre o legado do compositor
Eram pouco mais de 20h do dia 5 de setembro de 2024. No Teatro Municipal Castro Mendes ecoaram as três batidas finais, sinalizando o início da programação da noite. A principal atração era a encenação da ópera Gianni Schicchi, de Giacomo Puccini, a ser apresentada pela Orquestra Sinfônica da Unicamp (OSU), então com a participação de solistas da Ópera Estúdio Unicamp – como parte do I Festival Unicamp de Ópera. A plateia quase lotada aguardava com expectativa e ficou sabendo que a abertura do programa contemplaria o prelúdio de “Uma noite no Castelo” e a ária n. 5, “Em sono plácido”, em celebração ao Mês Carlos Gomes, compositor campineiro. E mais: os presentes também teriam o privilégio de testemunhar um momento histórico, a estreia de uma valsa recém-descoberta de sua autoria, “Eva”.
A valsa é um estilo de música com ritmo ternário (em três tempos) comum nos bailes europeus do século 19 para a dança de casal. A autoria, no entanto, revela-se surpreendente, uma vez que Antônio Carlos Gomes, nascido em Campinas em 11 de julho de 1836, ganhou reconhecimento internacional com um repertório para voz, tendo poucas composições instrumentais. “Tudo indica que se trata de uma peça ‘solta’, que não está no contexto de uma ópera, o que a torna ainda mais rara. Além de ser bem escrita, bem articulada”, afirma a musicóloga responsável pela descoberta e docente do Instituto de Artes (IA) da Universidade, Lenita Waldige Mendes Nogueira. O percurso até a apresentação da peça ao público foi longo e contou com a ajuda do acaso e do trabalho árduo de muitas mãos e ouvidos.
A história começa no Museu Carlos Gomes, em Campinas, local onde Nogueira faz pesquisas há muitos anos, tendo inclusive catalogado os cerca de 700 manuscritos do acervo da instituição. Durante a busca por uma outra música, cerca de três anos atrás, a musicóloga se deparou com partituras nas quais se lia a frase: “Eva, de Carlos Gomes”.
“Esse material estava em outro lugar, com obras que não são relevantes para o nosso trabalho com música brasileira. Só depois de um tempo me caiu a ficha de que era uma obra de Carlos Gomes”, conta Nogueira. Trata-se de um conjunto de partituras datadas de 1871 e elaboradas por diferentes copistas – profissionais que reproduzem obras de outros artistas, importantes em uma época na qual não existia outro meio para a reprodução de originais. Não é, portanto, um manuscrito autógrafo, aponta a pesquisadora. “No entanto, em todas as partes instrumentais, está escrito ‘de Carlos Gomes’ [exceto na flauta].” Cada uma delas refere-se a 1 dos 13 instrumentos previstos na orquestração.
Após o material ter passado um período na gaveta, a musicóloga finalmente achou tempo para realizar sua edição, finalizada em 2023. Entretanto juntar tudo em uma harmonia coesa revelou-se mais desafiador do que pode parecer à primeira vista – como montar um quebra-cabeça sonoro ou a ossada de uma descoberta arqueológica. Primeiro, Nogueira transpôs o material nota por nota, para um software de edição musical. A partir de então, conseguiu localizar os trechos que não se encaixavam ou não estavam soando bem, ajustando possíveis erros ou omissões dos copistas. O que significa ouvir, testar, ouvir de novo, editar… Até chegar a uma sonoridade satisfatória.
“A música tem uma dinâmica que precisa ser seguida. Se a parte do violino está indicando pianíssimo [termo usado para determinar que a passagem deve ser tocada suavemente], como as outras partes não vão ter [essa marcação]? É preciso ouvir a harmonia, entender qual o sentido da música e alinhar as partes”, exemplifica a musicóloga.
Um trabalho que Nogueira conhece bem, tendo compilado a ópera Joanna de Flandres – em um projeto financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) –, cujo manuscrito original de Carlos Gomes está no Museu Histórico Nacional. “Trabalhei em cima de um material de trabalho do compositor. Era uma ‘rabisqueira’ que não se pode imaginar”, relembra ela, que acumulou experiência em várias outras iniciativas de catalogação, restauração e divulgação de composições brasileiras.
Depois de muitas horas de ajustes em cada instrumento e na orquestração como um todo, “Eva” passou, em seguida, pelo processo de “cavar as partes”. Em outras palavras, separar novamente as partituras, preparando-as para a performance de cada instrumentista da orquestra. Um esforço empreendido pelo pesquisador Tadeu Moraes Taffarello, do Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic). A obra viu-se, assim, pronta para passar por uma nova prova de fogo: a estante de partitura dos músicos da OSU, em meio ao desafio de unir pesquisa e interpretação musical.
Apesar de a área da musicologia não focar, diretamente, a execução das peças recuperadas, Nogueira celebra essa parceria e acredita haver um potencial para gerar novos frutos no futuro. “Pensamos bastante na preservação da música brasileira, mas foi interessante a OSU apresentar o resultado de uma pesquisa. Conseguirmos ouvir a valsa. A ópera Joanna de Flandres, por exemplo, só foi tocada dez anos depois do trabalho feito.”
A primeira execução
Em uma conversa casual entre Nogueira e a regente da OSU, Cinthia Alireti, surgiu a proposta de apresentar a novidade em setembro, durante o Mês Carlos Gomes – uma oportunidade de tirar a música do papel e também de estrear uma obra inédita do compositor. “Tem certeza que essa é uma obra de Carlos Gomes?”, indagou a maestrina. Para a orquestra, opina ela, trata-se de um grande achado, justamente pelo fato de a composição não exigir canto.
Desafio aceito, a etapa prática mostrou-se igualmente trabalhosa. A valsa passou por uma nova rodada extensa de revisão nas mãos da maestrina, tendo sido analisada também, em conjunto, durante a “semana de leitura”, uma das atividades da orquestra para o estudo de obras nunca antes tocadas. Alireti ressalta o caráter laboratorial da OSU, que tem o costume de trabalhar com peças inéditas de diferentes compositores contemporâneos e alunos de composição da Unicamp, apontando o que funciona ou não em determinada música para concerto. “Todos trabalham para melhorar o material que recebemos, e os músicos participam como profissionais especializados. Trata-se de um trabalho um pouco diferente daquele de outras orquestras.”
Foram meses de dedicação para conseguir encaixar a obra na programação do I Festival Unicamp de Ópera. Os ensaios fizeram-se marcar por diversas pausas, nas quais os instrumentistas davam sugestões a fim de aprimorar a sonoridade da valsa. Um dos maiores desafios: identificar em quais pontos havia desencontros entre os instrumentos para conseguir ajustá-los. “As trompas estavam com um compasso de pausa em que não soava nada. Tive que cortar esse compasso. Aí tudo se encaixou. Porém, até descobrir que esse era um problema, transcorreram horas de revisão. Atravessamos vários níveis de correção para escutarmos aquilo que o Carlos Gomes realmente pensou”, disse Alireti.
O resultado, para a maestrina, faz parte da história de Campinas. “Essa não é simplesmente uma música. É um bem cultural que pudemos construir.” O fato de se tratar de uma obra ainda inexplorada provoca uma satisfação suplementar, segundo Alireti, porque o momento ficará marcado como a primeira versão da valsa a ser executada, pavimentando o caminho para novas interpretações. A expectativa é de que “Eva” esteja na programação de muitos concertos no futuro, assim como a sonata “O Burrico de Pau”, última peça composta por Carlos Gomes e uma das únicas apenas para conjunto de cordas.
Missão dada, missão cumprida. A apresentação do dia 5 de setembro, portanto, está longe de ser o fim da linha. A regente acredita que esse evento serviu como um primeiro passo para atingir todo o potencial da valsa. Agora, após essa experiência no palco, a obra passará por novas revisões nas mãos de Nogueira, Taffarello e Alireti, visando à publicação da composição no acervo da Coleção Ciddic/CDMC, da Coordenação de Documentação de Música Contemporânea (CDMC), especializado em música erudita contemporânea. Isso permitirá que o material esteja disponível para todos os interessados em tocá-lo – assim como aconteceu com outra obra, denominada “Saudade”, com melodia de Sant’Anna Gomes e arranjo de Carlos Gomes.
Os mistérios da valsa de Carlos Gomes
Os mistérios da valsa de Carlos Gomes
Nogueira e Alireti concordam ser possível identificar traços típicos do autor na melodia dessa peça, assunto que gerou debate também entre os instrumentistas. Os integrantes da OSU, familiarizados com as obras de Carlos Gomes e também com as de seu irmão José Pedro de Sant’Anna Gomes, manifestaram diferentes opiniões. “A recepção de uma peça ocorre de várias maneiras dentro de uma orquestra. Os sopros tocaram uma peça de Sant’Anna Gomes, que editamos na pandemia, e é uma música leve, para bandas de coreto. Eles acharam que ‘Eva’ se parece com as composições dele. Já as cordas não acharam a mesma coisa”, relata a maestrina.
De acordo com Alireti, “Eva” não é uma valsa simplista. “Trata-se de uma peça mais elaborada, mais longa. Não é tão leve: ela quebra, surpreende, muda de tempo… Tem uma melodia forte, que te leva e vai se alargando.” A regente defende que a descoberta de uma música de baile do compositor campineiro pode ajudar a ampliar os conhecimentos sobre o artista. Contudo, se essa valsa foi escrita para alguma finalidade específica e se chegou a ser tocada em Campinas no século 19, esse ainda é um mistério que caberá à musicologia desvendar.
Nogueira, que, durante seu doutorado, estudou a música composta e tocada em Campinas nos últimos anos do Brasil Império, planeja retomar essa época com um novo olhar, agora buscando referências à valsa na imprensa. “Por que se chama ‘Eva’? É importante também saber se a música foi tocada, porque ela é parte do contexto da sociedade.” Atentando para o fato de Carlos Gomes, em 1871, encontrar-se na Itália, a pesquisadora especula que a valsa talvez seja um trabalho de formatura do artista como maestro compositor.
Muitas perguntas em aberto ainda restam para serem respondidas, entre as quais a escolha dos instrumentos para a orquestração, os músicos que podem ter executado a valsa e onde ela teria sido tocada – assim como a identidade dos copistas, uma vez que apenas um assinou uma das partes do manuscrito: José Emydius Ramos Júnior, flautista e amigo da família Gomes.
A orquestração em si se soma ao mistério, pois, apesar de possuir uma formação tradicional para valsa, há elementos faltantes – como o oboé e a harpa, que não constam dos manuscritos ainda que usuais nesse estilo musical. O clarinete, por sua vez, tem papel de destaque e também abre margem para novas pesquisas. Alireti identificou melodias que considerou estranhas, em que apenas o clarinete toca, segurando uma nota, enquanto os demais instrumentos esperam. Isso levou a regente a conjecturar a hipótese de que o autor pode ter dado abertura para algum tipo de improvisação. “Não sabemos a tradição de execução [desse tipo de música]. Uma das questões a se considerar é que talvez Carlos Gomes não escrevesse músicas somente para serem executadas exatamente como estão na partitura, como é o caso das óperas.” A maestrina cogita explorar essa possibilidade em novas execuções da valsa.
Talvez, supõe Alireti, o campineiro tivesse preferência por um ou mais clarinetistas, pois também acrescentou partes solo para esse instrumento em outras composições. É o caso do prelúdio de “Uma noite no Castelo” – que, na versão apresentada em setembro no Teatro Municipal Castro Mendes, teve o solo executado pela violoncelista Lara Ziggiatti Monteiro. Membro da OSU desde 1988, Monteiro considera que a valsa de Carlos Gomes cativa o ouvinte, transportando-o para um salão de baile europeu do século 19. “Nessa música, especificamente, parece que ele usou o clarinete no lugar de uma cantora – a Eva talvez?”, brinca.
O nome do compositor campineiro não representa nenhuma novidade para Monteiro, atual administradora do Conservatório Carlos Gomes de Campinas, fundado por sua família em 1927. “Era um sonho de Carlos Gomes fazer um conservatório de música em Campinas.” Tendo crescido em um ambiente artístico e musical, a violoncelista sempre soube que seguiria essa carreira, tendo se especializado no instrumento na Unicamp. Monteiro considera Carlos Gomes um símbolo de Campinas e fala da importância de preservar sua memória: “O compositor não quer glórias, ele quer que se toque a obra dele. Essa é a melhor forma de eternizá-lo”. Acostumada a tocar “O Burrico de Pau” desde os 13 anos, Monteiro comemora poder tocar outra obra instrumental do campineiro – “Talvez até se encontrem outras mais”, cogita.
I FESTIVAL UNICAMP DE ÓPERA
I FESTIVAL UNICAMP DE ÓPERA
O evento, organizado pelo Ciddic em parceria com o Grupo Gestor de Benefícios Sociais (GGBS) da Universidade, buscou aproximar o universo da ópera de servidores e da comunidade em geral.
O evento, organizado pelo Ciddic em parceria com o Grupo Gestor de Benefícios Sociais (GGBS) da Universidade, buscou aproximar o universo da ópera de servidores e da comunidade em geral. O festival aconteceu de 1º de agosto a 13 de setembro.
O festival aconteceu de 1º de agosto a 13 de setembro.