Um drible no institucionalizado
Um drible no institucionalizado
Estudo defende “pedagogia da rua” como caminho para devolver o futebol brasileiro às suas origens
Desde quando começou a ser praticado no país, a partir do final do século 19, o futebol brasileiro trouxe algo de impertinente. Em 1919, por exemplo, a Revista Sports publicava um artigo no qual se referia a um “estilo brasileiro” – que seria uma forma descompromissada, e até alegre, de jogar. Segundo o artigo, havia uma surpreendente destreza e um absoluto desprezo pelas convenções. O jogador brasileiro contrariaria tudo o que vinha sendo pregado pelo Reino Unido – país no qual o futebol da era moderna nasceu. O brasileiro atuaria de um jeito improvisado e conseguiria produzir movimentos inesperados em velocidades que “desorientam os adversários”. Especialistas da época atribuíram essa forma atrevida de atuar à origem do aprendizado. Para eles, o futebolista brasileiro era assim porque havia aprendido a jogar nas ruas.
Hoje, mais de cem anos depois da publicação do artigo, a tarefa dos especialistas não se resume mais a explicar a origem do tal “estilo do Brasil”, mas passa por descobrir caminhos que levem o brasileiro a reaprender a jogar futebol como se fazia na rua – rua aqui entendida como qualquer ambiente informal, como a própria rua, os campinhos de várzea, o quintal, o recreio de escola – enfim, espaços nos quais as crianças brincam e jogam livremente. E essa é a busca do professor Alcides Scaglia, livre-docente da Unicamp em pedagogia do esporte e pedagogia do jogo.
Desde 1992, Scaglia defende a hipótese segundo a qual uma criança aprende mais sobre a prática do futebol na rua do que em qualquer outro lugar. Neste ano, sua convicção ganhou um reforço ao orientar a dissertação de mestrado do estudante Gabriel Orenga Sandoval, intitulada “O jogador em situação: uma pesquisa fenomenológica com cinco jogadores que disputaram a Copa do Mundo de 1982” e apresentada à Faculdade de Educação Física (FEF).
Inserida no Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte – que estuda a chamada “pedagogia da rua” –, a pesquisa de Sandoval baseia-se no relato de cinco atletas que integraram a seleção de 1982, considerada uma das últimas representantes do “futebol-arte” do Brasil. O time daquela Copa do Mundo, que reuniu craques como Zico, Sócrates e Falcão, ainda é lembrado por torcedores como um símbolo de excelência, apesar de não ter sido campeão.
Sandoval diz que, por exigência do comitê de ética da banca examinadora do trabalho, os nomes dos atletas ouvidos foram mantidos em sigilo. Por isso, aparecem na dissertação com nomes fictícios. Todos eles, no entanto, assinaram um documento no qual afirmam ter prestado o depoimento ao pesquisador e reconhecem a veracidade desses depoimentos. Foram ouvidos dois zagueiros – rebatizados de Julio e Orestes –, dois meias-atacantes – chamados no trabalho de Rui e Zeferino – e um goleiro – identificado como César. Os relatos dos ex-jogadores guardam um traço comum. Todos os atletas ouvidos pelo pesquisador deixaram pistas de que o aprendizado na rua, com irmãos e amigos mais velhos, produziu um efeito determinante e permanente.
“Pelo relato que deram, percebemos que a forma de jogarem estava mais associada ao aprendizado na rua do que nos clubes”, conta Sandoval. Antes deles, relatos semelhantes – de outras pesquisas – já haviam sido colhidos pelo próprio Scaglia. Em 2007, por exemplo, o livre-docente falou sobre esse tema com Pelé, reconhecidamente o maior jogador de futebol de todos os tempos e eleito Atleta do Século XX. Ao longo dos anos, os pesquisadores concluíram que o futebol na rua possui uma dinâmica própria, potencializando a criatividade, a inventividade e o improviso.
Segundo os estudiosos, isso se dá por um motivo simples: a rua representa um espaço de liberdade. Em uma “pelada” de rua, lembram, não há juiz. O elemento consensual para arbitrar conflitos é o próprio conjunto de crianças envolvido no jogo. No futebol de rua tampouco há treinador e, por conta disso, o esporte flui levado pelo acaso, curtido no improviso, na imprevisibilidade. No futebol de rua, as forças podem se apresentar desiguais. Não há faixa etária definida. Meninos de 10 anos encaram marcadores de 17, sem que se aleguem assimetrias insanáveis. Na rua, joga quem aparecer – grande ou pequeno, forte ou mirrado, habilidoso ou inapto. Por isso, trata-se de um espaço democrático.
Deve-se notar ainda que o campo de jogo, muitas vezes de terra batida ou de grama rala, apresenta todo tipo de irregularidade: planos inclinados, buracos, saliências. A bola, por outro lado, não segue nenhum padrão de qualidade. Importante: na rua os adversários são pessoas. Não se driblam cones. Não há repetições entediantes e muitas vezes inúteis. E joga-se nessas condições assim tão adversas, diz Scaglia, por um motivo também muito simples: o desejo genuíno de jogar.
“No momento em que você começa a transformar a sua relação com a bola em algo que é expressão real do seu desejo, aquela atividade ganha uma dimensão completamente diferente”, avalia o professor. Segundo ele, as pesquisas têm mostrado que a criança aprende melhor na rua.
“E aprende melhor porque aprende por meio de algo que tem um grande significado para ela, um fenômeno que chamamos de aprendizagem significativa. Esse tipo de aprendizagem envolve, fortemente, a própria vontade, o próprio desejo. E essa vontade e esse desejo aparecem no jogo, na sua atitude diante do jogo. Essa atitude não é determinada por alguém de fora, mas mobilizada internamente por você”, explica Scaglia.
Desafios
O desafio que se impõe a partir dessa constatação, segundo o professor, passa a ser outro. Trata-se de transformar essas conclusões em um processo didático, metodológico, a ser aplicado nas escolas. O trabalhado de Scaglia diz respeito a isso. Para ele, as crianças de hoje são “institucionalizadas” – têm pouco tempo para brincar em ambientes informais. “Nós não queremos o brincar dirigido. Isso é um problema. Queremos valorizar o brincar informal, esse brincar mobilizado pelo meu desejo de brincar e não pelo desejo do treinador de fazer com que eu brinque”, diz. “Esse é o pulo do gato para o entendimento da pedagogia da rua.”
Scaglia afirma que o professor não deve querer transformar sua aula em pedagogia de rua – mesmo porque essa aula se dá em um ambiente de fato formal, que é a escola. “Mas ele pode se inspirar na pedagogia da rua, para que sua aula se dê com mais liberdade, com mais possibilidades de criação”, diz. Segundo o pesquisador, a aula e a pedagogia da rua mostram-se complementares.
A discussão em torno do tema levou os dois pesquisadores a avaliarem o papel do treinador no futebol profissional. Os treinadores, afirmam, ganharam protagonismo na mesma proporção em que o aprender genuíno da rua foi sendo abafado pelas escolinhas de futebol. “Hoje nós vemos uma maior centralização no treinador e não no jogador”, critica Scaglia. “Em 1982 a gente conhecia o Telê [técnico Telê Santana], mas os jogadores eram mais importantes”, argumenta. “A partir da década de 1990, e muito mais a partir do século 21, o treinador se transforma em estrela.”
“Hoje a gente conhece mais o treinador do que os jogadores. E esse treinador domina o jogo e impõe suas ideias – em um processo que resulta em um jogo racionalista e não em um jogo estético, não em um jogo pautado pela percepção do jogador. O jogador de hoje joga o jogo do treinador”, afirma o professor.
Por isso, dizem os pesquisadores, é preciso devolver o jogo ao jogador. “Devolver o jogo ao jogador pode significar uma saída para o futebol brasileiro. Na verdade, não apenas para o futebol, mas para o esporte brasileiro”, afirma Scaglia. “E, quem sabe, para a vida. É a ideia que impulsiona alguém a ser o condutor de sua própria vida.”