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A como resistência

Linguista reúne relatos de dez muçulmanas para fundamentar pesquisa

“Eu me sentia mal em público, não queria sair […] Passei por um período de pânico porque não aguentava os olhares me julgando.” Com esse relato, a jovem Khadija (nome fictício) descreveu a experiência de sair de casa usando o véu islâmico. Filha de pai libanês e mãe brasileira convertida, a muçulmana de 25 anos começou a usar o véu por escolha própria, mas decidiu retirá-lo dez anos mais tarde devido ao preconceito que sofria. Sua própria filha foi o principal motivador para a escolha. Khadija não queria que a menina passasse pelas mesmas situações ao externar a sua fé. “A quem estou enganando? Isso é entre mim e Deus”, afirmou.

Assim como no caso de Khadija, incidentes semelhantes também marcaram as narrativas de Aisha, Zaynab, Salma, Hagar, Umm Salma, Alia, Mariam, Fátima e Hafsa. Essas dez muçulmanas vivem em Foz do Iguaçu, cidade paranaense com uma forte comunidade árabe, e contaram suas histórias de vida para a linguista Fernanda Pereira. Os relatos serviram de base para o doutorado que Pereira defendeu no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp procurando, no discurso dessas mulheres, marcas de subjetivação que permitissem entender como elas se colocam em relação às práticas religiosas e ao “outro” não muçulmano.

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Vista da mesquita Omar Ibn Al-Khattab, na cidade paranaense de Foz do Iguaçu, que conta com uma numerosa colônia árabe

Em sua análise, a autora concluiu que existe uma relação espaço-tempo, construída pelos chamados aparelhos ideológicos do Estado – como a escola, os meios de comunicação e a religião – que influenciam a percepção desses sujeitos sobre si mesmos e produzem exclusão e islamofobia. “A gente tem a ilusão de que o Estado laico e secular respeita todas as religiões, mas não existe essa neutralidade. Os parlamentos, o sistema jurídico, são atravessados pelo sistema religioso. No Ocidente, eles têm como padrão o discurso judaico-cristão, então o Islã não se encaixa nisso. Ele é sempre visto como o inimigo, o atrasado, o negativo”, comenta a pesquisadora.

Essa relação espaço-tempo pode ser percebida no cotidiano da comunidade islâmica. Tal qual acontece com as igrejas em ambientes dominados pelo cristianismo, o espaço muçulmano é permeado pela presença de mesquitas, ao mesmo tempo em que o dia a dia pauta-se pelos chamados a indicar a hora das orações. No entanto, diferentemente das religiões ocidentais, a sociedade muçulmana tem uma cultura predominantemente homossocial, na qual homens se relacionam com homens e mulheres, com mulheres. Nessa dinâmica, os ambientes de convivência também se separam, algo que, para essas mulheres, é visto como sinônimo de respeito, segurança e liberdade.

“Em países muçulmanos, existem lugares em que você não pode entrar por ser mulher, mas existem outros em que você não entra pela força simbólica, porque, apesar de ser permitida a entrada de mulheres, só há homens lá dentro”, explica a linguista. “Contudo, conversando com mulheres que são muçulmanas e pesquisadoras, descobri que esses espaços femininos são muito agitados, alegres, com festa e música. Para elas, estar em locais separados representa conforto, acolhimento e respeito. Essas são diferenças que fazem parte da constituição desses sujeitos nesse espaço e nesse tempo”, comenta.

Um importante marcador detectado ao longo das entrevistas foi a forma como as entrevistadas se identificam no discurso – nós, a gente, eles, os brasileiros – a depender do local sobre o qual estão falando. As mulheres árabe-muçulmanas de Foz do Iguaçu vivem um tipo de entremeio, pois não se identificam inteiramente como brasileiras e nem como libanesas, palestinas ou marroquinas. Isso porque, quando estão falando do Brasil, elas se consideram árabes-muçulmanas, mas, ao falarem de países muçulmanos, elas referem-se a si mesmas como brasileiras.

A linguista Fernanda Pereira, autora da tese: diferentes visões de mundo

A linguista Fernanda Pereira, autora da tese: diferentes visões de mundo
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Vista da mesquita Omar Ibn Al-Khattab, na cidade paranaense de Foz do Iguaçu, que conta com uma numerosa colônia árabe

Parte disso está relacionada com os atentados de 11 de setembro de 2001, que significaram um ponto de inflexão a partir do qual a comunidade árabe da cidade passou a ser vista de forma diferente. Embora esse tipo de discriminação já existisse, os atentados intensificaram o discurso de ódio contra os muçulmanos, incluindo a ideia de que eles não seriam brasileiros. Nesse contexto, usar o véu – um marcador indiscutível da fé islâmica – chama atenção para essas mulheres e alimenta ataques contra elas. “Apesar de o Brasil ser um país acolhedor em relação a estrangeiros, isso não é verdade no caso dos muçulmanos, para os quais a cidade é um espaço hostil. Isso está no dia a dia delas. Quando há um acidente de trânsito, a pessoa vê o véu e manda voltarem para seu país. Isso está na escola dos filhos e está na mídia”, ressalta.

A linguista Fernanda Pereira, autora da tese: diferentes visões de mundo

A linguista Fernanda Pereira, autora da tese: diferentes visões de mundo

Escolha íntima

Para muitos ocidentais, uma mulher utilizando o véu islâmico desperta a imagem de uma pessoa oprimida pela religião e a família. No entanto o Alcorão nunca exigiu o uso do véu. Essa, na realidade, é uma conduta de devoção e modéstia recomendada pelo texto sagrado, mas que só será aceita por Alá se vier de um desejo voluntário da fiel. Trata-se, portanto, de uma escolha íntima da mulher quanto à religiosidade dela, uma escolha que pode até causar inquietações no Ocidente, mas que não é vista como uma verdadeira questão pelos árabes.

Casos, lembra Pereira, como os do Irã e da Arábia Saudita, que obrigam as mulheres a usarem o véu, são exemplos de como os Estados, em muitos lugares do mundo e em vários momentos da história, empregaram as ferramentas à mão para controlar os corpos femininos. Entretanto, alega a pesquisadora, o mesmo pode ser dito de nações como a França, que, com a justificativa da laicidade, controla esses corpos quando proíbe essas mulheres de usarem o véu. Por esse motivo, pensadoras muçulmanas como Asma Barlas, Saba Mahmood e Fatima Mernissi criticam o feminismo ocidental e lutam por uma sociedade mais igualitária a partir do que diz o próprio texto corânico.

“Essas filósofas argumentam que o feminismo ocidental está nesse lugar de injunção de liberdade, dominância e subversão em que, se há uma força querendo dominar você, você vai querer subverter isso e fazer o contrário. Elas, porém, acreditam que há outras formas de viver para além dessa lógica binária. Então existe resistência na devoção. Existe resistência até na submissão. A palavra Islã significa ser submisso a Deus”, observa a pesquisadora.

Essa percepção ecoa nas falas das próprias entrevistadas, para quem não há machismo no Islã. Muitas escolheram não usar o véu devido à hostilidade encontrada no Brasil, mas um pensamento comum, mesmo entre as jovens menos tradicionais, é o de que um dia ainda voltarão a colocá-lo. É o caso de Fátima, uma arquiteta de 23 anos que nasceu em Foz do Iguaçu. Para Fátima, usar o véu no Brasil representa um ato de resistência. “O problema das pessoas é que elas confundem cultura com religião […] A mulher na religião é tratada de um jeito completamente diferente do que na sociedade machista. A mulher na religião é um diamante lapidado. A sociedade é que tenta justificar com a religião esse machismo”, explica a jovem.

Para Pereira, histórias como as de Fátima e Khadija demonstram ser preciso abrir os olhos para diferentes perspectivas de mundo, o que ela tentou fazer com sua tese. Em seu mestrado, a especialista já havia analisado imagens de protestos do grupo feminista radical Femen, que tem uma postura declaradamente antirreligião e islamofóbica. Foi lendo textos para embasar essas análises que a pesquisadora entrou, pela primeira vez, em contato com o debate sobre o uso do véu no Islã, o que a fez mudar de postura e escolher esse novo assunto como tema de sua tese. “Hoje em dia a gente está nesse movimento das redes sociais, responsáveis por criar bolhas e fazer a gente só enxergar aquilo com o que concorda e que acha bonito. Então o exercício da minha tese, para mim, foi sair dessa bolha”, finaliza.

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