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Ansiedade climática, sintoma de um mundo em colapso

Para Julian Manley, solução para crise ambiental é social e passa pela transformação coletiva

Moradora caminha por rua alagada na Vila da Paz, bairro de Porto Alegre, depois das chuvas que atingiram a capital gaúcha e a maior parte do Estado em junho deste ano
Moradora caminha por rua alagada na Vila da Paz, bairro de Porto Alegre, depois das chuvas que atingiram a capital gaúcha e a maior parte do Estado em junho deste ano

As frequentes queimadas na Amazônia e no Pantanal formaram, no último mês, um corredor de fumaça que chegou às Região Sudeste e Região Sul do país, apenas três meses após o fim da cheia responsável por deixar mais de 600 mil desabrigados no Rio Grande do Sul. Os fenômenos são sintomáticos de uma crise climática de velocidade acelerada, em contraponto com uma transição energética mundial de ritmo lento. Para Julian Manley, professor de inovação social da Universidade de Central Lancashire (Reino Unido), ações locais e pontuais não bastarão para solucionar o problema. Pesquisador dos aspectos humanos da crise ambiental, o intelectual inglês afirma que a solução para a emergência ambiental não virá de inovações tecnológicas, mas que está condicionada à transformação completa da comunidade global.

Manley atua em diversas frentes e, recentemente, esteve na Unicamp como pesquisador visitante, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Aqui, participou do desenvolvimento do projeto Abordagens Psicossociais e Históricas de Sociedades em Situação de Crise, uma iniciativa coordenada pela professora Neri de Barros, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). O esforço envolveu a cooperação de diversas unidades da instituição e também da Universidade de São Paulo (USP).

Além de docente, Manley é pesquisador visitante na Universidade de West of England (Reino Unido) e diretor da Climate Psychology Alliance, um centro voltado para o tratamento de questões emocionais e psicológicas relacionadas com a crise climática. Na década passada, liderou a implementação do Preston Model (Modelo Preston), projeto de geração de riqueza local baseado no desenvolvimento cooperativo, criado para reconstruir economicamente a cidade inglesa de Preston (veja texto abaixo) após a crise econômica de 2008.

Sua pesquisa dedica-se à investigação sobre a maneira como as pessoas enxergam e sentem um mundo cada vez mais quente e imprevisível, atentando para as suas respostas psicológicas e emocionais. A fim de analisar as relações que os indivíduos estabelecem entre si e a forma como se relacionam na sua comunidade, na sociedade e no mundo, Manley usa conceitos de psicologia social, psicanálise e psicologia climática (vertente que trata das ansiedades causadas pela crise ambiental). “Trata-se de uma compreensão holística das nossas reações às alterações climáticas”, define.

Uma questão central norteia sua pesquisa: “Se a ciência diz, e todos os cientistas concordam com isto, que as mudanças ambientais são resultado das emissões de carbono, por que as pessoas não param de usar carro a gasolina, comer carne e viajar de avião?”. A resposta parece estar na complexidade do processo de tomada de decisão do ser humano, indica Manley, destacando a importância das emoções nas escolhas a serem feitas. “Nem sempre há uma correspondência entre o raciocínio intelectual e o sentimento. Se conseguirmos entender que existe essa diferença, talvez possamos trabalhar para aproximar a emoção da razão.”

Entre os mais frequentes sentimentos relacionados à emergência ambiental, diz o professor inglês, estão a ansiedade, o medo, a tristeza e a culpa. Manley conta que, entre os adultos, costuma manifestar-se a sensação de vergonha, por perceberem estar deixando um mundo condenado para seus filhos e netos.

O problema, pondera, surge quando a vergonha, a culpa ou a sensação de impotência levam a pessoa a ignorar ou rejeitar a necessidade de ação. A lentidão das instâncias de poder no tratamento da transição energética (leia texto sobre o tema na página 8), além da intensificação dos eventos climáticos extremos, servem para cristalizar uma postura individualista, impulsionada pelo estilo de vida ocidental. “Muitos dizem saber o que está acontecendo, mas ressaltam não haver nada que possam fazer e, portanto, decidem aproveitar a vida. Isso está eliminando o senso de responsabilidade e o de lugar no mundo”, relata.

O professor Julian Manely: “Nem sempre há uma correspondência entre o raciocínio intelectual e o sentimento”
O professor Julian Manley: “Nem sempre há uma correspondência entre o raciocínio intelectual e o sentimento”

Saúde mental

Embora os desdobramentos do aquecimento global afetem crianças, jovens, adultos e idosos de maneiras distintas, sua ocorrência se tornou um fator de estresse geral, conforme observado pelo pesquisador em seu trabalho. “Uma parcela da população tem apresentado problemas de saúde mental devido ao aumento da ansiedade climática.”

Uma condição que atinge indivíduos de todas as faixas etárias, relata Manley, alertando que olhar para apenas um segmento da população implica desconsiderar o problema em sua totalidade. Afinal, se os picos de baixas e altas temperaturas podem se apresentar como ameaça à vida de idosos, entre crianças, adolescentes e universitários, uma preocupação comum diz respeito à decisão de ter filhos e constituir uma família.

Ao lado de seus colegas da Climate Psychology Alliance, o doutor em psicologia social atua junto a pacientes com ansiedade ou sofrimento climático que precisam enfrentar o medo, o luto e suas perdas, buscando não se deixar dominar pelo estresse, ajudando-os a manter uma visão positiva em relação à vida, apesar do cenário desfavorável. “No entanto lidar com isso não resolverá a emergência climática. Portanto, temos de compreender por que as pessoas que tomam decisões em uma sociedade, sobretudo os políticos, não são capazes de tomar medidas decisivas.”

Manley reconhece a pressão exercida sobre os governos por diversos setores econômicos e financeiros a fim de evitar o que chama de verdade espinhosa, isto é, o fato de que bastaria impedir o uso de petróleo para resolver o problema ambiental definitivamente. “Mas as pessoas que enriquecem com essa situação acreditam poder continuar com sua produção – e, portanto, que a temperatura pode seguir subindo – pois a tecnologia permitirá, um dia, resfriar a Terra ou eliminar o carbono. Na perspectiva psicanalítica, isso é uma fantasia, produto da frustração, ansiedade e raiva geradas pelo fato de seu modo de vida estar ameaçado. Afinal, não há nenhuma inovação tecnológica e talvez não haja tempo para que venha a existir [algo do tipo]”, argumenta.

Despolarizar e transformar

Citando as inundações recentes em seu país e as chuvas que assolaram boa parte do Rio Grande do Sul no último semestre, Manley aponta a necessidade de adotar uma nova perspectiva ao abordar a emergência climática. Um olhar que considere todos os aspectos envolvidos, de maneira interligada. “Construir obras de engenharia para conter cheias me parece uma solução provisória que, muitas vezes, acaba por desencadear um problema em outro lugar. Devemos aprender a conviver com o ciclo dos rios e compreender que, embora inundações excessivas sejam graves, sempre haverá fases de cheia.”

Interessado em processos de pensamento, o pesquisador vê, nos esforços para modificar a forma como as pessoas sentem e pensam, o caminho para uma visão de totalidade em relação ao universo. “Em oposição ao mundo do pequeno eu, individual.”

Parte desse movimento, frisa, passa pela necessidade de superar uma tendência da sociedade deste século: a polarização ideológica caracterizada pela divisão entre pessoas que se definem como conservadoras (favoráveis a uma economia baseada em combustíveis fósseis) e as que se veem como progressistas (contrárias a essa economia). “Do ponto de vista da psicologia social, essa divisão corresponde a uma condição esquizoparanoide. Os bons contra os maus. Essa polarização impede a busca por um meio-termo.”

Se o momento pede cooperação, os países precisam reconhecer não estarem mais em posição de competir entre si, enfatiza o pesquisador, e evitar a tendência de buscar supostos responsáveis. Afinal, em certa medida, todos estão envolvidos.

“Há muitas críticas, de onde eu venho, sobre como a Amazônia está sendo constantemente destruída. Então, quem é o culpado? Quem derruba as árvores? Será que o governo brasileiro não está suficientemente preocupado com controlar a situação? Ou será que o Norte Global não apoia financeira e economicamente a manutenção da floresta – e ainda compra suas madeiras e outros artigos?”

A tendência de cair em uma postura hipócrita, na opinião de Manley, merece atenção. Crítico do pensamento de Jair Bolsonaro, o professor inglês argumenta que o ex-presidente reproduziu um certo tipo de pensamento ao defender o direito do Brasil de explorar seus recursos naturais e lembra que a Inglaterra usou seu carvão quando enriqueceu com a Revolução Industrial – evento decisivo para as alterações climáticas.

“Não apoio as ideias de Bolsonaro nem o desmatamento na Amazônia, mas é preciso lembrar que muitas pessoas o apoiam. É muito importante tentar entender por que há pessoas que pensam como pensam. Agora a hora é de encontrar um terreno comum. Espero que haja uma possibilidade de transformação.”

Mercado cujo prédio foi restaurado na região central de Preston: prioridade para investimentos internos

PROJETO SUSTENTÁVEL RECUPERA CIDADE EM RUÍNAS

O desafio de recuperar uma cidade economicamente arrasada em 2008, devido à fuga de investimentos externos, determinou o lançamento, em 2011, do Modelo Preston, um programa de desenvolvimento financeiro e social baseado na geração de riqueza internamente, segundo o qual setores enraizados na cidade e essenciais para o seu funcionamento – como hospitais e escolas – servem de âncora para fazer a economia girar, fomentando cooperativas e gerando empregos.

Manley idealizou e coordenou a instauração do projeto, na pequena cidade britânica de Preston, parcialmente inspirado no ecossistema Mondragon, uma federação de cooperativas criada na região do País Basco (Espanha). Ao longo de 13 anos, o modelo britânico conseguiu reverter a falência municipal.

Segundo o professor de inovação social, a ideia partiu da hipótese de que, para recuperar Preston, priorizar investimentos internos em vez de externos permitiria examinar os recursos econômicos existentes dentro da cidade, além de encorajar a geração e a fixação de riqueza localmente. Mostrou-se fundamental apostar nas chamadas instituições-âncoras, isto é, aquelas que não deixaram a cidade independentemente de crises – ao contrário do ocorrido com negócios vindos do exterior, como redes de varejo e corporações internacionais, que se movimentam de acordo com as oportunidades do momento. “Encorajamos essas âncoras, como a universidade, as instâncias governamentais, a gastar mais localmente, em vez, por exemplo, de comprar materiais de fora. E, dessa forma, fazer o dinheiro girar.”

O estímulo à fundação de empresas cooperativas compõe outro pilar do Modelo Preston, afinal, argumenta o intelectual inglês, trata-se de uma alternativa que permite a transmissão da renda para o trabalhador.

“Em uma empresa capitalista, os lucros vão para os acionistas, que não necessariamente vivem na cidade. Portanto, é muito frequente que o dinheiro não fique na comunidade.” Manley pontua que parte fundamental desse movimento implica encorajar o sentido de cooperação entre os cidadãos da comunidade, um trabalho que envolve incentivar seu potencial e sua autonomia. “Trata-se de fomentar a sensação de que eles podem se orgulhar do local onde moram e de que há oportunidades de desenvolvimento. Portanto, não precisam ir para outro lugar. Podem materializar suas aspirações onde estão.”

A fim de desenvolver o pensamento cooperativo, é preciso investir na educação da comunidade, pois quem vem do mercado costuma ser estimulado a competir e não a colaborar. “É importante ter um espaço para pensar, aprender e educar sobre como um sistema diferente pode funcionar.”

Essa transformação do pensamento e da ação passa, ainda, pelo exercício da democracia participativa. “Assim é mais provável que você entenda o que está afetando as pessoas – e porquê. Além de pensar no que pode ser feito. Quando temos uma democracia que não inclui a participação do povo, aumenta a probabilidade de grupos financeiramente poderosos influenciarem os governos.”

Encorajar a modificação dos sistemas social e político, para incentivar a participação cidadã, como a realização de assembleias em que as pessoas possam não somente discutir de forma aberta e honesta, mas com poderes de decisão, mostra-se essencial para a transformação da comunidade global. “Aí está o diferencial do sistema. Uma forma nova de compreender os sistemas sociais e a nossa relação com o meio ambiente. É por isso que, no Modelo Preston, nos baseamos na ideia de trabalhar localmente e não nas velhas ideias de trazer dinheiro de fora. Compreender os ativos e recursos que pertencem à comunidade e tentar proporcionar uma oportunidade para que as pessoas trabalhem entre si e cooperarem entre si.”

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