‘Curadores’ do mar profundo
‘Curadores’ do mar profundo
Risco de extinção faz rede mundial de taxonomistas acelerar o processo de descrição de novas espécies marinhas
Risco de extinção faz rede mundial de taxonomistas acelerar o processo de descrição de novas espécies marinhas
Sereias, serpentes, polvos gigantes, civilizações submersas… As profundezas dos oceanos sempre ofereceram ambientes férteis para a criação de lendas e seres mitológicos que ainda hoje povoam o imaginário das pessoas. Não à toa. A humanidade desconhece mais de 90% da biodiversidade presente no fundo do mar, e, para os cientistas, o esforço de identificar e classificar a fauna marinha torna-se uma cada vez mais urgente corrida contra o relógio, especialmente diante da crescente pressão do setor privado e de agências governamentais para explorar os minérios presentes nessas regiões.
O tamanho desse desafio é explicado pelo zoólogo e professor visitante do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp Fabrizio Marcondes Machado, integrante do consórcio internacional Ocean Species Discoveries (OSD), criado com o objetivo de acelerar o processo de descrição de novas espécies marinhas. A reunião de cientistas de várias partes do mundo aconteceu por iniciativa do projeto Senckenberg Ocean Species Alliance (Sosa), uma entidade voltada a descobrir os, proteger os e chamar atenção para a importância dos invertebrados marinhos antes que desapareçam.
“A ciência mudou demais. Tornou-se muito colaborativa. Entendemos hoje que não conseguimos alcançar resultados de alta qualidade sozinhos. Os cientistas se uniram com o objetivo de conseguir mais recursos para realizar expedições, coletar espécies do mar profundo e descrevê-las de forma mais ágil”, explica Machado, um dos responsáveis por trabalhar com essa nova abordagem científica.
A experiência do consórcio já rendeu excelentes frutos. “É possível um consórcio acelerar a descrição de novas espécies de mar profundo ou de espécies marinhas em geral? Nós provamos que sim. O tempo que antes era de em média 14 anos passou para sete anos entre a coleta e a descrição formal da espécie, um resultado acima de qualquer expectativa, inclusive para os pesquisadores que participaram do projeto.”
Um exemplo desse sucesso: o artigo publicado este mês na revista científica Biodiversity Data Journal, resultado do trabalho de Machado e outros 24 cientistas de diferentes nacionalidades. Eles identificaram 13 táxons de invertebrados marinhos, incluindo um novo gênero, e 11 espécies, além de terem realizado uma redescrição. E o trabalho continua, pois um novo artigo em fase de elaboração deve relatar os mais recentes achados dos pesquisadores.
Machado figura, ao lado da pesquisadora Julia D. Sigwart, entre os responsáveis pela descrição da espécie Lyonsiella illaesa, um micromolusco carnívoro de cerca de 2,7 milímetros encontrado na Fossa das Aleutas, no Alasca, região localizada no Anel de Fogo do Oceano Pacífico a uma profundidade de 7,8 quilômetros. Segundo o pesquisador, a nova espécie só pôde ser descrita por conta do acesso do grupo a um microtomógrafo de raios-X, um equipamento de ponta capaz de realizar uma taxonomia não invasiva. Essa técnica revolucionária possibilita ao pesquisador descrever a espécie sem destruí-la.
“O equipamento consegue fazer vários microcortes no organismo e depois reconstruir tudo em três dimensões”, explica Machado. “Trata-se de animais muito raros, retirados do mar profundo, e o microtomógrafo faz com que não haja necessidade de dissecar os espécimes. A técnica permite ainda descrever em detalhes a morfologia deles realizando apenas dissecções virtuais e, o melhor, possibilita que todos os arquivos tomográficos fiquem disponíveis em repositório digital online e gratuito.”
Essa tecnologia não só preserva os espécimes como também democratiza o acesso ao conhecimento. “Qualquer cientista ou cidadão comum, em qualquer canto do mundo, pode acessar esses dados e fazer seus próprios estudos por meio desse repositório”, destaca o pesquisador.
Conhecer para proteger
Empresas privadas e governos argumentam que o avanço da prospecção mineralógica no fundo do mar é essencial para suprir a demanda por metais cada vez mais escassos na superfície. Essa busca frenética, no entanto, pode ter consequências devastadoras para a vida marinha que ainda nem conhecemos.
“Por que precisamos acelerar o processo? Porque grandes empresas já estão explorando o mar profundo sem nenhum tipo de fiscalização. Essas companhias estão minerando o fundo oceânico em busca de nódulos polimetálicos que contêm metais já escassos aqui na superfície. Então, a gente precisa acelerar para descobrir, descrever, dar nome e alertar os tomadores de decisão: ‘Olha, é o seguinte. Tem um monte de espécies novas lá embaixo. Vocês não podem destruir tudo’”, enfatiza Machado.
O pesquisador também destaca o potencial medicinal do oceano, ainda por ser descoberto. “No mar pode estar a cura para várias doenças, e, sem a possibilidade de estudá-los [os animais marinhos], não haverá essas descobertas. O trabalho dos cientistas é essencial para convencer os tomadores de decisão a mudarem a forma de explorar o fundo do mar.”
A urgência faz-se clara nas palavras do estudioso: “Estamos passando por um momento de extinção muito rápida na natureza. Isso já é conhecido não só como extinção dos grandes mamíferos, mas também dos pequenininhos. Cabe a nós cuidarmos, sermos os curadores do mar profundo. Essa é uma responsabilidade nossa como cientistas”.
Para Machado, a preservação dos oceanos está intrinsecamente ligada à sobrevivência da vida na Terra. “Não haverá vida se não tiver floresta em pé, se não tiver mar profundo preservado. Os oceanos produzem de 50% a 85% do oxigênio respirável do nosso planeta. Você imagina simplesmente extinguir os animais que produzem e que regulam essa imensa produção? Isso é muito complexo. Os oceanos são a base da nossa cadeia alimentar.”