Reconstituição de projetos ajuda a preservar memória arquitetônica
Trabalhos desenvolvidos na Fecfau podem ser visitados em tour virtual de plataforma multimídia
Sempre que passava em frente à Fazenda Veneza, no município paulista de Valinhos, a arquiteta Ana Regina Cuperschmid se encantava com a vista da capela à distância. Sua cobertura curva acompanhando a inclinação da margem do lago e a cruz afixada na água permitiam que a luz natural iluminasse o interior da construção, integrando o local com a natureza e a paisagem ao redor. Foi uma surpresa para ela descobrir que aquele imóvel – escondido entre as cercas e a vegetação de uma propriedade privada – havia sido escolhido como a segunda capela mais bonita do mundo pelo Prêmio Internacional de Arquitetura Sacra da Fundação Frate Sole, um evento patrocinado pelo próprio Vaticano.
Desde 2021, no entanto, o público pode conhecer a capela por meio de um tour virtual disponível em uma plataforma multimídia na internet (https://capelaveneza.anacuper.com). O feito é resultado do mestrado de Maíra Sebastião Dias, orientanda de Cuperschmid no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Tecnologia e Cidade da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (Fecfau) da Unicamp, e faz parte de uma série de projetos de reconstituição digital de patrimônio edificado que a docente lidera. Além de auxiliar na preservação da memória arquitetônica do país, a iniciativa permite reunir em um só lugar todas as informações sobre as obras, facilitando o acesso a esses dados.
Para realizar as reconstituições, a professora utiliza uma metodologia chamada building information modeling (BIM), ou modelagem da informação da construção. Trata-se de um conjunto de tecnologias e processos voltados à criação colaborativa de modelos digitais de uma construção, um recurso cada vez mais utilizado em empreendimentos imobiliários por permitir a realização de diversas análises ainda na fase de planejamento da obra. Quando se acrescenta a letra H ao início da sigla, o termo passa a se referir a edifícios de interesse histórico ou de importância cultural. “Trabalhar com HBIM envolve outras questões porque o edifício não é um projeto novo. Como criar um modelo fiel de um edifício já existente se muitas vezes nós não temos informações suficientes sobre ele?”, pergunta a docente.
No caso da recriação da Capela da Fazenda Veneza, projetada em 2002 pelo arquiteto Decio Tozzi, foi possível utilizar documentos como a planta do projeto original, as medições feitas no local da edificação e fotogrametrias – técnica que mede as dimensões e levanta informações de objetos e ambientes utilizando fotografias para gerar modelos tridimensionais precisos –, além de escaneamento a laser e entrevistas com o próprio arquiteto, realizadas em 2019. Na ocasião, Tozzi já havia sido diagnosticado com o mal de Alzheimer, mas ainda conseguiu acompanhar as pesquisadoras até a fazenda e contar a história de sua família, sua formação e sua trajetória, discorrendo também sobre o processo de criação da capela. O relato, em realidade virtual e em realidade aumentada, está disponível igualmente no site desenvolvido para a divulgação do projeto.
O processo de montar esse quebra-cabeça se torna ainda mais complexo nos casos em que a edificação não existe mais. Em seu projeto mais recente, a professora reconstruiu o antigo prédio da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Erguido entre 1911 e 1914, o edifício passou por diversas modificações até ser demolido, em 1960, havendo atualmente poucos registros de sua existência. A planta original existe apenas em um rascunho publicado em uma revista da década de 1920, mas fotos da demolição mostram que somente uma parte daquele projeto original havia sido realmente construído. O acesso a um dos átrios aparecia em um local diferente do projetado, enquanto relatos de ex-alunos davam conta de uma porta lateral ausente dos documentos.
O modelo hipotético do prédio pode ser visitado em um tour virtual disponível na atual Faculdade de Medicina da UFMG e no canal da orientadora no YouTube (https://youtu.be/v6K38-cords?feature=shared), com informações sobre as modificações pelas quais o prédio passou. Os documentos utilizados para tal haviam sido reunidos por Ethel Cuperschmid, historiadora do Centro de Memória (Cememor) da Faculdade de Medicina da universidade mineira e irmã da professora da Unicamp. “Ela coletou esses dados e veio me contar que não sabia o que fazer com eles. Então eu dei a ideia da reconstituição. Esse trabalho foi importante porque juntar todos os documentos pode levar muito tempo. Além disso, foi essencial ter essa ligação em Belo Horizonte [capital de Minas Gerais] porque o acesso à prefeitura da cidade e a outros órgãos foi todo feito pelo Cememor”, relata.
Diagnóstico e manutenção
A professora da Fecfau começou a trabalhar com a reconstrução digital de edifícios históricos em 2016, quando foi convidada a modelar a Casa de Vidro da arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi. A iniciativa fazia parte de um projeto da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o Instituto Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi para criar um plano de conservação e administração da construção. Como o HBIM permite a reunião de informações ao longo do processo de inspeção, documentação e análise de dados históricos, também é uma ferramenta útil em processos de preservação de edifícios, permitindo avaliar riscos para a construção e simulando a estrutura e as propriedades dos materiais utilizados.
Com o mesmo objetivo, a docente participou de um projeto, coordenado pelo professor Márcio Minto Fabrício, da USP, que envolveu o registro em HBIM do prédio da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, construído na década de 1950. A especialista explica que, assim como as marcas deixadas em uma pessoa ao longo de sua vida, prédios também passam por danos e patologias que precisam ser documentados a fim de se fazer o chamado diagnóstico. “Eles vão mostrar as prioridades que eu preciso resolver agora para que o prédio não caia. Então essa metodologia não existe somente para visualizar como o edifício costumava ser, mas também para mostrar como a edificação deve ser mantida ao longo do tempo”, esclarece.
O próximo passo da professora, junto com sua aluna de doutorado Larissa Lima, é reconstruir a antiga Usina Macaco Branco de Campinas, desativada para dar lugar a uma represa. Embora ela já tenha sido parcialmente demolida, as máquinas da época foram preservadas e um projeto de 2021 conseguiu fazer o escaneamento do local antes de sua destruição. Esse será o maior projeto em termos de tamanho de edificação, uma vez que a usina é composta por um conjunto de nove prédios, e a expectativa da professora é inserir o tour virtual no metaverso, o que permitirá ao espectador fazer uma visita imersiva ao local.