Mudanças climáticas podem afetar produção de cana, conclui pesquisa
Estudo projeta redução de 26% na produção de etanol em razão de alterações na frequência das chuvas
Até o final deste século, o Brasil poderá sofrer uma redução de 26% na produção de etanol de primeira geração. A constatação resulta de uma pesquisa realizada pela Unicamp e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que investigou os impactos das mudanças climáticas na produção de cana-de-açúcar e suas consequências para a geração de energia. Conduzido pelo engenheiro agrícola Gabriel Petrielli no mestrado realizado na Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Universidade, o estudo é o primeiro do mundo a apontar impactos negativos das mudanças climáticas nesse tipo de cultura no Brasil e tem como objetivo auxiliar no preparo de respostas mais adequadas para as alterações do clima.
Embora já se soubesse que fontes renováveis de energia são altamente vulneráveis às mudanças climáticas, os levantamentos feitos até agora sugeriam um impacto positivo na produção de cana-de-açúcar porque essa é uma cultura tropical bem adaptada ao clima quente. No entanto, além da possibilidade de a janela de temperatura à qual a planta reage bem – entre 19 ºC e 38 ºC – ser ultrapassada, as projeções apontam mudanças na precipitação, com uma redução na quantidade e frequência das chuvas, fator que deve provocar o maior prejuízo no caso da cana, que demanda uma quantidade significativa de água.
Para chegar a essa conclusão, Petrielli efetuou uma análise georreferenciada em escala diária do impacto das mudanças climáticas na produtividade da região centro-sul do país, composta pelos Estados de São Paulo, de Goiás, de Minas Gerais, do Paraná, do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. “Essa região produz atualmente 90% da cana-de-açúcar do Brasil e também está envolta pela área de expansão da produtividade. No trabalho, a gente avaliou não só o impacto na área atual, mas também em uma potencial área de expansão, detectada pelo zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar”, explica o pesquisador, que atua como especialista de desenvolvimento tecnológico no Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) do CNPEM.
A análise combinou simulações de crescimento da cana-de-açúcar com dois diferentes conjuntos de modelagem climática – previsões sobre as possíveis configurações do clima global no futuro, a depender do comportamento da humanidade nas próximas décadas. Disponíveis nos dois últimos relatórios de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), os conjuntos de modelos CMIP5, pertencente ao quinto relatório, de 2014, e CMIP6, pertencente ao sexto relatório, de 2022, trazem diferentes tipos de cenário, do mais otimista ao mais pessimista. Como esses modelos possuem resolução espacial muito baixa para estudos em escala regional, a pesquisa utilizou dados regionalizados dos cenários, obtidos junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), algo fundamental para refletir as diferenças entre as áreas de potencial expansão e as de cultivo atual da cana-de-açúcar no país.
Ambos os conjuntos de modelo apresentaram impactos bastante negativos em seus cenários mais pessimistas, o RCP8.5, do conjunto de modelos CMIP5, e o SSP5 8.5, do conjunto de modelos CMIP6, que pressupõem uma economia futura ainda baseada na queima de combustíveis fósseis. No primeiro caso, a produção de biomassa considerando toda a área atual de cultivo pode sofrer uma queda de 26% no período entre 2060 a 2099 – que se refletirá na mesma proporção na produção de bioetanol –, enquanto que, no segundo caso, a queda projetada para o mesmo período é de 15%. Em termos numéricos, haveria uma redução de ao menos 15 toneladas de cana-de-açúcar por hectare. “E outra conclusão a que a gente chegou para esses cenários, fazendo uma análise da trajetória anual, é que, já ao final desta década, a gente poderá ter uma produtividade abaixo da média e do desvio histórico”, revela o pesquisador.
Já para a possível área de expansão do cultivo da cana-de-açúcar, que contempla cerca de 18,7 milhões de hectares, a pesquisa projetou uma queda acentuada nos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul para o período de 2060 a 2099 no cenário mais pessimista do sexto relatório do IPCC (SSP5 8.5). Além disso, se o cenário mais pessimista do quinto relatório (RCP8.5) vier a acontecer, todo o leste de Minas Gerais poderá passar por uma queda na produção de mais de 15 toneladas por hectare nesse mesmo período. “É preciso ressalvar que esses são os cenários mais pessimistas possíveis. No entanto também não podemos descartar a possibilidade de eles acontecerem. São situações que a gente torce para não se concretizarem, mas pode chegar um momento em que as mudanças climáticas vão comprometer o potencial de mitigação das próprias mudanças climáticas”, alerta o cientista.
Cenários otimistas
O Brasil é, atualmente, líder mundial na produção e no consumo de biocombustível, tendo produzido quase 43 bilhões de litros de etanol e biodiesel apenas em 2023, de acordo com dados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Entretanto já é possível observar os efeitos da emergência climática na cultura de cana-de-açúcar no país. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), por exemplo, estima uma redução de 3,8% na safra de 2024/25 em relação ao período anterior – uma consequência dos baixos índices pluviométricos e das altas temperaturas registrados na região centro-sul –, o que resultará em uma queda de 4% na produção de etanol oriundo da cana-de-açúcar e do milho.
A uma conclusão semelhante chegou o mestrado de Petrielli. No cenário mais otimista do IPCC (SSP1), em que há uma diminuição do consumo e do crescimento populacional, bem como uma redução das desigualdades e um aumento da cooperação internacional no combate às mudanças climáticas até 2050, também foram observados impactos negativos em algumas regiões. Entre 2020 e 2059, os meses de outubro e novembro devem registrar quedas importantes no volume de precipitação, principalmente no centro de Goiás, em Mato Grosso e no centro-leste de Minas Gerais. Já para o período de 2060 a 2099, o mesmo cenário prevê uma diminuição na quantidade de chuvas no mês de outubro nos Estados de Goiás e Mato Grosso.
Para a engenheira agrícola Thayse Hernandes, pesquisadora-líder do LNBR e orientadora da pesquisa, esses dados acendem um alerta sobre a necessidade urgente de medidas não só de mitigação das mudanças climáticas, mas também de adaptação a elas. “É na área existente hoje que alguma coisa vai precisar ser feita para que a gente continue produzindo bioenergia nesses locais”, avalia. “Nosso trabalho é de projeção e não de previsão, mas já sabemos que o cenário SSP1 é basicamente o que vivemos hoje. Então estamos chegando ao que seria o cenário mais otimista e já estamos em 2024. Se nada for feito, se as medidas não forem intensificadas, é bem provável que a gente atinja os cenários medianos ou mesmo pessimistas”, adverte.