‘Eldorado simbólico’ dita padrões e alimenta universo paralelo
Sociólogo investiga as relações entre grandes conglomerados do mercado de luxo e artistas contemporâneos
De um lado, o luxo; do outro, a arte. Em campos diferentes do “jogo artístico”, os dois lados estabeleceram um relacionamento simbiótico a partir da década de 1980. Nesse período, as mudanças globais instituídas pelo neoliberalismo provocaram a retração dos investimentos públicos nas artes, abrindo as portas para a iniciativa privada em diferentes escalas e em distintas temporalidades. Grandes colecionadores associados à indústria do luxo – como Bernard Arnault, da Louis Vuitton Moët Hennessy (LVMH), e François Pinault, fundador do Kering Group – despontam como protagonistas dessa relação entre a arte e o luxo. Para compreender o avanço da elite corporativa sobre as artes, o sociólogo Henrique Grimaldi Figueredo focou sua pesquisa de doutorado nesse lucrativo “Eldorado simbólico”, como ele define o universo do luxo, destinado a poucos, mas que reverbera e cria padrões de estilo de vida desejados por consumidores de todo o mundo – inclusive por aqueles que não podem consumir o luxo e que, no entanto, absorvem simbolicamente os padrões criados por esse mercado. Todos o consomem, por fim, imageticamente.
“Mesmo que esse universo não seja o nosso, em algum momento estaremos inseridos em lógicas que foram definidas na esfera do luxo”, afirma Figueredo, segundo o qual o luxo compõe um mundo paralelo, de caráter hermético e restrito, do qual poucos participam, mas que ressoa nitidamente entre nós. O que se entende por mercado de luxo abrange uma série de setores: prêt-à-porter, joalheria, relojoaria, bens em couro (sapatos e bolsas), perfumaria e outras áreas em expansão, como redes hoteleiras. “O Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, por exemplo, pertence ao grupo LVMH. Os serviços de luxo estão cada vez mais associados a um estilo de vida.”
Desde o século XIX até os anos 1980, sempre houve uma relação entre arte e luxo. Alguns dos primeiros grandes costureiros eram também colecionadores de arte moderna. O estilista Yves Saint Laurent, por exemplo, inseria referências artísticas em sua produção – criou coleções inspiradas em Claude Monet, além do famoso vestido Mondrian, em homenagem a Piet Mondrian. De acordo com Figueredo, até o final do século XX, a moda se apropriou da arte de duas maneiras: pelo consumo distintivo (para mostrar uma posição social diferente) ou por meio de uma citação. Instigado a saber qual o cenário atual e qual a natureza da relação entre arte, moda e luxo na contemporaneidade, o sociólogo investigou em sua tese como grandes conglomerados do mercado de luxo vão abordar a arte, a partir dos anos 1980, dentro do contexto de um mundo transformado pela globalização, o rejuvenescimento do consumo e a popularização da internet.
O sociólogo pesquisou duas das mais importantes coleções de arte do mundo: a da Fondation Louis Vuitton e a da Bourse de Commerce, de François Pinault, ambas da França, país inicialmente resistente aos processos de privatização cultural. “A relação entre democracia e democratização cultural é um tema sempre recolocado no espaço público francês, pelo menos desde a década de 1950, com André Malraux [escritor, teórico da arte e ministro de assuntos culturais]”, diz Figueredo. Entre as marcas do guarda-chuva corporativo do LVMH estão Louis Vuitton, Dior, Fendi, Givenchy, Bulgari, Sephora e Moët & Chandon. O conglomerado Kering, fundado por Pinault, que também faz parte do estudo do pesquisador, possui as marcas Gucci, Saint Laurent, Balenciaga, Alexander McQueen, Boucheron e Bottega Veneta, entre outras.
Consumo ‘culturalizado’
O diagnóstico sobre o avanço da elite corporativa nas artes não é novo na sociologia, mas Figueredo o requalifica no doutorado, orientado pelo professor Renato Ortiz, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Ele lança mão de um argumento de Ortiz sobre o “universo como um conjunto de práticas, objetos e lugares conectados por uma mesma intenção simbólica”. Intenção essa que, para o sociólogo, ajuda a pensar as práticas de consumo associadas a certos estilos de vida.
“A apropriação que o luxo faz da arte caminha, a meu ver, nesse sentido: é um sintoma de uma mudança nos estilos de vida que levam o consumo a ser continuamente ‘culturalizado’, a se aproximar de uma performance”, diz o autor da tese. Ainda com base em Ortiz, que compreende cultura popular, consumo, turismo, moda e música popular como objetos de investigação capazes de revelar um arranjo social para além da cultura nacional, Figueredo entende ser preciso pensá-los como parte de uma matriz mundial e transversal.
Outra base teórica do trabalho consta da pesquisa da socióloga Chin Tao Wu sobre os contextos estadunidense e inglês, no final dos anos 1980, dos governos neoliberais de Ronald Reagan e Margaret Thatcher. O efeito da visão neoliberal de gestão culmina na retração de verbas para as artes, setor considerado menos necessário à sociedade.
A partir desse ponto de inflexão nos anos 1980, essa relação arte-luxo se reestrutura, sob as circunstâncias das novas formas do capitalismo. “O sistema capitalista de algum modo percebe que é possível mercantilizar todos os elementos, inclusive esses que eram resistentes, como a dimensão estética das coisas e o afeto. O que a intervenção corporativa nas artes faz é criar uma forma de ‘conversão de capitais’, transformando aqueles mais profanos em outros um tanto mais sagrados”, diz o pesquisador.
O avanço dos megacolecionadores sobre as mais variadas instâncias da vida artística – dos selos editoriais à contratação de importantes curadores; do patrocínio e doação de obras para museus públicos à abertura de seus próprios museus – faz com que paulatinamente se construa um capital no campo das artes. “Trata-se de um capital artístico que pode ser empregado ocasionalmente para o melhoramento simbólico do luxo e de suas iniciativas”, explica o sociólogo. “Não é à toa que François Pinault figurou nas listas das pessoas mais influentes da arte por anos consecutivos. Hoje eles têm de fato presença e direito discursivo no campo da arte.”
Pontes simbólicas
São essas estratégias que Figueredo nomeia na tese como pontes simbólicas, que consistem em elementos articuladores da conexão entre dois territórios não necessariamente semelhantes. “A arte para o universo do luxo, pensando o luxo em termos comerciais, funciona como uma ponte, conectando o mundo das commodities a um território outro, mais simbolicamente elevado, com implicações diretas para os produtos.”
O projeto Dior Lady Art, do grupo LVMH, é um exemplo de ponte simbólica. O grupo convida diferentes artistas para reimaginar um clássico modelo de bolsa Dior, cujo valor pode saltar de cerca de 1.200 euros para 60 mil euros. “Não há nada, de uma perspectiva puramente marxiana, que explique essa diferença de valor: o material utilizado é praticamente o mesmo, assim como o é o tempo gasto na confecção e montagem dessas peças. O que explica essa diferença de valor é uma matemática de ordem simbólica, uma transformação de cunho ontológico”, diz o sociólogo.
Nessa iniciativa, o artista é inserido na cadeia produtiva, como um “operário do luxo”. “Com o seu capital simbólico construído no campo da arte, o artista transmuda narrativamente a qualidade desse objeto, e será esse ‘excesso de capital artístico’ que justifica o valor financeiro elevado. Trata-se de algo bastante estratégico.” O objeto deixa de ser uma imitação ou uma estampa reproduzida e passa a ser uma obra desenvolvida pelo artista na temporalidade do luxo. São convidados desde grandes artistas até aqueles em posições intermediárias, mas nunca aqueles completamente desconhecidos nesse campo.
Arte ou mercadoria?
Para o artista norte-americano Richard Prince, que fez uma linha de bolsas para a Louis Vuitton, não há diferença entre pintar um quadro ou pintar uma bolsa. Segundo Figueredo, Prince afirma se divertir quando alguém lhe diz: “Adoro as suas bolsas”. O artista entende que a arte está na forma como ele aborda o objeto, mesmo que aquele objeto seja comercializado.
“Essa questão sobre se é arte, se é moda ou se é mercadoria, eu acho muito difícil de responder, porque ela vai ser disputada por diferentes linhas. Os historiadores vão falar uma coisa e os sociólogos e os antropólogos, outra. Eu acho que não precisamos responder [essa questão]. Basta apenas apontar os caminhos e descaminhos da coisa.”
Em seu estudo, Figueredo utilizou o conceito de campo da arte, de Pierre Bourdieu, que consiste em um conjunto de normas a reger o espaço social, com atores sociais bem posicionados e estabelecidos, assim como um conjunto de capitais que são disputados para promover a legitimidade. “Essas são regras muito próprias, que podem mudar, mas sempre devagar.” No universo do luxo, é preciso de alguma forma emular as regras que já existem, diz Figueredo. “Emular as regras da arte é uma forma de copiá-las, de reproduzi-las, é a forma como o luxo vai se apropriando paulatinamente das práticas que antes eram exclusivas dos mundos da arte.”
O autor da tese ressalta a influência do seu orientador, que fez escola na história da sociologia brasileira e latino-americana. “Ortiz não se intimida diante dos objetos. No final das contas, sou influenciado por ele na forma corajosa com que trata os temas de pesquisa. O que fiz foi mesclar uma sociologia cultural com uma sociologia econômica dos mercados, produzir também uma sociologia das elites, pegando diferentes facetas do campo sociológico para mostrar esse objeto complexo. A pesquisa de objetos contemporâneos não se fecha, por isso precisa ser sempre atualizada.”
O projeto teve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São (Fapesp), tanto na fase desenvolvida no Brasil quanto no período de um ano em Paris. A íntegra pode ser acessada no Repositório da Produção Científica e Intelectual da Unicamp, pelo título “As outras regras do jogo: uma análise da relação entre a indústria da moda e o mercado de arte contemporânea. Fondation Louis Vuitton e Collection Pinault como estudos de caso”.
Linha do tempo
O primeiro grande conglomerado de artigos de luxo surge em 1987, o Louis Vuitton Moët Hennessy, formado pela fusão inicial dos grupos Moët & Chandon e Hennessy e, só depois, dessa empresa com a Louis Vuitton, que até 1997 só fabricava malas e bolsas. O estilista norte-americano Marc Jacobs criou a primeira coleção de prêt-à-porter da LVMH. Hoje esse é o maior conglomerado de luxo em número de marcas do mundo, com o maior guarda-chuva: 75 marcas. O Kering Group foi formado em 1999 e está associado ao megacolecionador François Pinault, CEO do Kering e sócio majoritário da Christie’s, segunda maior casa de leilões do planeta.
Figueredo faz uma análise dos contratos da LVMH com os atores criativos, de 1988 a 2017, para ilustrar a forma como o luxo vai se aproximando dos artistas e empregando suas criações na requalificação dos produtos, das lojas, das passarelas. Em 1988, apenas um ano depois da formação do grupo, ocorre a primeira grande colaboração com os artistas: comissionam-se obras de cinco grandes nomes da arte contemporânea para estampar lenços.
Além das exposições, os museus remodelados passaram a ser espaços também de entretenimento, abrigando eventos superexclusivos do universo do luxo. “Essa é uma forma de requalificar o próprio estilo de vida, reafirmar a diferença e criar um lugar de performance”, explica o pesquisador. “O fenômeno está muito mais associado a uma temporalidade do consumo, mas que não pode ser banal.” Com o tempo, o luxo e a arte, que antes apenas se tangenciavam, passam a experimentar uma espécie de sobreposição, conclui Figueredo.