A dieta essencial do maior roedor do mundo
Estudo descreve relação mutualista entre a capivara e protozoário presente em seu intestino
No mundo animal, é bastante comum que espécies adotem comportamentos um tanto quanto heterodoxos. Exemplo disso é a capivara, que tem o hábito nada fofinho de comer as fezes de suas colegas, mas não as próprias. Tal costume pode parecer estranho, mas explica por que esse mamífero, considerado o maior roedor do mundo, consegue manter uma boa nutrição mesmo possuindo uma dieta herbívora de difícil digestão, concluiu uma pesquisa publicada recentemente no periódico Microbial Genomics. O estudo, realizado em parceria pela Unicamp e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), comprovou haver uma relação mutualista essencial entre a capivara e um simbionte pouco conhecido que habita seu intestino. E o consumo das fezes serve de intermediário para essa relação.
A Muniziella cunhai, um protozoário que pode atingir até 3 milímetros de comprimento, é, assim como a capivara, considerada uma gigante entre seus pares, que costumam ter um tamanho dez vezes menor. Ela foi descrita no Brasil em 1939, mas só voltou a ser observada em 2018, quando a bióloga Franciane Cedrola, então doutoranda da UFJF, encontrou-a no intestino de uma capivara que havia sido atropelada por um carro. Não era novidade a presença de microrganismos no sistema digestivo do roedor, que conta com milhões de seres vivos ali. Chamou a atenção da pesquisadora, porém, o fato de a Muniziella cunhai poder ser observada a olho nu e de o organismo estar presente em grande número.
Como os mamíferos selvagens ainda representam um grupo pouco estudado pelos biólogos, as principais características dessa microbiota e o papel que desempenha no metabolismo da capivara continuam sendo algo bastante incerto para a comunidade científica. Antes da pesquisa, já se imaginava que o roedor dependia da simbiose com os microrganismos existentes em seu trato alimentar para digerir a dieta herbívora, uma vez que esses animais não são capazes de produzir as enzimas responsáveis por quebrar as fibras consumidas. Essa relação, no entanto, ainda não havia sido comprovada. “Esse foi o primeiro estudo genômico realizado com um protozoário intestinal que vive em simbiose com um mamífero herbívoro”, afirmou Cedrola, que hoje atua como pesquisadora de pós-doutorado no Laboratório de Diversidade Genética do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.
Foi durante sua estadia na Universidade que ocorreu a comprovação do papel desse protozoário no processo digestivo da capivara. Em seu doutorado, a pesquisadora trabalhou primariamente na identificação e quantificação dos ciliados – grupo de protozoários ao qual pertence a Muniziella cunhai, que possuem cílios ao redor do corpo – encontrados na capivara atropelada. Naquela época, a cientista teve muita dificuldade para realizar os estudos porque, devido ao gigantismo da Muniziella, os métodos já estabelecidos não funcionavam corretamente. Apenas no pós-doutorado, Cedrola conseguiu observar as funções desse organismo, por meio da aplicação de técnicas de sequenciamento genético disponíveis na Unicamp.
“A gente buscou na literatura científica informações sobre que tipo de compostos energéticos a capivara absorvia e verificamos se a Muniziella cunhai, nas funções que desempenha, libera esses compostos utilizados pelo hospedeiro”, explica a bióloga. “E a gente viu que, durante seu metabolismo, a Muniziella digere os materiais que chegam até ali após serem consumidos pela capivara. Principalmente amido, celulose, glicogênio e até mesmo carboidratos presentes na parede celular de outros microrganismos. E vimos que, ao metabolizar esses compostos, ela liberava os nutrientes absorvidos pela capivara, como ácidos graxos voláteis, as principais fontes de energia para mamíferos herbívoros, além de lipídios, proteínas e vitaminas”, comenta a cientista.
Onde entram as fezes?
Assim como ocorre nos mamíferos ruminantes, os microrganismos do sistema digestivo da capivara se alimentam dos compostos que chegam até eles, liberando nutrientes a serem depois absorvidos pelo hospedeiro. No entanto, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com vacas e camelos – que ruminam o alimento em um órgão localizado na parte inicial do sistema digestivo para depois os ingerirem novamente –, a microbiota da capivara está localizada no ceco. Esse órgão, situado ao final do intestino grosso, tem baixa capacidade de absorver nutrientes e, por isso, todas essas substâncias acabam em um tipo especial de fezes chamado cecotrofo, que as capivaras liberam somente em determinadas partes do dia.
Os pesquisadores compararam então o que já se sabia sobre a composição dos cecotrofos da capivara com o que eles haviam investigado no metabolismo da Muniziella cunhai, observando uma relação muito bem ajustada entre eles. Ou seja, o que a capivara consome, o protozoário utiliza para se alimentar, e o que o protozoário libera nesse processo, a capivara consome por meio da cecotrofia, ou reciclagem das fezes. “Comprovar essa relação de simbiose mutualística em uma espécie sem interesse econômico foi essencial para mostrar como estudos do genoma podem elucidar interações ecológicas porque essas técnicas ainda são muito novas”, afirma a docente Vera Nisaka Solferini, que coordena o Laboratório de Diversidade Genética.
O professor da UFJF Roberto Júnio, que orientou Cedrola no doutorado, acrescenta que os avanços na área de genômica abriram campo para o estudo da interface entre processos ecológicos e processos evolutivos nunca antes avaliados. “Isso foi algo muito explorado nesse estudo. A pesquisa trouxe um olhar inovador para a área de protozoologia e de ecologia de interações, além de utilizar várias ferramentas de bioinformática não triviais. Houve um grande avanço no campo da interpretação das relações simbióticas, usando o sequenciamento genômico e a interpretação ecológica, o que permite a aplicação dessa abordagem para inúmeras outras relações simbióticas”, explica.
Embora o resultado do estudo sobre essa interação específica não tenha uma aplicação econômica, há a possibilidade, por exemplo, de as enzimas produzidas por esses protozoários intestinais virem a ser utilizadas no processo de fabricação de etanol. A maior parte da produção brasileira de bioetanol é feita diretamente a partir do caldo da cana, processo que gera uma grande quantidade de biomassa de difícil processamento, mas com grande potencial energético. Assim, seria possível sintetizar essas enzimas em laboratório para otimizar o processo de produção de etanol de segunda geração, aproveitando uma matéria-prima até então descartada e diminuindo o impacto ambiental dessa atividade.