Estudos comparam terapias sem cirurgia em saúde íntima feminina
Duas teses de doutorado da FCM analisam eficiência de soluções para frouxidão vaginal e incontinência urinária de esforço
Duas pesquisas realizadas na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp compararam terapias não cirúrgicas para tratar dois problemas comuns da saúde íntima da mulher. Um dos estudos teve como foco a incontinência urinária de esforço (IUE); o outro, a frouxidão vaginal – condições que, além de frequentes, provocam impactos significativos na autoestima, na vida sexual e nas relações sociais e afetivas de pacientes de diversas faixas etárias. Os trabalhos, que renderam à médica Samantha Condé Rangel e à fisioterapeuta Gláucia Pereira o título de doutoras em ciências da saúde, contaram com a orientação do professor Luiz Gustavo Brito e a coorientação da docente Cássia Juliato. Ambos integraram uma linha de pesquisa, do Ambulatório de Uroginecologia da FCM, dedicada a investigar os aspectos epidemiológicos de doenças do trato genital e urinário inferior feminino.
Bem conhecida e discutida, a incontinência urinária de esforço é aquela em que a perda involuntária de urina ocorre ao tossir, espirrar, agachar ou pegar peso. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), trata-se de um problema de saúde pública que aflige principalmente mulheres com mais de 50 anos, embora já se saiba que ocorra em 16% da população abaixo de 30. “Cerca de 30% das mulheres apresentam algum grau da doença”, afirma a médica. O tratamento costuma envolver a prática de uma técnica específica de fisioterapia, chamada treinamento dos músculos do assoalho pélvico (TMAP). Quando esse método, considerado a primeira opção terapêutica para a enfermidade, não funciona, recorre-se geralmente à via cirúrgica.
A frouxidão vaginal, embora seja um assunto pouco discutido, é uma queixa recorrente em consultórios de médicos e fisioterapeutas. Segundo Brito, o quadro apresenta-se em três de cada dez pacientes. Trata-se de uma percepção, seja da mulher, seja de seu parceiro sexual, de que a vagina não está se contraindo durante o ato da penetração. “É como se [a vagina] estivesse frouxa ou, ainda, como se não fosse preenchida durante a relação”, explica o professor. De acordo com Pereira, esse nem sempre é um sintoma perceptível e carece de uma avaliação criteriosa, que inclui até exames de imagem, como ultrassonografia. “De modo geral, pode-se dizer que é um sinal de excesso de flacidez vaginal, relacionado a alguns fatores, como um parto complicado, a laceração perineal e a multiparidade, ou seja, a quantidade de partos por que a mulher passou. Também há uma associação com a menopausa”, resume a pesquisadora.
As duas teses se destacam, avalia o orientador, pelo pioneirismo e pela densidade Rangel conduziu o primeiro estudo do mundo a comparar a fisioterapia e o laser de gás carbônico fracionado para tratar IUE. Com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a pesquisa obteve resultados promissores. Já Pereira desenvolveu uma metodologia de diagnóstico e um protocolo inédito de fisioterapia que se mostrou eficaz contra a frouxidão. Seu trabalho foi financiado pela Capes e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A fisioterapeuta ainda conduziu uma análise transversal sobre frouxidão vaginal na Unicamp e no Chelsea and Westminster Hospital, instituição vinculada ao Imperial College London, no Reino Unido.
Ambas executaram ensaios clínicos randômicos – modelo de estudo de maior rigor científico – para comparar procedimentos não cirúrgicos. “Até então, não havia nenhum artigo analisando o desempenho de duas terapias distintas para tratar incontinência urinária de esforço ou frouxidão vaginal. Os estudos encontrados comparavam sempre algum método terapêutico com a cirurgia”, explica o orientador.
Brito destaca, ainda, a importância de pesquisas científicas aprofundarem a discussão sobre um tema que, além de causa antiga de constrangimento, recentemente se tornou foco do mercado de produtos de beleza. “A popularização de anúncios sobre procedimentos que garantem rejuvenescer a região íntima da mulher indica o crescimento da busca por uma vulva padrão”, observa o docente, salientando a complexidade da questão, que envolve entre outros fatores o estado mental da paciente.
Esperança para tratar incontinência
Rangel já utilizava o laser de gás carbônico fracionado em sua clínica e falava sobre o assunto em congressos quando decidiu estudar o método no doutorado. Seu intuito era registrar a eficácia e a segurança da técnica para tratar a IUE. Ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia da FCM, a pesquisadora buscou contrapor o laser ao tratamento mais seguro e eficiente disponível: o TMAP guiado pela fisioterapia, que depende da adesão frequente do paciente aos exercícios. “Essa aderência, mundialmente, é considerada baixa. No caso da IUE, é preciso ainda avaliar a musculatura do assoalho pélvico.” Quando o TMAP não surte o efeito desejado, explica, geralmente a paciente é submetida a uma cirurgia denominada sling. “As mulheres têm procurado uma alternativa que não seja invasiva, e o laser despertou um interesse significativo.” Essa terapia começou a ser utilizada para fins estéticos e logo passou a ser empregada para combater problemas de saúde íntima, como o ressecamento vaginal. Apesar de sua rápida disseminação em clínicas particulares, esse tratamento não tem eficácia comprovada em muitos casos, alerta Brito, salientando que a pesquisa de Rangel foi a primeira a compará-lo a outra terapia que também funciona como tratamento para IUE. O estudo ganhou um prêmio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).
A médica realizou o ensaio clínico no centro coparticipativo da Unicamp instalado na Clínica Condé, do Rio de Janeiro, durante 12 semanas. “O objetivo foi conferir se as aplicações de laser de gás carbônico fracionado teriam desempenho não inferior ao do treinamento de fisioterapia TMAP para diminuir os sintomas de perda urinária ao esforço”, pontua a pesquisadora, que trabalhou com dois grupos de 47 voluntárias cada, todas diagnosticadas com IUE. “Rangel conseguiu dar um bom seguimento para as mulheres que participaram do grupo de fisioterapia”, conta Brito. No outro grupo, as participantes foram submetidas a uma aplicação de laser fracionado com duração de 10 minutos, uma vez por mês, por três meses. Em seguida, solicitou-se que retornassem após 90 dias, 120 dias e um ano, para avaliação. “Promover de forma gratuita um tratamento caro, que custa em média R$ 10 mil, foi um atrativo. Tivemos uma adesão muito boa”, analisa a médica.
Para mensurar o desempenho dos dois métodos, a pesquisadora aplicou um questionário em três momentos distintos. De acordo com as respostas das voluntárias, as duas opções melhoraram a sensação de perda de urina após 90 dias, 120 dias e 365 dias, com desempenhos similares. “As mulheres tratadas com laser de gás carbônico fracionado também mostraram uma melhora em relação à função sexual e ao orgasmo após três e seis meses de terapia. Ainda sobre a sexualidade, as voluntárias que passaram por treinamento muscular de assoalho pélvico tiveram melhora em relação ao desejo, nos mesmos intervalos de tratamento”, revela Rangel. Para o orientador, o trabalho não apenas comprovou que a terapia com o laser de gás carbônico não é inferior à fisioterapia como se diferencia por captar dados até um ano após o fim do experimento.
O alto custo do aparelho de aplicação de laser inviabiliza sua adoção pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em um prazo curto. Entretanto, os resultados obtidos pelo estudo comprovaram haver mais uma possibilidade não cirúrgica de enfrentar o problema. “É importante frisar que não houve conflito de interesses. Existia muita mídia, muita divulgação, sobre a eficácia e a segurança do laser, e a gente pôde, por meio de um estudo científico, verificar que realmente é possível buscar uma certa melhora para a qualidade de vida das mulheres com incontinência urinária de esforço sem submetê-las a um procedimento cirúrgico”, conclui a médica.
É preciso falar de frouxidão vaginal
A pesquisa empreendida por Pereira para tratar a frouxidão vaginal reúne oito trabalhos sobre uma condição ainda cercada de tabu. A fisioterapeuta conta que a ideia para o doutorado surgiu de duas constatações: a percepção, em seus atendimentos nos ambulatórios da FCM, do alto número de mulheres que solicitavam esclarecimentos sobre o problema; e a lacuna de conhecimento sobre o assunto na literatura.
O tema nem sempre é mencionado pela mulher na consulta. Segundo Brito, a imensa maioria tem vergonha de falar sobre o problema com o atendente. Por isso, é preciso que o profissional saiba investigar. “Somente 10% levam a queixa ao médico, fisioterapeuta ou outro profissional de saúde. Ocorre que 80% dos ginecologistas não perguntam de forma ativa como está a parte sexual da paciente, que é como que se introduz a questão. Muitos não questionam por falta de tempo, por desconhecimento ou por não conhecer o protocolo de atendimento. E caso a mulher diga que a sexualidade não está boa, abre-se uma caixa de Pandora, e muitos médicos não sabem como trabalhar com a informação que recebem.”
De acordo com a pesquisadora e o orientador, o sintoma não causa nenhuma doença fisiológica, tampouco evolui para um problema mais grave – o que não significa que não cause danos para o bem-estar da mulher e para sua relação com o parceiro. “Esse é um assunto que envolve a sexualidade humana, o período do pós-parto e outras sensações relativas ao assoalho pélvico da mulher. Às vezes, a queixa é da paciente. Em outros casos, é do marido. Também há situações em que os dois se queixam. Pode ser que a mulher tenha vergonha de falar e espere passar por várias consultas com o profissional até criar coragem e abordar o tema. E ainda pode acontecer de o profissional não achar nenhuma alteração no exame físico, mas a paciente insistir que sente uma frouxidão”, esclarece Brito.
Para o ensaio clínico que conduziu em seu doutorado, Pereira escolheu a radiofrequência – uma opção de terapia de energia térmica encontrada em alguns hospitais do SUS – e o TMAP, umas das muitas opções terapêuticas da fisioterapia. “Dentro das alternativas de terapias à base de energia, a radiofrequência é a mais econômica”, justifica. Não havia, na literatura, registro de protocolos específicos para o tratamento de frouxidão vaginal usando nenhuma das duas metodologias. Pereira, portanto, desenvolveu seus próprios modelos. Seu estudo foi realizado com dois grupos, de 42 e 45 voluntárias. Assim como no caso da pesquisa de Rangel, cada grupo foi submetido a uma das terapias por 12 semanas.
Os resultados revelaram que os sintomas melhoraram nos dois grupos após um mês e seis meses de tratamento. No entanto, após seis meses, o desempenho do TMAP mostrou-se superior aos resultados da radiofrequência. A avaliação foi feita com base na aplicação de questionários, exame físico e avaliação ultrassonográfica – combinando o ultrassom transvaginal, o translabial e o abdominal. Dessa forma, a fisioterapeuta verificou a existência de alterações na musculatura do assoalho pélvico e na parede da vagina.
Pereira ainda realizou um estudo qualitativo para avaliar a percepção das mulheres brasileiras sobre a frouxidão vaginal. As respostas deram a dimensão do impacto da condição para suas vidas íntimas. “Essa mulher se sente inferior, com uma autoestima muito baixa e frustrada diante dos sintomas. Culpada por não ter e não proporcionar prazer. Essa mulher tem uma vontade enorme de se tratar, mas se sente envergonhada diante do termo frouxidão vaginal. Então, espera que o profissional de saúde inicie a conversa”, finaliza.