Cem anos de uma vida que não cabe no currículo
Pioneiro da ciência brasileira, as contribuições de Cesar Lattes moldaram a física moderna e inspiraram gerações
“Se existe um Currículo Lattes de Cesar Lattes, não foi ele quem o fez.” Ao fazer o comentário, Carola Dobrigkeit, aluna de Cesar Lattes e, desde 1974, professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp, revela aspectos da personalidade do mestre: um homem simples, brincalhão e pouco afeito a alguns trâmites burocráticos inerentes à vida de um pesquisador. Para a surpresa da docente, sua hipótese se confirmou: o renomado cientista tem um currículo na plataforma que leva seu nome. O registro, porém, foi feito por amigos de forma simbólica, em sua homenagem.
Para quem está habituado a ver extensos currículos, o de Lattes chama a atenção por sua concisão. A formação acadêmica conta apenas com os antigos primeiro e segundo graus e com a graduação em física pela Universidade de São Paulo (USP). O pesquisador não chegou a defender uma tese de doutorado. Todavia, apenas cinco anos após sua graduação, em 1948, a mesma universidade lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa pelos resultados de suas pesquisas com raios cósmicos. Os artigos não são numerosos e não constam orientações ou outros feitos. No entanto suas produções transformaram a forma como compreendemos a física e fizeram de Lattes o brasileiro que mais perto chegou de um Prêmio Nobel.
Em 2024, Cesar Lattes completaria 100 anos e, para celebrar a data, o Jornal da Unicamp recupera sua história e o seu legado para a ciência e para as instituições acadêmicas, em particular para a Unicamp. Nesta reportagem, a Universidade presta uma homenagem a um de seus professores mais ilustres e a um dos maiores cientistas do país.
De Curitiba para o mundo
Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu em 11 de julho de 1924 em Curitiba (PR), filho dos italianos Giuseppe Lattes e Carolina Maroni. Nos anos 1930, a família se estabeleceu em São Paulo, onde o jovem cursou o ensino secundário, equivalente ao atual ensino médio, no Colégio Dante Alighieri. O gosto do garoto pela ciência e a proximidade de Giuseppe com professores da recém-fundada USP garantiram a Lattes a oportunidade de iniciar, ainda aos 15 anos, o curso de física, no qual se formou aos 19. Quem viabilizou o seu ingresso na graduação foi Gleb Wataghin, físico ítalo-ucraniano fundador do Departamento de Física da Universidade e que mais tarde se tornaria o patrono do IFGW.
Se Wataghin permitiu que Lattes fosse aluno da graduação, outro professor o conduziu pelos caminhos da física experimental, vertente que se tornaria a paixão do jovem. Conforme narra Cássio Leite Vieira na biografia César Lattes: Arrastado pela história, publicada pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), Giuseppe Occhialini chegou ao Brasil em 1937 a convite de Wataghin para integrar o corpo docente da USP – e para fugir da Itália fascista de Benito Mussolini. Em uma de suas aulas, Occhialini dispensou a exploração teórica e propôs que o jovem cientista aprendesse sobre raios X revelando filmes fotográficos expostos à radiação e medindo suas propriedades físicas. A sugestão despertou em Lattes a preferência pelos experimentos, postura que defenderia em toda sua carreira. “Muitas vezes, um pesquisador afirma que somente sua nova formulação teórica será suficiente para que sua teoria seja válida. Entretanto Lattes afirmava que somente observações experimentais, feitas segundo os padrões da ciência, poderiam validar uma teoria”, explica José Augusto Chinellato, professor do IFGW e ex-orientando do físico. “Ele dizia que a experiência seria a juíza da formulação teórica.”
Próximo ao fim da Segunda Guerra Mundial, Occhialini voltou à Europa e se estabeleceu na Universidade de Bristol, no Reino Unido, onde integrou a equipe que, sob o comando de Cecil Powell, vinha pesquisando raios cósmicos por meio da análise da trajetória das partículas registradas em chapas fotográficas. Naquele período, o método já apresentava vantagens quando comparado com o uso das chamadas câmaras de nuvens, que usavam vapor de água supersaturado para a detecção das partículas. Enquanto isso, no Brasil, Lattes dedicava-se a experimentos também na área de partículas cósmicas, mas utilizando as câmaras de nuvens. Graças a Occhialini, que apresentou a Lattes o potencial das chapas fotográficas, o brasileiro decidiu juntar-se à equipe de Powell em Bristol, em 1946, decisão que transformaria sua carreira.
Em busca do píon
A partir do fim do século 19, com a identificação das partículas subatômicas – como os elétrons, descobertos em 1897, os prótons, em 1919, e os nêutrons, em 1932 –, a ideia de que os átomos seriam unidades indivisíveis da matéria passou a ser desconstruída. Sabendo que os prótons apresentam carga positiva e os nêutrons, carga nula, os cientistas passaram a questionar como o núcleo atômico se manteria coeso, sem que os prótons se repelissem. O primeiro a propor uma resposta foi o japonês Hideki Yukawa ao defender a existência de uma partícula com massa intermediária entre o próton e o elétron. Yukawa concluiu que essa partícula mediadora – o méson – deveria ter uma massa cerca de 200 a 300 vezes maior que o elétron, sendo este 2 mil vezes mais leve que o próton, a fim de manter a coesão do núcleo atômico. “A descoberta do méson pi por Cesar Lattes foi a comprovação do que Yukawa teorizou”, resume Dobrigkeit. O “pi” acrescido ao nome da partícula se deve ao fato de outros mésons terem sido descobertos no decorrer dos anos. Hoje, o méson pi é conhecido como píon.
O grupo de Bristol utilizava o método fotográfico para investigar a existência de raios cósmicos. Os experimentos consistiam no uso de filmes chamados emulsões nucleares, compostos por uma camada de gelatina mais espessa com maior concentração de brometo de prata. “Quando uma partícula carregada passa pelo filme, quebra a ligação do bromo com a prata, separando-os”, detalha a docente. Segundo Dobrigkeit, se o filme demorasse a ser revelado, os átomos retomavam sua ligação, impedindo a visualização da trajetória da partícula. Lattes propôs que a essa emulsão fosse acrescentado um sal de boro, o borato de sódio, o que retardaria a recombinação da prata com o bromo. “Isso tornou a sensibilidade da emulsão de brometo de prata mais duradoura. Não seria mais necessário revelar o filme logo após a passagem da partícula”, explica a docente.
Os primeiros experimentos com o aperfeiçoamento sugerido por Cesar Lattes foram realizados em 1946 em Pic du Midi, nos Pirineus franceses, a 2,8 mil metros de altitude, onde indícios do píon foram identificados. Para confirmar os achados, o físico brasileiro repetiu os testes na montanha de Chacaltaya, na Bolívia, a 5,5 mil metros. As grandes altitudes favoreciam a captura de uma quantidade maior de partículas energéticas, confirmando a existência dos píons de forma experimental. Os resultados foram publicados em 1947 na revista Nature, em artigo assinado por Lattes, Occhialini e Powell. Após essa verificação, Lattes também comprovou a existência da partícula em 1949, detectando sua produção de forma artificial no acelerador de partículas Cíclotron, na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Dessa vez, a parceria foi com Eugene Gardner, cientista que havia atuado no Projeto Manhattan, programa responsável por desenvolver a bomba atômica.
A identificação do píon em Berkeley ocorreu em apenas dez dias, algo incomum no caso de experimentos dessa natureza. O tempo exíguo, porém, explica-se por conta da exploração inicial realizada anteriormente nos Pirineus e em Chacaltaya. “Quando Lattes comprovou a existência no acelerador de partículas de Berkeley, enviou um telegrama a Cecil Powell relatando a descoberta. Powell respondeu: ‘Felizmente estamos certos’”, lembra Edison Shibuya, professor aposentado do IFGW e ex-orientando do físico. “Eles também estavam inseguros em relação a isso.”
A descoberta do píon deu a Lattes grande prestígio em todo o mundo. Entretanto o reconhecimento não foi suficiente para que ele recebesse o Prêmio Nobel de Física. Entre todos os envolvidos nos experimentos, apenas Powell ganhou o prêmio, em 1950, “pelo desenvolvimento do método fotográfico de estudos dos processos nucleares e as descobertas em relação aos mésons”, como informa o site da Academia Sueca, que concede o prêmio. “Lattes participou de todo o desenvolvimento das melhorias das chapas fotográficas. Foi ele quem, essencialmente, fez o trabalho de microscopia para a descoberta do méson pi”, destaca Shibuya.
Para os professores, vários fatores podem ter determinado a escolha apenas de Powell, como a idade de Lattes à época – somente 25 anos – e o fato de se tratar de um pesquisador latino-americano. Entre os grandes nomes da física, o fato gerou desconforto. Shibuya lembra que Niels Bohr, dinamarquês que contribuiu vastamente para desvendar a estrutura atômica como a conhecemos hoje, teria escrito uma carta aos organizadores do prêmio manifestando sua indignação. O docente conta que chegou a procurar por esse documento, mas que nunca conseguiu encontrá-lo. “Nossa meta não era o prêmio em si, mas dar a Lattes o reconhecimento que ele merecia.” Os relatos dão conta de que Lattes nutriu certa mágoa pelo ocorrido, mas a superou com bom humor. “Uma das brincadeiras que ele fazia é que a Academia Sueca escolheu o vencedor por ordem alfabética e que Cecil vem antes de Cesar”, recorda Shibuya.
Formador de gerações
A descoberta do píon tornou Lattes gabaritado para atuar em qualquer uma das grandes instituições de pesquisa do mundo. No entanto o físico preferiu voltar ao Brasil e auxiliar no estabelecimento de instituições fundamentais para a produção científica do país. Foi assim que ajudou a criar o CBPF, em 1949, e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1951. “Em uma época na qual era muito raro um cientista brasileiro participar de descobertas internacionais, Lattes usou essa visibilidade para fortalecer institucionalmente a ciência brasileira”, analisa Carlos Henrique de Brito Cruz, professor emérito da Unicamp, reitor da Universidade entre 2002 e 2005 e diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) entre 2005 e 2020.
Ainda nos anos 1950, Lattes teve uma breve passagem pelas universidades de Chicago e Minnesota, nos Estados Unidos, retornando definitivamente ao país em 1960, quando ingressou como docente na USP. A vinda para a Unicamp ocorreu em 1967 a convite de Marcelo Damy, físico integrante do grupo de Gleb Wataghin na USP que, a convite de Zeferino Vaz, organizou o que viria a se tornar o instituto de física da nova Universidade, sendo o primeiro diretor do futuro IFGW.
Na Unicamp, Lattes liderou a criação do Departamento de Raios Cósmicos e Cronologia (DRCC), dando sequência às descobertas experimentais iniciadas no Pic du Midi e em Chacaltaya. Antes mesmo de os atuais prédios do IFGW terem sido construídos, as pesquisas na área andavam a todo vapor nas instalações do antigo Ginásio Industrial Bento Quirino, hoje sede do Colégio Técnico de Campinas (Cotuca). Nesse período, o físico também colocou a Universidade, recém-fundada, no mapa da ciência mundial por meio da Colaboração Brasil-Japão, uma das primeiras ações colaborativas envolvendo grupos internacionais de físicos, algo incomum nos anos 1960. Essa parceria foi fruto ainda do contato mantido entre Lattes e Yukawa, o mesmo que havia teorizado a existência dos mésons nos anos 1930.
“No IFGW, Lattes estabelecia canais diretos com grandes nomes da ciência mundial. Estudantes que trabalhavam com ele, ou em torno dele, conseguiam ter contato com a ciência produzida no exterior”, lembra Brito. Boa parte das gerações de pesquisadores formados pelo físico passou pela Unicamp e deu continuidade ao seu legado. Dobrigkeit, Chinellato e Shibuya fazem parte desse grupo.
“Eu não conhecia o professor Lattes pessoalmente, apenas pelos jornais. Mas um dia, quando eu estava no terceiro ano da graduação, ele veio dar aula para nossa turma. Para todos nós isso foi muito marcante”, recorda Dobrigkeit. A professora afirma que tanto o conhecimento de Lattes como sua postura frente aos estudantes traduziam-se em um grande ensinamento. “Ele dava aulas de altíssimo nível, sem ser condescendente por estarmos na graduação.”
Neste ano, Dobrigkeit completa 50 anos de trabalho na Unicamp. A professora ingressou na instituição a convite de Lattes, seu então orientador de doutorado, para ser instrutora de ensino da disciplina ministrada por ele, Estrutura da Matéria, que apresenta aos estudantes os fundamentos da física moderna. A docente recorda que, iniciante no magistério, deu várias aulas com o mestre na plateia. “Para dar aula com Cesar Lattes na sala me vendo, eu preparava até minhas vírgulas”, brinca.
Shibuya também coleciona boas recordações do convívio com Lattes, de quem se aproximou em 1967, ainda na USP, e com quem conviveu por cerca de 40 anos, primeiro como orientando, depois como colega de departamento. “Certamente, eu ficava um pouco inibido para conversar com ele”, confessa ao recordar a habilidade de Lattes em romper as formalidades com irreverência. “Durante a orientação no doutorado, houve uma vez em que ele me disse: ‘Enquanto você não me chamar apenas de você, isso não vai dar certo’”, comenta sorrindo o docente.
O professor foi um dos últimos a ter contato com Lattes em vida. Shibuya relata que o visitou em casa na véspera de sua morte, ocorrida em 8 de março de 2005, e ouviu uma importante lição: o pedido para que fossem honestos com as observações científicas, que respeitassem o tempo da ciência e que não se deixassem guiar pela ânsia por prêmios. Para Shibuya, o pensamento vai ao encontro de seu apreço pela ciência experimental e serve de alerta aos pesquisadores que o sucedem. “Buscar apenas a quantidade de trabalhos é perigoso, compromete a qualidade. O imediatismo do mundo serve apenas aos números”, reflete.
LEGADO NA UNICAMP
As marcas de Cesar Lattes estão em diversos espaços da Unicamp, desde os prédios e laboratórios do IFGW, que foram palco de seus experimentos, às pessoas que hoje levam adiante sua paixão pela ciência. O Arquivo Central do Sistema de Arquivos (Siarq) da Unicamp e a Biblioteca Central Cesar Lattes (BCCL) reúnem grande parte do acervo amealhado durante anos de pesquisas.
O Siarq mantém correspondências, anotações de pesquisa em mapas e cadernos, artigos científicos, certificados, homenagens e diplomas recebidos pelo físico, entre os quais os títulos de Doutor Honoris Causa concedidos pela USP e pela Unicamp e o de professor emérito da Unicamp. “Esse é um acervo muito rico para pesquisadores da física e da história da ciência”, destaca Telma Murari, supervisora da seção de gestão e difusão do acervo documental do Siarq. Em 2011, o Fundo Cesar Lattes foi considerado de interesse público pelo Decreto Federal de 1º de junho daquele ano, durante a presidência de Dilma Rousseff. Segundo a norma, o fundo reúne documentos de máxima relevância para a história da ciência, que mostram a singularidade e o ineditismo das descobertas do pesquisador.
Já o terceiro piso da biblioteca que leva Cesar Lattes no próprio nome mantém uma coleção de objetos e documentos que reconstituem o cotidiano do pesquisador na Unicamp. Por meio de livros e objetos, como microscópios, itens de escritório e até um jacaré empalhado, o espaço revela um pouco de sua personalidade única. O acervo foi doado pela família do cientista após sua morte.
Frente à grandeza de suas contribuições para a física e para as instituições brasileiras, a história do pesquisador é um registro que precisa ser transmitido, de forma a inspirar novas gerações de pesquisadores.
“É importante contar a história de Cesar Lattes e demonstrar que os cientistas formados no Brasil têm a capacidade de fazer a diferença na ciência internacional”, defende Brito.
Hoje, quem passa pelas universidades brasileiras tende a associar seu nome a uma das últimas grandes homenagens feitas ao físico: a Plataforma Lattes. Criada em 1999 na gestão de Luiz Carlos Bresser-Pereira à frente do então Ministério da Ciência e Tecnologia, a base de dados foi elaborada para integrar informações curriculares, grupos de pesquisa e instituições em um único sistema, com o objetivo de facilitar o planejamento e o fomento à ciência nacional. De acordo com dados da plataforma, em junho de 2024, eram 353.625 currículos cadastrados de doutores, 458.434 de mestres e 68.846 de pessoas que cursaram mestrados profissionalizantes.
Lattes chegou a acompanhar a implementação e os primeiros anos de funcionamento da plataforma no país. Shibuya recorda que as primeiras versões do sistema eram de difícil acesso, situação agravada pela baixa qualidade das conexões de internet à época. “Uma vez, Cesar me procurou e questionou: ‘Edison, fiquei sabendo que existe uma nova plataforma com meu nome e que não estão gostando muito [dela]’”, lembra com saudades. Cem anos após seu nascimento, o físico acompanha os cientistas brasileiros que acessam a plataforma on-line, que aprendem sobre partículas subatômicas ou que contam com as instituições criadas com sua colaboração para realizar suas pesquisas. Ainda que carregando o mesmo “sobrenome”, a vida e a importância de Cesar Lattes não caberiam em seu próprio Currículo Lattes.
Carta de uma jovem pesquisadora
Parte do acervo que compõe o Fundo Cesar Lattes, mantido pelo Siarq, é formado por correspondências recebidas pelo físico ao longo da carreira. Entre os remetentes, há grandes universidades, institutos de pesquisa, órgãos de governo e importantes pesquisadores. No meio de vários papéis timbrados, chamam a atenção três folhas de papel de carta com a aparência dos que comumente vemos em coleções dos anos 1970 e 1980. No fundo amarelo pardo, a caligrafia cuidadosa divide espaço com uma ilustração no canto inferior esquerdo. No topo da folha, a data: “Porto Alegre, 2 de agosto de 1979”.
“Oi, Cesare
Quem está escrevendo é uma estudante de Engenharia Elétrica que adora Física. Meu nome é Dudi, estou no 1º ano (2º semestre) de Engenharia na UFRGS”
“É estranho entrar em contato comigo mesma depois de 45 anos. Li a carta e até me emocionei”, conta Maria de Lourdes Borges, que ainda atende pelo apelido Dudi. Aos 62 anos, a então estudante hoje trabalha como professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Na carta, Borges conta que tinha dúvidas sobre se continuava a cursar engenharia ou se seguia o caminho da física. A opinião de Lattes foi decisiva. “Ele me respondeu e me incentivou a cursar física”, lembra a hoje docente, que ingressou no curso em 1981 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Na época, foi uma surpresa receber uma carta dele.”
Apesar disso, a professora afirma que seu percurso acadêmico sofreu desvios, levando-a, por fim, a dedicar-se às humanidades. “Interessante que, na própria carta, falei que tinha medo de me desencantar com a ciência. Em alguma medida, isso acabou acontecendo.” Borges pensou em estudar filosofia das ciências, mas acabou se especializando no pensamento de Immanuel Kant. Revendo sua conversa com Lattes, observa que sua preocupação com a ciência já existia na mente da garota de 17 anos. “Eu me vi como alguém que já tinha preocupações científicas. Na carta, eu menciono estar preocupada com a pesquisa científica no Brasil”, comenta.
Outros trechos da carta mostram parte da rotina de uma jovem estudante da época, como a preocupação com uma aula de Cálculo 2 no dia seguinte e a confidência de que um dos touros criados na fazenda de sua família tinha o nome de Píon, em homenagem à descoberta de Lattes. “Eu colocava nomes das partículas subatômicas nos touros. Havia o Píon, o Méson, o Alfa”, lembra com alegria.
Borges diz ainda que, depois de ter enveredado pelos caminhos da filosofia, deixou de acompanhar de perto os feitos científicos de Lattes. Em uma das suas frequentes mudanças de endereço, a carta enviada pelo físico em resposta a sua se perdeu. Entretanto a docente acredita que o exemplo dado pelo cientista a gerações de pesquisadores contribuiu para determinar suas escolhas de vida. “Certamente, ele me influenciou a seguir na ciência e, mais do que isso, ao conhecimento em geral. Nunca saí da universidade. Hoje sou uma pesquisadora.” O reencontro consigo mesma também a surpreendeu pela coragem de, ainda garota, escrever a um grande nome da ciência e conversar com ele como um amigo. “Provavelmente era o meu melhor papel de carta da época. E eu ainda disse: ‘Me escreva, hein?’ Fui bastante ousada”, diverte-se.