Redes sociais na guerrilha contra a extrema direita
Inspirada na Arte de Guerrilha, das décadas de 1960 e 1970, tese do IA usa TikTok para desenvolver arte política de resistência
Paula Penedo
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Antonio Scarpinetti | Arquivo Pessoal | Reprodução
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Quais estratégias artístico-políticas podem ser utilizadas em tempos de fragilização democrática? Foi com essa pergunta que a atriz Luciana Mizutani procurou uma forma de resistir à recente ascensão da extrema direita no Brasil. Buscando inspiração na Arte de Guerrilha, das décadas de 1960 e 1970, a pesquisadora criou seu próprio plano de ação e encontrou nas redes sociais a brecha necessária para exercer sua arte política. O resultado, oriundo de seu doutorado no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, foi vencedor da quarta edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog (Pradh) e pode ser conferido no perfil de Mizutani na plataforma de vídeos TikTok.
Cunhado pelo crítico, historiador e curador de arte Frederico Morais, o termo Arte de Guerrilha refere-se a uma vanguarda artística de resistência política que surgiu durante a ditadura militar brasileira. As obras desse movimento convidavam os espectadores à participação e às experimentações comuns na arte política da época, mas se diferenciavam por trazerem aspectos como a radicalização estética da violência, o chamado “craqueamento de sistemas”. Esse conceito significava a busca por brechas em sistemas existentes para fazer circular contrainformação e a transgressão de regras locais por meio das chamadas “cartas de alforria”.
“Tentei trabalhar em cima de cada uma dessas ideias, mas a da carta de alforria não deu muito certo por causa da pandemia”, relata a pesquisadora, que pretendia abrir uma filial, no Brasil, da instituição Monstro do Espaguete Voador (MEV). O objetivo era realizar uma defesa irônica da laicidade do Estado. “Esse plano foi por água abaixo com o isolamento. Então, resolvi focar no craqueamento de sistemas”, comenta.
Nas décadas de 1960 e 1970, o artista plástico Cildo Meireles criou a intervenção “Inserções em Circuitos Ideológicos”, que encontrava fissuras nos sistemas da época para fazer circular críticas à ditadura e às grandes corporações, de maneira independente de um controle centralizado. Em “Inserções em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cédula”, por exemplo, Meireles carimbou a provocação “Quem matou Herzog?” nas cédulas de cruzeiro que eram utilizadas pela população brasileira, conseguindo, dessa forma, escapar da censura do Estado. Já em “Inserções em Circuitos Ideológicos – Projeto Coca-Cola”, o artista gravou nas garrafas de vidro retornáveis do refrigerante frases como “Yankees go home” [Ianques, voltem para casa, em tradução livre] e gravou também tutoriais sobre como fazer coquetéis molotov.
Seguindo esses exemplos e o de outros artistas da época, como Artur Barrio, Antonio Manuel e Thereza Simões, Mizutani decidiu “craquear” as mídias digitais para fazer sua militância artística. Embora tenha traduzido textos do MEV e gravado alguns de seus ritos em podcast, a “surrealidade” dos discursos da extrema direita mostrou que era difícil competir com o que a realidade brasileira havia se tornado. Com isso, a artista passou a produzir vídeos de deboche político no TikTok. “O humor sempre me cativou em artistas políticos, pela capacidade de tomarem assuntos sérios sem proporem uma vivência pesada. O exemplo mais comum é o [Charles] Chaplin, e esse me pareceu um caminho interessante, porque nem todo mundo está disposto a reviver traumas, especialmente depois do [Jair] Bolsonaro”, explica.
Arte como resistência
A escolha pelo TikTok como plataforma para divulgação de sua arte deu-se porque essa ferramenta proporciona uma maior facilidade para a produção de vídeos e um maior alcance das publicações, permitindo que as postagens cheguem a mais pessoas e atinjam públicos diferentes. No entanto essa também é a rede social que possui a regulamentação mais restritiva. Se, por um lado, isso dificulta o trabalho de haters, por outro, também torna mais trabalhosa a abordagem de temas complexos como terrorismo, ditadura e estupro. Mizutani precisou criar uma linguagem própria para falar dessas questões, de forma a burlar o reconhecimento textual das plataformas.
A autora reconhece não ser a arte ou o deboche que acabam com uma ditadura, mas acredita que essas ferramentas podem ser empregadas na criação de memórias quando a justiça é falha e a história se torna mal contada. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o professor do IA Renato Ferracini, orientador da pesquisa, defende que os artistas têm muito claro que o poder de resistência da arte é uma atuação na micropolítica e que esse espaço não pode ser menosprezado. “A arte funciona como uma transformação underground, um trabalho de formiguinha. Mas é também um trabalho coletivo, de estar, pensar e produzir junto. E, a partir disso, as revoluções locais se darão com o tempo”, explica.
Por incentivo de Ferracini, a escrita da tese também foi feita de maneira distinta do texto acadêmico convencional, assemelhando-se à linguagem dos roteiros que Mizutani produzia para os vídeos, incluindo hashtags, narrações e comentários descontraídos. Por isso, o docente acredita que o prêmio é um reconhecimento não apenas do tema, mas do formato usado. “Esse é um prêmio que reconhece não apenas o trabalho da pesquisadora, a questão dos direitos humanos e da relação entre arte e redes sociais, mas também uma outra linguagem que foi utilizada. É uma potência de linguagem que não é o cânone dentro da academia. É a premiação de um experimento, e isso dá um aval para continuarmos experimentando”, comemora o docente.