Lira Neto retrata Oswald de Andrade como pensador do Brasil
Em entrevista, o biógrafo compartilha detalhes de sua pesquisa sobre o poeta, discute o processo de escrita e reflete sobre a importância do autor na cultura brasileira
Mariana Garcia
Texto
Antonio Scarpinetti | Cedae/Unicamp
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Não é mentira dizer que Lira Neto anda sonhando com Oswald de Andrade. Tampouco é de se surpreender. Desde 2020, o vencedor por quatro vezes do Prêmio Jabuti se dedica a pesquisar a vida do autor do Manifesto Antropofágico, motivo pelo qual sua presença tornou-se frequente no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (Cedae), do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Especialista em biografar figuras célebres e em trazer à tona pormenores sobre fatos esquecidos no tempo, o escritor, que finaliza o livro Oswald de Andrade – O Mau Selvagem, tem ministrado aulas para estudantes de graduação e pós-graduação do IEL, como professor especialista visitante.
Lira Neto retornou ao Brasil há pouco mais de um ano. Esteve em Portugal, onde concluiu seu doutorado em história, pela Universidade do Porto, e, como visitante do IEL, ministrou uma palestra aberta ao público, integrando o ciclo Biografias, realizado no próprio instituto. O escritor cearense fez a leitura de capítulos inéditos da obra que lançará em outubro, compartilhando, em primeira mão, seu olhar sobre Oswald de Andrade.
Na entrevista a seguir, Lira Neto revela por que decidiu biografar o escritor paulista, cuja vida já havia sido relatada em outros livros.
Jornal da Unicamp – Como surgiu a ideia de biografar Oswald de Andrade?
Lira Neto – Nós já temos duas biografias muito boas sobre Oswald, inclusive uma escrita pela professora Maria Eugênia Boaventura, aqui da Unicamp. Também há o livro da Maria Augusta Fonseca. Porém sempre digo que não existem biografias definitivas. A vida de uma pessoa não cabe em um único livro e pode ser olhada a partir de vários focos e perspectivas. Mais do que isso: uma biografia é sempre as perguntas que o presente faz a esse passado.
Estava morando no exterior e, quando olhamos o Brasil de fora, começamos a fazer algumas perguntas que não fazemos quando estamos no centro do furacão. Uma coisa que me pareceu muito clara foi que meus próximos trabalhos teriam de se concentrar nos grandes intérpretes do Brasil, mas não aqueles de que todos sempre se lembram: queria alguém ligado ao campo da cultura. De imediato, imaginei duas pessoas, um nordestino e um sudestino. Um povoou meu imaginário infantil: Luiz Gonzaga. Para mim, mais que um artista, trata-se de um símbolo de um grande intérprete da alma nacional, uma pessoa que pensou o Brasil. E, porque já moro em São Paulo há um tempo – desde 2001 –, queria alguém daqui. Inevitavelmente me veio a imagem de Oswald de Andrade.
JU – Por que inevitavelmente?
Lira Neto – Primeiro, porque também tenho uma relação antiga com ele. Hoje todo mundo é multimídia, mas, no meu tempo, os jovens tinham a pretensão de ser poeta. Sou da chamada geração da poesia marginal, aquela do mimeógrafo – xeroquei, mimeografei poemas para vender na porta do cinema e do teatro, nos barzinhos. Sou do final dos anos 1970, começo dos 1980, portanto de quando Oswald já tinha sido redescoberto pelos concretistas e depois pelos tropicalistas. Minha geração era um pouco herdeira desses movimentos, e ele era uma espécie de paradigma da poesia que a gente fazia. Poesia sintética, poesia pílula, poesia piada. No entanto, ao lê-lo fora do país, concluí que Oswald de Andrade é mais do que um poeta, um romancista: é outro intérprete, pensador do Brasil.
JU – Em que medida?
Lira Neto – Quando se fala em pensamento decolonial, em matriarcado, em combate ao patriarcalismo, isso tudo está na obra dele. Oswald tinha essa utopia do matriarcado em Pindorama e era um autor profundamente decolonial, no sentido de romper com a nossa influência cultural eurocêntrica e instituir um pensamento nacional – daí eu dizer que ele é um intérprete do Brasil.
E o que é interessante perceber são as contradições desse personagem tão genial. Como biógrafo, eu me interesso exatamente por isso. No caso de Oswald de Andrade, a grande contradição que me fascina é como esse artista tão maravilhoso e extraordinário, esse pensador tão brilhante, seria hoje, na sua vida privada, absolutamente cancelado por ser alguém com um comportamento muito pouco ortodoxo. A todo momento. Esse homem, que era um anarquista em 1922, vira um comunista em 1930 e, depois, um niilista absoluto. E morre alimentando uma utopia do matriarcado, um pensamento nacional.
JU – O que pode nos contar sobre o livro?
Lira Neto – Vou adiantar que já tem título e subtítulo. Vai se chamar, logicamente, Oswald de Andrade, e o subtítulo é: o mau selvagem. Mau com “u”, em oposição ao bom selvagem. Ele é um personagem fascinante. Esse é um livro que está me dando muito trabalho, até por conta dessas delicadezas, de determinadas questões que precisam ser colocadas e estão sendo colocadas. Simplesmente não faço um julgamento moral. Meu trabalho é compreender o homem e suas circunstâncias, o homem dentro do seu tempo, com as limitações do seu tempo. Como um ser humano.
Oswald sempre foi um homem tão viril e explosivo. A vitalidade era sua principal característica. Quem o conheceu contava que seus olhos brilhavam. O Pedro Nava tinha uma descrição maravilhosa sobre ele, dizia: “Como consegue seduzir pela conversa!”. Já o Manuel Bandeira, em uma carta ao Mário de Andrade, escreveu algo que acho fantástico. Depois de mais uma piada de mau gosto do Oswald em relação ao Mário, ele concluiu: “Em relação a Oswald de Andrade, só tem duas saídas. Ou ser mais irônico que ele ou se render a ele”. É esse sujeito que eu quero retratar.
Oswald era um contestador, um homem que brigava pelo que acreditava e, às vezes, brigava pelo que não acreditava, pelo prazer de brigar – e se intrigou com todo mundo. Politicamente incorretíssimo, às vezes defendia pontos de vista nos quais, inclusive, não acreditava, simplesmente para provocar a antipatia ou pelo menos a reação dos outros. E a vida cobra um preço.
Marília, sua filha que mora aqui em Campinas, conta histórias terríveis da infância: o pai tinha de trocar de endereço a todo momento porque não conseguia pagar o aluguel; ou vendia um quadro remanescente da coleção para conseguir o dinheiro para o almoço. Isso mostra como Oswald morreu absolutamente desprezado por todos, brigado com todos. Sozinho e pobre. Justo ele, que vinha de uma família riquíssima, que possuía praticamente metade de São Paulo, os bairros de Pinheiros, Pompeia e Perdizes.
No entanto Marília também compartilha uma história genial. Em 1968, seu irmão disse que iam encenar uma peça do pai, chamada O Rei da Vela, e a chamou para vê-la. Aí Marília falou: “Vou, mas poxa! Vou testemunhar mais uma vez que meu pai é um fracassado”. E foi ao teatro com o irmão. A montagem era aquela feita pelo José Celso Martinez Correia. Quando Marília assistiu à peça – o pai já estava morto fazia 14 anos –, ela disse: “Meu pai é um gênio. Olha o que meu pai fez!”. Ficou fascinada.
JU – Quanto falta para terminar de escrever o livro?
Lira Neto – Estou na parte mais dolorosa de toda a biografia, aquele momento inevitável: a hora em que é preciso matar o personagem. Biografia não tem spoiler, todos sabem que o biografado morre no final. No caso de mortes trágicas, um pouco como é a do próprio Oswald de Andrade, em que ele sofreu muito, o biógrafo também sofre.
É uma hora sempre traumática para o escritor, porque a gente se envolve por anos. Comecei a escrever esse livro há quase quatro anos. Não existe aquela coisa positivista e asséptica de que o sujeito não se mistura com o objeto de pesquisa. Há um envolvimento, pois não se está fazendo uma assepsia de um cadáver. Você compartilha das emoções do seu biografado, das hesitações, das alegrias, das tristezas, dos sonhos, dos medos. Sonho com meus biografados. Se eu não sonhar, há alguma coisa de errado com a pesquisa. Tem de sonhar, ter pesadelos com o personagem.
JU – A data de lançamento do livro tem algum significado especial?
Lira Neto – Sim. Ele morreu em outubro de 1954, portanto o livro será lançado no mês em que sua morte completará 70 anos. Em articulação com outro evento que está sendo produzido e do qual sou consultor, a Ocupação Oswald Andrade, no Itaú Cultural de São Paulo.
Quando falei que estava pesquisando para fazer a biografia de Oswald, muitos a migos me disseram que eu tinha perdido o centenário da Semana de 1922, ao que sempre respondi que isso tinha sido de propósito. Meu desejo foi realmente descolar sua biografia das comemorações do centenário de 1922, porque acredito que ele é muito maior do que isso.
Penso que, como um episódio, a Semana de 1922 talvez tenha tido pouca importância dentro da sua trajetória pessoal. O próprio modernismo, para mim, é um detalhe, um capítulo da biografia. Embora Oswald de Andrade tenha sido muito associado ao modernista que era irreverente – claro que ele foi isso –, sua vida foi muito maior. Inclusive com muitos solavancos e muitas coisas, anteriores e posteriores, bastante relevantes.
JU – Qual a importância do Cedae na pesquisa para este trabalho?
Lira Neto – A parte maior do acervo do Oswald está no Cedae. Trata-se de um arquivo maravilhoso, que tem sido fundamental para o meu trabalho. É claro que precisei buscar outras fontes, afinal uma biografia não se faz com um único arquivo, mas calculo que entre 70% e 80% do livro está sendo concebido dentro do Cedae. Aqui fiz minha pesquisa mais pesada. Há cartas, cadernos em que ele escrevia desde anotações pessoais até seus próprios livros. Até mesmo diários das namoradas – e ele foi um homem de muitas mulheres.
O Cedae foi muito importante para que eu descobrisse, primeiro, a pré-história oswaldiana. Sua infância, a adolescência, a juventude como estudante de direito. Foi interessante pesquisar e encontrar esse período de formação do homem e do escritor, assim como perceber o Oswald de Andrade dos anos 1930, 1940 e princípios dos anos 1950.
JU – Que outras fontes de pesquisa você consultou para o livro?
Lira Neto – Para biografias, pesquiso muito a imprensa da época, portanto a hemeroteca da Biblioteca Nacional é sempre uma fonte fundamental. Também consultei as correspondências que estão no Instituto de Estudos Brasileiros [IEB] da Universidade de São Paulo [USP] e outros arquivos, como o do Olegário Mariano, em Recife, e mais alguns pessoais que estão espalhados Brasil afora. Todos foram absolutamente imprescindíveis para compor esse mosaico. Digo que escrever um texto é recuperar a essência da palavra texto. Texto vem de textura, de tessitura, de fios trançados. Então, escrever uma biografia é pegar vários fios, de várias procedências e várias cores que, aparentemente, isolados, não significam nada. Mas, quando se faz o trançado, quando se estabelece essa tessitura, você constrói uma figura, um painel, uma padronagem. E aí consegue mostrar para as pessoas o que é esse painel.
JU – Do que trata seu curso para os alunos do IEL?
Lira Neto – Primeiro, trabalho o que é escrever sobre a trajetória de outras pessoas. Traço um breve panorama histórico, uma espécie de biografia da biografia, desde a Antiguidade, para que entendam por que por tanto tempo a escrita biográfica foi considerada um gênero menor, quase bastardo, que não teria o rigor ou a relevância de outros estudos historiográficos. Abordo a narrativa como escrita legítima da história, recuperando a capacidade de pensá-la e contá-la, além de escrever sobre ela e analisá-la. Inclusive, resgatando o gênero para estudos acadêmicos.
O segundo momento é sobre como fazer a pesquisa criativa e saber ler documentos muito duros – com os quais invariavelmente o pesquisador se depara – para tirar deles as cores, as texturas, os sabores e os sons de uma época. Depois, trabalho sobre como transformar essa pesquisa, que se propõe criativa, em um texto igualmente criativo. Não como sinônimo de invenção, mas no sentido de seduzir o leitor.
JU – Como está sendo a experiência com os alunos?
Lira Neto – O interessante é que a turma é bastante heterogênea, por ser ministrado [o curso] para o pessoal do mestrado, doutorado e graduação e por haver pessoas de diversas áreas, como jornalismo, história e linguística, que chegam com repertórios e contribuições diferentes. Os níveis de idade também variam, o que enriquece muito a conversa.
Estamos já na fase final do curso. Os alunos estão fazendo um perfil biográfico, de 20 páginas. Tiveram a liberdade de escolher suas personagens, e têm saído coisas muito interessantes. É um pessoal extraordinário.
JU – Você fala em trabalhar a narrativa como escrita legítima da história. Como vê essa questão nos dias atuais?
Lira Neto – Nos centros mais avançados, e aqui incluo a Unicamp, a tensão e a dicotomia que havia entre historiadores, acadêmicos e outros profissionais que escrevem sobre história – como jornalistas e biógrafos – já não fazem sentido. Penso que os jornalistas perceberam que precisam melhorar seus métodos de pesquisa e investigação e ter um rigor maior no trato com a documentação. Por outro lado, os historiadores notaram que precisam se comunicar para além da universidade.