Reinterpretando o marxismo no Brasil dos anos 1920
Dissertação de mestrado explora a influência de Brandão, Pedrosa e Prado Jr. no contexto histórico e social do país
Marina Gama
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AEL-Unicamp | Reprodução | Cedem/Cemap-Interludium
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O entendimento que três grandes nomes do marxismo tinham do Brasil na década de 1920 pode parecer um tema bastante pesquisado. No entanto, ao ser examinado a partir de perspectivas e metodologias distintas daquelas já utilizadas em outros estudos, é possível desvendar aspectos importantes do pensamento dos intelectuais Octavio Brandão, Mário Pedrosa e Caio Prado Jr. para a história da formação política brasileira. Esse foi o desafio que Juliana Rodrigues Alves assumiu em sua dissertação de mestrado em Ciência Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), orientada pelo professor André Kaysel, ao mergulhar nos arquivos documentais sobre o trio.
Os três pensadores, cada qual com sua origem e formação anterior, estão entre os primeiros a tentar interpretar o Brasil sob a perspectiva marxista − que, aos poucos, se introduziu no país durante os anos 1920. Em comum, está o fato de terem integrado as fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922.
Brandão ingressou no partido no mesmo ano de sua fundação. Em um período em que o anarcossindicalismo predominava na militância operária brasileira, o intelectual teve um papel fundamental na expansão do marxismo entre as camadas trabalhadoras – por exemplo, foi responsável por traduzir para o português o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, além de indicar leituras, iniciando a disseminação e compreensão da teoria marxista. Seu trabalho, no entanto, não se reduzia à tradução literal dos textos teórico-políticos vindos da Europa. A atuação de Brandão foi marcada por um esforço para facilitar a leitura e a compreensão desses escritos no contexto histórico, político e social brasileiro da época.
“Ele foi responsável por formular algumas das ideias que permearam o horizonte do movimento comunista brasileiro por alguns anos, pelo menos até 1935”, explica Alves. Uma das abordagens originais de Brandão, levantada pela pesquisadora, foi a discussão sobre a questão agrária e industrial no Brasil. Enquanto o pensamento predominante na época enfatizava a necessidade de uma revolução democrática burguesa antes de se alcançar o socialismo, Brandão via o processo como contínuo em seu livro Agrarismo e Industrialismo, de 1924.
Segundo Kaysel, “a resposta a que Brandão chega, enfatizada por Juliana em seu trabalho, é a de buscar com a pequena burguesia uma aliança, ainda que temporária, para poder, digamos, quebrar o predomínio do latifúndio e do capital estrangeiro na sociedade e no Estado brasileiro”. Na visão de Alves, Brandão “possuía um ensaio original de interpretação da realidade, que não estava simplesmente seguindo fórmulas prontas, como geralmente se diz a respeito dele”.
Pedrosa, por sua vez, ingressou no PCB três anos após Brandão. Pouco tempo depois, foi enviado para a Europa a fim de aprofundar seus estudos sobre o marxismo. Na Alemanha, o intelectual se posicionou mais à esquerda e aderiu ao trotskismo. Ao retornar, fundou o primeiro grupo trotskista brasileiro com dissidentes do PCB.
Enquanto Brandão defendia a existência de uma estrutura feudal no país, Pedrosa adotava uma perspectiva mais matizada, argumentando sobre a existência de um “feudalismo particular”. Essa distinção reconhecia as particularidades da formação econômica brasileira, especialmente em relação à sua posição no contexto do capitalismo internacional. “Pedrosa afirma que o Brasil sempre organizou sua produção para os mercados externos. Por isso, não faz sentido falar, por exemplo, de uma disputa entre imperialismo inglês ou americano. Para o intelectual, um passou a ser o outro e ambos estavam presentes. E o que importa é que, no Brasil, o capitalismo se desenvolveu de maneira agrária, mas isso não significou feudalismo, e sim uma particularidade da formação colonial”, esclarece Alves.
Prado Jr., o mais jovem entre os três intelectuais estudados, ingressou no PCB em um contexto diferente dos de Brandão e de Pedrosa. De acordo com Alves, o partido já havia endurecido suas posições quando Prado Jr. passou a integrá-lo. Naquela época, o pensador já tinha experiência de militância no Partido Democrático, além de vir de uma família muito rica de cafeicultores. Na dissertação, Alves destaca a posição contrária de Prado Jr. em relação à interpretação sobre o feudalismo no Brasil oferecida por intelectuais como Brandão e Pedrosa. “Ele afirma claramente que não existe feudalismo no país na obra Evolução Política do Brasil, que essa ideia não tem o menor cabimento, porque não dá para espelhar o desenvolvimento brasileiro no europeu. Ele compra uma briga nesse sentido com o partido”, afirma.
Linha e metodologia
O trabalho de mestrado de Alves insere-se em uma das quatro linhas de pesquisa oferecidas pela pós-graduação em Ciência Política do IFCH: teoria e pensamento político. De acordo com Kaysel, essa linha volta-se para a história do pensamento político, com foco em compreender ideias, ideologias e discursos políticos em perspectiva histórica. No mestrado, Alves explorou diferentes formas de pensar sobre política, especialmente a maneira como os conceitos são usados e interpretados ao longo do tempo, inspiradas nas ideias de B. F. Skinner sobre contexto linguístico e nos conceitos de “tradução” e “tradutibilidade” de Antonio Gramsci. Esse último afirma que a tradução está ligada à cultura. A pesquisadora explica que tratar conceitos elaborados em uma determinada língua implica considerar, no momento da tradução, o meio cultural em que surgiram.
O desafio, conta Alves, foi trabalhar com autores clássicos, que já foram muito estudados. “Isso envolve lidar com todas essas interpretações, pesquisas excelentes, documentais amplas e profundas, que já existem sobre eles. Só que algumas acabam elaborando alguns lugares-comuns também”, considera. Outro destaque do seu trabalho é o fato de seu mestrado ter envolvido a pesquisa de fontes documentais particulares a partir de três arquivos: o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp, o Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP).
Esse trabalho minucioso, segundo Kaysel, permitiu a Alves “matizar as leituras, evitar os anacronismos e tentar retomar essas origens do que veio a ser a tradição marxista brasileira”. Contudo o trabalho de Alves não se encerra aqui. A dissertação de mestrado preparou o terreno para seu doutorado, durante o qual a pesquisadora mergulhará mais profundamente na obra de Pedrosa, novamente com o professor Kaysel como orientador.