Mão de obra paraguaia na indústria têxtil paulista
Realidade de migrantes internacionais é esmiuçada em tese de doutorado desenvolvida no IFCH da Unicamp
Adriana Vilar de Menezes
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Antoninho Perri | Rafael Almeida/MPT | Paulo Pinto/Agência Brasil
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Amplamente divulgados nas redes sociais, os anúncios de vagas de emprego voltadas a migrantes internacionais nas oficinas de confecção de roupas de São Paulo são escritos, geralmente, em espanhol, já que boa parte dessa mão de obra vem da Bolívia, do Peru e do Paraguai. As condições não são omitidas: é preciso disposição para muitas horas de trabalho, o pagamento é, muitas vezes, por produção e nem sempre há disponibilidade de cama no local. Não há registro profissional nem exigência de documentação regular de migrante. Oficialmente, trata-se de uma força de trabalho “inexistente”, invisibilizada dentro das oficinas de trabalho informal, das quais órgãos como o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) frequentemente resgatam trabalhadores em condições análogas à escravidão. Dentro dessa cadeia inserida em um sistema global, o formal e o informal se confundem, mas, em algum momento, o que se produz nas oficinas formaliza-se e chega ao consumidor legalmente.
Mergulhando nessa realidade, e com foco nos trabalhadores paraguaios, o pesquisador Paulo Mortari Araújo Correa desenvolveu sua tese de doutorado, “Migrações paraguaias à Região Metropolitana de São Paulo e inserção no setor de confecção têxtil nas primeiras décadas do século XXI”, elaborada no Programa de Pós-Graduação em Demografia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação da professora Rosana Baeninger. As 572 páginas do texto evidenciam a capacidade de agenciamento e a ambiguidade de redes de relacionamento, que normalmente são organizadas na internet. Ao mesmo tempo que recrutam e normalizam a exploração do trabalhador, esses espaços também conectam e protegem essas pessoas, oferecendo acolhimento às comunidades de migrantes vindas de países vizinhos.
“A capacidade de agenciamento da rede se constitui nessa inserção do migrante sem documentos e sem registro de trabalho no setor de confecção. A rede faz parte de uma estrutura informal de recrutamento, mas opera em um sistema global da indústria da moda. O processo se formaliza e a produção se torna legal ao chegar a uma loja de roupa. A rede é ambígua em muitos aspectos”, explica Correa, que dedicou sua pesquisa a todos os paraguaios migrantes.
Lógica de descarte
O trabalho de migrantes paraguaios ou de outras nacionalidades nas confecções, em sua maioria, não tem vínculo, não garante direitos, a rotatividade é muito grande e a reposição dessa força de trabalho é muito fácil e rápida, descreve o pesquisador. “O sistema é insustentável, inclusive materialmente.” Correa cita o enorme volume de descarte de roupas que acontece, por exemplo, no deserto do Atacama, no Chile – algo que já motivou protestos realizados por organizações não governamentais (ONGs) internacionais. “A moda fluida e rápida gera o descarte e antecipa a obsolescência dos materiais no setor. Isso é insustentável e as relações laborais também se inserem nessa lógica. Trata-se de uma mão de obra cada vez mais terceirizada, ‘quarterizada’ ou ‘quinterizada’”, diz Correa.
“Globalmente, esse setor está inserido em uma sociedade de consumo e só tende a crescer”, explica Baeninger. Correa concorda, afirmando que existem vários fatores que tornam a oficina uma unidade de produção integrante de uma estrutura global. “A fronteira entre o formal e o informal é muito tênue. Essa é uma característica do funcionamento dessa cadeia. Tudo isso mostra a complexidade do sistema”, diz o autor. Na sua análise, destaca que as redes estão inseridas também no contexto de origem das pessoas, cuja realidade é de restrição de oportunidades de subsistência. “É esse trabalhador que vai responder à demanda com sua força de trabalho precarizada, mal remunerada, informal e rotativa.”
A cadeia produtiva faz parte de um sistema global de produção de forte competitividade entre grandes grupos que querem ampliar suas margens de lucro, algo obtido também por meio da limitação dos direitos do trabalhador. As oficinas de costura ocupam o setor mais baixo dessa hierarquia produtiva. Nessas condições, o trabalhador tem menos possibilidades de reivindicar um preço maior por peça produzida ou melhores condições de trabalho no seu ambiente.
Invisíveis
Não há registros no MTE da atividade que acontece nas oficinas de costura informais dos polos de moda rápida de São Paulo. As pessoas que trabalham nas oficinas também “não existem” oficialmente, porque em sua maioria são migrantes em situação de ausência de documentação, cujo trabalho é explorado sem que haja controle – muito embora a noção de invisibilidade, segundo Baeninger, esteja mais associada à exploração e às condições precárias de trabalho nas oficinas de costura do que à falta de documentação.
Em 2022, os migrantes mais resgatados em condições análogas à escravidão foram os oriundos do Paraguai – 101 trabalhadores, segundo dados divulgados em 2023 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE. Esse número é quase três vezes maior que o total de resgatados em 2021 (35) e mais de dez vezes superior à cifra de 2020 (9). Entre 2006 e 2022, o Estado da federação que teve mais trabalhadores paraguaios resgatados nessas condições foi Mato Grosso do Sul – 51% do total –, com São Paulo em segundo lugar. “Os casos de trabalho análogo à escravidão não são uma exceção dentro dessa cadeia”, pontua Correa.
A trajetória de um migrante paraguaio até chegar a São Paulo, constatou o pesquisador, é viabilizada pela própria rede à qual esse trabalhador está conectado. Para conseguir um primeiro lugar para dormir e ter sua inserção na confecção, a rede se responsabiliza por várias etapas do projeto migratório, incluindo as remessas internacionais de dinheiro para os familiares que ficaram no Paraguai, às vezes cuidando de um neto ou um filho. “A pessoa não precisa ter qualificação. Isso é um perfil que foi mudando também ao longo do tempo. Os próprios colegas na oficina vão instruindo essa nova pessoa.”
Pulverização
A pulverização das unidades produtivas não é uma particularidade da costura. “Tivemos o fordismo, no qual tudo se produz dentro de uma unidade, uma grande fábrica. O sistema produtivo foi se dispersando e se modificando. Na costura, isso é muito claro. Trata-se de pequenas unidades produtivas, muitas vezes familiares, que abrem uma oficina dentro de casa para costurar, chamam um primo que está sem trabalho no Paraguai, por exemplo”, afirma Correa. Esse espalhamento das unidades também reduziu muito a capacidade de sindicalização dessas pessoas e de reivindicação de direitos de greve, de contestação das condições de trabalho. “Afinal, você vai brigar com seu parente que te empregou? Ou com um tio que também está em uma posição que não consegue reivindicar grandes mudanças?”, indaga o pesquisador.
Para Correa, o Paraguai ainda é um país pouco estudado, apesar de estar no coração da América do Sul e ser vizinho do Brasil. Em sua pesquisa, entrevistou 12 paraguaios migrantes, entre eles um monolíngue, que só falava guarani. “As entrevistas me permitiram reconstruir uma história que não estava clara e que eu não tinha encontrado em outras fontes.” Uma das descobertas do pesquisador foi a cidade paraguaia de Itá, origem das primeiras migrações para São Paulo no fim dos anos 1970. A cidade fica a cerca de 50 km da capital do Paraguai, Assunção, e tem uma tradição reconhecida pela alfaiataria. Foi a migração coreana para o Brasil que colocou esse município na história da migração paraguaia e no setor de confecção paulista.
Os coreanos até hoje são muito reconhecidos no setor. Uma visita a bairros como Brás ou Bom Retiro revela muitas lojas e confecções de coreanos e seus descendentes. Nos anos 1960, o Brasil firmou um convênio com o governo sul-coreano para a vinda de imigrantes, principalmente para o Estado de São Paulo. Essa seria uma migração rural, rumo ao interior do Estado, para desempenhar atividades agrícolas. “De alguma forma, essa migração não saiu como era esperado para os brasileiros nem para os migrantes coreanos, que enfrentaram uma série de dificuldades, desde problemas de infraestrutura nas regiões afastadas dos grandes centros até o fato de muitos não terem conhecimento sobre a prática agrícola.” Naquele momento, o Brasil passava pela revolução verde, com a introdução de sementes híbridas e maquinário moderno, uma agricultura que não era praticada na Coreia.
Esse insucesso da migração, diz Correa, fez muitos coreanos migrarem para a cidade de São Paulo e se inserirem no comércio, muitos no setor de confecção, uma atividade que não demandava muita proficiência no idioma e que poderia ser desenvolvida em família. Esses migrantes então compraram suas primeiras máquinas e seguiram o exemplo de outros grupos populacionais presentes no setor têxtil de São Paulo: os italianos, os sírio-libaneses e os judeus.
Os coreanos se firmaram como uma grande referência e passaram a ter postos de maior domínio dentro dessa cadeia produtiva, até começarem a demandar também força de trabalho para as suas oficinas de costura. Nesse meio tempo, o Brasil restringiu a emissão de vistos para os coreanos – devido ao insucesso da inserção no campo – e essa migração ficou mais difícil. Para conseguirem chegar à cidade de São Paulo, os asiáticos começaram a fazer o trajeto pelo Paraguai e pela Bolívia. Nesse trânsito, os migrantes coreanos também foram construindo as suas redes, às quais recorreram em algum momento para buscar a força de trabalho de que precisavam nas suas oficinas em São Paulo.
Exploração sempre presente
A história permite que se compreenda de que forma a exploração laboral esteve sempre presente, explica Correa. “Eu entrevistei alguns paraguaios que trabalharam na transição dos anos 1970 para os anos 1980. As possibilidades de denúncia dessa situação eram muito complicadas, porque existia o medo da deportação, por geralmente serem migrantes sem documentação. Naquela época, ainda não existia o acordo do Mercosul que facilitou um pouco esse trânsito.” São esses migrantes latino-americanos que passam a ter as suas oficinas e a trabalhar para migrantes coreanos, que já tinham as suas grifes e as suas lojas. “Há um traço de precarização desde o começo e isso chegou ao século 21 dessa forma”, diz o pesquisador, que recuperou essa história por meio das entrevistas, porque não há fontes oficiais sobre essa informalidade.
“A ausência de dados também abre portas e caminhos de investigação. A tese tenta responder um pouco a isso. Desenvolvemos um trabalho mais qualitativo, com entrevistas, para entender como se dá essa inserção. Mas também abrimos as suas portas para, por exemplo, um dimensionamento melhor em termos de volumes: quantos paraguaios? Qual o percentual de paraguaios nas oficinas?”, questiona o pesquisador. Baeninger destaca a qualidade do trabalho desenvolvido por Correa. “Ele foi trazendo uma agenda de pesquisa importante, e todo pesquisador cuidadoso traz assuntos novos que vão alavancar outros estudos adiante”, diz a orientadora. “Também é importante que a tese tenha mostrado como o setor faz parte da cadeia global. Ao mesmo tempo que o Brasil processava essa vinda de coreanos, por exemplo, os Estados Unidos e a Argentina faziam o mesmo.” De acordo com a orientadora, do ponto de vista do Observatório das Migrações de São Paulo, o trabalho mostra como o Brasil é um país de trânsito migratório, porque muitos paraguaios estão em território brasileiro com a intenção de voltarem para seu país.