Indígenas são mais vulneráveis a câncer de colo do útero
Pesquisa destaca necessidade de políticas específicas para a prevenção do câncer de colo do útero nessas mulheres
Helena Tallmann
Texto
Antonio Scarpinetti
Fotos
Apesar de prevenível, o câncer de colo do útero ainda oferece grandes riscos à saúde feminina, sendo a quarta maior causa de mortalidade por câncer entre brasileiras. A criação de políticas públicas para remediar a situação é um desafio, especialmente no caso de populações com dificuldade de acesso a serviços de saúde. Uma pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, premiada na quarta edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog, contribui para mudar esse cenário ao comprovar a maior vulnerabilidade das mulheres indígenas ao desenvolvimento da doença – o tipo de câncer mais letal nessa população –, estabelecendo recomendações específicas para esse grupo.
A pesquisa, vencedora na categoria Ciências biológicas e da saúde, reuniu o maior registro brasileiro de dados dentro dessa temática, contemplando mais de 30 etnias indígenas. Foram analisados 3.231 exames preventivos de Papanicolaou de mulheres desses grupos, coletadas pela organização não governamental Expedicionários da Saúde, no período de 2007 a 2019. Trata-se de um teste preventivo realizado para detectar alterações no colo do útero, nomeado em homenagem ao criador do método. Os dados foram comparados com os resultados de mulheres não indígenas que tiveram as suas amostras coletadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na região de Campinas nos anos de 2007, 2011, 2015 e 2019 – um total de 698.415 testes. As informações são provenientes do banco de dados do Laboratório de Citologia (Labcito) do Caism – Hospital da Mulher Professor Dr. José Aristodemo Pinotti da Unicamp.
O trabalho compõe a dissertação de mestrado da médica Iria Ribeiro Novais, sob orientação da professora da FCM Diama Bhadra A. P. do Vale. “A grande quantidade de material dá uma sustentação importante para as evidências encontradas, que reforçam a necessidade de um olhar atento das autoridades de saúde para esse problema. Todos esses fatores têm grande impacto nas comunidades indígenas. Com esse conhecimento, a própria população indígena pode reivindicar um serviço de saúde melhor, e os órgãos prestadores podem aprimorar o atendimento”, disse Novais. Vale integra a equipe da Unicamp responsável por revisar o documento do Ministério da Saúde que determina as diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer de colo do útero. “Esperamos que nosso estudo dê suporte para recomendações mais específicas para esse grupo que consideramos vulnerável.”
Do campo para o laboratório
Desde 2010, Novais é médica voluntária na organização Expedicionários da Saúde, que realiza de duas a três campanhas anuais na região amazônica. Dentro dos atendimentos ginecológicos, a pesquisadora participou de diversas coletas de citologia, posteriormente encaminhadas para o Labcito, por meio de uma parceria entre a entidade e a Universidade. Foi observando, na prática, a discrepância nos exames de mulheres indígenas e não indígenas que a cientista percebeu a necessidade de analisar os dados com maior profundidade.
Um dos principais achados do estudo foi a ocorrência mais frequente de lesões pré-câncer nas mulheres indígenas, em diferentes faixas etárias. “Esse é um dado relevante, porque reforça a importância de se estabelecer políticas específicas para esse grupo”, ressaltou Vale. Além disso, as chamadas lesões de alto grau, com chances de evoluir para um câncer, mostraram-se de três a quatro vezes mais prevalentes nas indígenas, tanto para quem realizou o teste pela primeira vez como para quem já havia realizado o exame anteriormente. Com isso, foi possível concluir que o programa de rastreamento por meio do Papanicolaou não é eficiente, com baixo impacto na proteção das mulheres indígenas no caso do câncer de colo do útero.
A hipótese das pesquisadoras é que, apesar de receberem o diagnóstico, as indígenas têm dificuldade de acesso ao tratamento, por peculiaridades geográficas e culturais. As pacientes são referenciadas para atendimento nas zonas urbanas e, geralmente, deslocam-se com todo o núcleo familiar, podendo esperar meses pelo tratamento. “Existem também questões de desconhecimento mais aprofundado da patologia, o que faz com que essas mulheres considerem que existem demandas familiares mais urgentes”, argumentou Novais. Para Vale, o sistema de saúde deve agir na busca ativa dessas mulheres, a exemplo do que já acontece no Território Indígena do Xingu. No geral, o exame somente é feito quando a mulher procura o serviço de forma voluntária. “O sistema de saúde indígena deve identificar essas mulheres e garantir que aquelas com lesões precursoras sejam tratadas o mais brevemente possível.”
As lesões de baixo grau, por sua vez, mostram a presença do papilomavírus humano (HPV) no colo do útero, mas não necessariamente indicam risco aumentado de câncer. O padrão de distribuição desse tipo de lesões demonstrou, no entanto, que as mulheres indígenas têm maior exposição ao vírus em idades mais avançadas, uma constatação não esperada pelas pesquisadoras. A recomendação, nesse caso, é ampliar a faixa etária da vacinação contra o HPV nessa população. De modo geral, o Programa Nacional de Imunizações – Vacinação preconiza a imunização de meninos e meninas de 9 a 14 anos em esquema de duas doses. “A vacinação é muito efetiva para a prevenção do câncer de colo do útero, mais do que o rastreamento”, destaca Vale.
Tendo concluído seu mestrado, Novais agora desenvolve uma tese de doutorado focada em novos modelos de tratamento do câncer de colo do útero para populações em localidades remotas. Atualmente, o tratamento mais comumente utilizado, denominado conização com alça – em que as células cancerígenas são removidas cirurgicamente –, deve ser realizado por profissional médico capacitado em local próximo a uma referência hospitalar. Existem, porém, outros procedimentos denominados destrutivos, com baixo risco de complicações e que podem ser realizados por profissionais da enfermagem mais perto das comunidades. “Queremos testar tecnologias, já utilizadas em outros países de baixa renda, que possam facilitar o acesso ao serviço”, falou Vale. O estudo tem o potencial de beneficiar também outras populações indígenas na América Latina.