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Saúde mental para atletas e treinadores de esportes de alto rendimento: pesquisa da Unicamp foi uma das primeiras a analisar transtornos mentais e fatores protetivos simultaneamente

Saúde mental para atletas e treinadores de esportes de alto rendimento: pesquisa da Unicamp foi uma das primeiras a analisar transtornos mentais e fatores protetivos simultaneamente


Referências em suas respectivas modalidades, esses três atletas olímpicos chegaram ao esgotamento emocional. Fatores como a rotina estressante de treinamento, a pressão pela vitória e casos de assédio moral e sexual impactaram seus desempenhos e ameaçaram sua continuidade no esporte. Longe de serem casos isolados, as histórias de Biles, Osaka e Phelps revelam um problema cada vez mais frequente no esporte de alto rendimento: o grande número de casos de depressão, de ansiedade e de transtornos alimentares. Esses relatos evidenciam a urgência em desenvolver estratégias para cuidar da saúde mental desses profissionais.

“A saúde mental é um componente importante para o desempenho no esporte de alto rendimento e algo que deve existir anteriormente a ele. Se você não tem boas condições mentais, sua preparação pode ser muito complexa”, explica o pedagogo e profissional de educação física Alexandre Conttato Colagrai. “Muitas vezes, o atleta pode fugir de suas questões emocionais se entregando exageradamente ao treinamento, e isso parece interessante porque mostraria a capacidade daquela pessoa. Mas, na verdade, ela está fugindo de algo com o qual não consegue lidar. O atleta desmorona quando ocorre uma falha no desempenho ou uma lesão, e a recuperação fica ainda mais difícil”, argumenta o especialista, que concluiu seu doutorado sobre o tema na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp.

A pesquisa de Colagrai, desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos em Psicologia do Esporte e Neurociências (Gepen), da FEF, investigou a saúde mental de atletas e treinadores no esporte brasileiro de alto rendimento, compreendido como as atividades esportivas praticadas em nível profissional, envolvendo atletas que se dedicam intensamente aos treinamentos visando a competições nacionais e internacionais. Para tanto, foram cruzados dados quantitativos e qualitativos dessas duas classes profissionais – levantados por meio de questionários anonimizados e de entrevistas individuais –, com o objetivo de identificar os agentes causadores dos sintomas de transtornos mentais e os fatores protetivos que esses trabalhadores empregam para lidarem com as dificuldades enfrentadas.

De acordo com os resultados do estudo, 3% dos atletas que participaram da pesquisa apresentaram sintomas de depressão grave, e cerca de 30% relataram sintomas leves ou moderados. Outros 5% apresentaram taxas graves de ansiedade, enquanto 16% sofrem com sintomas moderados do transtorno. Em relação a problemas com sono, 8% dos atletas afirmaram que precisavam tomar remédios para dormir. Além disso, 24% dos participantes relataram já terem pensado em cometer suicídio, e outros 6% efetivamente tentaram tirar a própria vida. Por outro lado, 14% relataram ter sofrido abuso sexual – porcentagem que, lembra o pesquisador, pode estar subnotificada, devido ao tabu existente em torno do tema.

Segundo Paula Teixeira Fernandes, orientadora de Colagrai e coordenadora do Gepen, o objetivo da pesquisa não é criticar a pressão dos esportes de alto rendimento, algo inerente a essa prática profissional, e sim colaborar para desenvolver mecanismos que permitam ao atleta se proteger dessa pressão e, consequentemente, desempenhar melhor seu trabalho. “Sempre dizemos que não é possível ter um atleta bom se não houver uma pessoa saudável ali. Um psicólogo ajuda, sem dúvida alguma, mas não é suficiente. É necessário que a equipe inteira compre essa ideia, treinadores, fisioterapeutas, auxiliares, presidente e até mesmo a torcida. Temos que ensinar as pessoas a torcerem, porque elas xingam quando o atleta mais precisa de apoio”, explica.

Alexandre Conttato Colagrai, autor da pesquisa: comunidade esportiva de alto rendimento apresenta resistência a falar sobre transtornos mentais
Alexandre Conttato Colagrai, autor da pesquisa: comunidade esportiva de alto rendimento apresenta resistência a falar sobre transtornos mentais

Saúde mental dos treinadores

Além de investigar a saúde mental dos atletas, uma das principais inovações do estudo foi focar a saúde mental dos treinadores que atuam em esportes de alto desempenho, algo inédito no contexto brasileiro. Esses profissionais são essenciais para a manutenção da integridade emocional da equipe e passam por diversos tipos de estresse – como problemas organizacionais e administrativos e sobrecarga de trabalho. Contudo, os estudos sobre a saúde mental desses trabalhadores ainda são recentes e escassos. Para ilustrar, durante a revisão da literatura científica, Colagrai encontrou apenas sete estudos em todo o mundo que abordavam a saúde mental dos treinadores. Nenhuma dessas pesquisas, entretanto, analisou dados de treinadores e atletas de alto desempenho coletados simultaneamente.

Segundo as informações levantadas pela pesquisa, os treinadores tendem a consumir mais álcool e mais vezes por semana do que os atletas – os quais, em sua maioria, nunca consumiram álcool –, ao mesmo tempo em que também apresentam maior tendência a procurar ajuda profissional. O estudo indica que, entre treinadores e atletas, são as mulheres que apresentam mais sintomas de depressão e ansiedade. Contudo, em ambos os grupos de análise, as treinadoras são as mais afetadas.

Em seu dia a dia, as treinadoras enfrentam mais desafios do que seus colegas homens, como o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, a falta de confiança das organizações e de segurança no trabalho e as oportunidades mais limitadas para formação de redes profissionais. “A mulher ainda é a mais destinada ao cuidado da casa e do filho. Isso é um problema porque, no esporte, há muitas viagens, e elas não têm o mesmo apoio familiar que os treinadores. Além disso, no ambiente esportivo, elas sofrem com o machismo e não são chamadas para trabalhar com outros treinadores. Tanto que, procurando pessoas para fazer entrevistas, conseguimos uma proporção meio a meio para atletas, mas, no caso dos treinadores, foram apenas duas mulheres para oito homens. Então, é um ambiente mais hostil para elas”, explica Colagrai.

Como consequência, as treinadoras tendem a apresentar menos paixão harmoniosa pelo esporte – que é o tipo de paixão considerada saudável – em comparação com os outros grupos analisados. Também apresentam valores menores de motivação, resiliência e estratégias de coping – mecanismos empregados para lidar com situações de estresse – e maiores índices de estratégias de evitação de problemas e emoções negativas. “Quando temos um problema, a melhor solução é lidar com aquilo ou com a emoção que aquilo causa. No entanto, muitas vezes, as pessoas tentam evitar e se distanciar do que está acontecendo, o que, apesar de também ser uma estratégia, é algo negativo, que causa vários danos no longo prazo”, afirma o especialista.

Fatores protetivos

O trabalho de Colagrai foi um dos primeiros do mundo a analisar tanto sintomas relacionados aos transtornos mentais como fatores protetivos da saúde mental, a exemplo da motivação, da resiliência, da autoestima e das estratégias de coping. De acordo com Fernandes, esse é um ponto muito relevante da tese, porque permitiu alterar o foco sobre o que são a saúde e o transtorno mental, demonstrando que ambos, apesar de distintos, podem coexistir em uma mesma pessoa.

Paula Teixeira Fernandes, orientadora da tese: ideia de ganho a todo custo precisa ser eliminada do universo dos atletas e treinadores profissionais
Paula Teixeira Fernandes, orientadora da tese: ideia de ganho a todo custo precisa ser eliminada do universo dos atletas e treinadores profissionais

“Entendemos a saúde mental hoje como um continuum, que pode variar em muitos aspectos, mas o importante é observar os fatores protetivos e os sintomas”, afirma Fernandes. “No mundo pós-covid, quase todo mundo tem algum sinal de depressão ou de ansiedade, e é muito fácil rotular aquela pessoa como ansiosa e depressiva. Contudo, ter um sintoma não significa ter o transtorno. No estudo, vimos atletas que passaram por situações extremamente penosas e adversas conseguirem superá-las por meio do suporte social e da resiliência, enquanto outros, que passaram por situações que não pareciam tão preocupantes, não conseguiram sair delas”, revela.

Nesse sentido, uma das principais descobertas da pesquisa foi o fato de que quanto mais resiliência e mais estratégias de enfrentamento da adversidade o profissional possui, menos sintomas de ansiedade e de depressão apresenta. Trata-se de apoio social, da família e dentro da cultura do esporte, sem a pressão para que nunca se cometa erros ou para que o atleta seja o salvador da família. “O perfil do atleta que encontramos na pesquisa tem um nível de escolaridade muito baixo, e o esporte acaba sendo uma forma de ascensão social. Então, às vezes, há muita cobrança dos familiares, o que afeta o psicológico do profissional”, afirma Colagrai.

O pesquisador ainda nota que, no Brasil, existe uma pirâmide em que um número muito alto de pessoas inicia um esporte, mas menos de 1% delas efetivamente alcança o alto rendimento. Mesmo entre os atletas de elite, são poucos os que recebem grandes valores de salário. “Existem atletas profissionais que disputam campeonatos nacionais e mundiais e ganham um salário-mínimo, enquanto outros, como alguns do futebol, recebem milhões. Com isso, vem a questão da dupla carreira, dos sintomas de ansiedade e de depressão. É neste sentido que não é possível enxergar o transtorno mental como algo isolado. Quanto mais protegermos esses profissionais, menos sintomas de transtornos mentais eles terão”, afirma a docente.

Resistência

Para Colagrai e Fernandes, parte da dificuldade em lidar com os sintomas de transtorno mental está no fato de que ainda existe grande resistência em se falar sobre o tema dentro do ambiente esportivo de alto rendimento. Trata-se de uma cultura que valoriza a capacidade de não demonstrar vulnerabilidade e que tem uma visão do atleta como o herói que supera todas as dificuldades. Esse aspecto se refletiu na dificuldade de acesso aos profissionais. Embora Colagrai tenha entrado em contato com 40 federações e confederações esportivas do país para envio do questionário, apenas duas delas responderam ao seu e-mail.

“Foi muito frustrante não ter obtido nem mesmo a confirmação de que as entidades receberam o e-mail”, lamenta o pesquisador. “Até imaginávamos que haveria alguma dificuldade, mas não achei que seria dessa forma. Essas confederações recebem um investimento muito grande do governo e destinam a sua maior parte para o alto rendimento, embora a Lei dos Esportes de 1988 diga que esse montante deva ir primariamente para os esportes educacionais e de base”, afirma Colagrai, que se valeu do método “bola de neve” para contatar os participantes. Nesse método, os respondentes são solicitados a repassarem a pesquisa para seus conhecidos, permitindo aos pesquisadores alcançarem os grupos de difícil acesso.

Mesmo com as limitações do método utilizado, a pesquisa obteve um número significativo de respostas ao questionário – 148 atletas e 106 treinadores – de modalidades coletivas e individuais como basquete, atletismo, natação, vôlei, judô, ciclismo, futebol, ginástica rítmica e artística, além de taekwondo, boxe, softball e handebol. “É importante ressaltar que esse é um número expressivo quando se fala de esporte de alto rendimento no Brasil. A grande mensagem que vemos nisso é o quão importante o tema está se tornando e que estamos no caminho certo. Precisamos mudar de perspectiva e eliminar a ideia do ganho a qualquer custo. O esforço é importante, mas não se você se matar para isso. Essa é uma linha muito tênue no caso do esporte de alto rendimento, por isso precisamos olhar para os treinadores e os atletas de alto desempenho”, finaliza Fernandes.

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