Na trilha da malária no Brasil
Dois estudos da Unicamp, em projeto internacional, mapeiam focos da doença, ajudando a preveni-la e a tratar vítimas
Adriana Vilar de Menezes
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Antoninho Perri | BrazilPhotos/Alamy Stock Photo
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Os casos de malária crescem à medida que o desequilíbrio ambiental aumenta no planeta. A Amazônia Legal é o local onde ocorrem 99% dos casos notificados compulsoriamente no Brasil da doença – transmitida pela fêmea do mosquito do gênero Anopheles em regiões tropicais e subtropicais do mundo. O desmatamento e as práticas predatórias como o garimpo contribuem para a disseminação de focos de contágio em áreas de grande extensão e de difícil acesso, nas quais um habitante chega a ser infectado dezenas ou até centenas de vezes. A questão afeta a saúde global e mobiliza a Organização Mundial de Saúde (OMS), colocando a malária na pauta de fundações de fomento à pesquisa, como Bill & Melinda Gates, que, no Brasil, uniu-se ao Ministério da Saúde e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) para lançar o edital Projeto Malária há quatro anos. Duas propostas multidisciplinares e interinstitucionais desenvolvidas por pesquisadores da Unicamp ficaram entre as 13 selecionadas de um total de mais de 500 projetos inscritos.
A Plataforma de Visualização de Dados (PVD) criada para o Projeto Malária sob a coordenação de Luciana Correia Alves, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo), mapeou a presença dos vetores e disponibilizou ferramentas para a vigilância epidemiológica. O professor Fábio Trindade Maranhão Costa, docente do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e pesquisador do Laboratório de Doenças Tropicais (LDT), também teve seu projeto contemplado no mesmo edital. Costa demonstrou, a partir de amostras de sangue coletadas em Manaus, que as pessoas acometidas repetidas vezes pela malária causada pelo parasita Plasmodium vivax têm um perfil diferente de proteínas e de metabolismo. Isso sinaliza que é possível detectar, prevenir e tratar precocemente os pacientes que apresentam recorrências da doença.
Os números dão a dimensão da importância do combate à malária. Em 2022, foram registrados 249 milhões de casos em todo o mundo – 5 milhões a mais que no ano anterior, 94% deles no continente africano – e 608 mil mortes. No mesmo ano, o Brasil teve mais de 130 mil casos da doença e 50 mortes, quase todas ocorridas na Amazônia Legal. O Plasmodium vivax é o tipo de parasita da malária que predomina no território brasileiro. Embora tenha menor poder letal, explica Costa, esse protozoário desenvolve uma forma latente no corpo do paciente e se reativa meses após a primeira manifestação, episódio conhecido como recaída, dificultando o controle e o tratamento da doença.
Vigilância epidemiológica
“Nosso projeto se insere na perspectiva de vigilância epidemiológica”, explica Alves, que, junto com sua equipe, apresentou a plataforma PVD Malária em Brasília, no último mês de março. A plataforma de visualização e análise de dados dá subsídios para a antecipação de cenários e para a tomada de decisões no combate à malária na Amazônia Legal brasileira. Entre outros dados, o portal apresenta gráficos sobre distribuição de casos importados ou autóctones, casos por nível de escolaridade, além de taxas de incidência e de mortalidade por malária. Todas as informações sobre infecção e disseminação estão disponibilizadas para gestores, pesquisadores e a população em geral.
De acordo com Alves, o Ministério da Saúde possui um histórico de sucesso no enfrentamento da malária. De 2003 a 2022, os casos de malária no Brasil caíram de 400 mil para 130 mil, queda de quase 70%. No entanto, a doença ainda não foi erradicada, e muitos fatores ameaçam seu controle na Amazônia, como o desmatamento, o impacto ambiental do garimpo, as grandes distâncias, os difíceis acessos e as condições de vida das pessoas. “Parte da população convive diariamente com o mosquito vetor, que está ali no dia a dia de muitos habitantes ribeirinhos que moram nas imediações do rio. Por isso, além da vigilância e do trabalho de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde tem ações de controle da doença, como a distribuição de mosquiteiros e inseticidas”, diz Alves. A pesquisadora também destaca que a mobilidade das pessoas nas regiões de fronteira, o turismo e certas atividades ocupacionais, como a piscicultura, têm o potencial de criar reservatórios contaminados que se tornam focos do mosquito anofelino.
Segundo a professora, a partir de indicadores disponibilizados na plataforma – como informações climáticas, ambientais, demográficas, sociais e econômicas –, é possível classificar municípios de acordo com o grau de vulnerabilidade: alto, médio ou baixo. “Tudo está relacionado, desde os focos até o desmatamento das áreas de garimpo. Ou seja, o enfrentamento da malária tem um conjunto de ações que não se restringe à saúde”, analisa Alves, que é demógrafa e epidemiologista.
A docente classifica o projeto como inovador e de alta aderência social. “Trouxemos ferramentas que podem ser incorporadas na rotina de monitoramento da vigilância epidemiológica, com serviço interativo de análise de indicadores, fazendo uso da ciência de dados e da inteligência artificial”, diz a coordenadora. “A plataforma foi feita para mudar paradigmas e processos de trabalho.”
O sistema tem código aberto e pode ser 100% reproduzido. “O Ministério da Saúde pode fazer a implantação da plataforma no seu próprio servidor e gerenciá-la, incorporando e aplicando a tecnologia, criando novos indicadores de forma contínua e dinâmica.” Modelos de machine learning também criaram formas de verificar protocolos de tratamento aplicados na linha de frente. Existem, no Brasil, cerca de 27 protocolos distintos de tratamentos específicos registrados no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (Sivep), como para gestante, para criança ou para os diferentes tipos de malária.
Alves liderou a equipe multidisciplinar ao lado do também coordenador Carlos Beluzo, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), e dos pesquisadores Bianca Cechetto Carlos e Jayme Augusto de Souza Neto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Também participaram do projeto Natália Martins Arruda e Vinícius de Souza Maia, do Nepo, além de Everton Silva e Tiago José de Carvalho, do IFSP. Na área técnica, Adriano Souza e Willianson Araújo trabalharam na construção da plataforma.
Prevenção e tratamento
Também contemplado pelo edital do Projeto Malária, Costa propôs investigar se havia uma pré-condição do paciente para a recorrência da malária causada pelo Plasmodium vivax. “Até então, ninguém sabia, no mundo, sobre maior ou menor risco de recaída”, afirma o pesquisador, que desenvolveu o estudo em parceria com a pós-doutoranda Jéssica Rafaela dos Santos Alves e equipe. O resultado revela um determinado perfil metabolômico, com diferenças em lipídios e proteínas, que pode caracterizar esse paciente recorrente.
“A princípio, podemos detectar o risco de recorrência. Isso é muito importante, porque pode permitir um tratamento precoce. Dados preliminares da pesquisa sinalizam que devemos nos aprofundar nisso”, afirma o professor. “A primeira e mais difícil pergunta já respondemos. Agora temos outras: o que é diferente no perfil proteômico desse paciente? Por que é diferente? Ao longo do período de pós-infecção, qual o comportamento metabólico e proteico? Ele vai mudando até chegar a um ponto em que o parasita ‘acorda’? Temos ainda muitas perguntas e possibilidades de respondê-las”, diz Costa. “Quando o estudo é interessante, termina com mais perguntas que respostas. Isso faz parte da ciência.”
Em parceria com a Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado, de Manaus (AM), e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o professor e a pós-doutoranda optaram pela abordagem ômica – tecnologia de sequenciamento que avalia genomas, proteomas e metabolomas completos – e realizaram a proteômica e a metabolômica dos pacientes, isto é, o perfil de proteína e metabolismo. “Quando fizemos a metabolômica desses pacientes, vimos que aqueles que tiveram episódios recorrentes de malária possuem diferenças em relação àqueles que não os tiveram, principalmente referentes a alguns lipídios que modulam o sistema imune do paciente. Analisamos também o perfil de proteína desses pacientes pela proteômica. Apesar de ainda não sabermos qual proteína está diferindo, vimos que possuem um perfil [um conjunto de proteínas] completamente diferente”, diz a pesquisadora.
Durante o estudo, os pesquisadores recrutaram cerca de 280 pacientes infectados pelo Plasmodium vivax, que foram atendidos na Fundação de Medicina Tropical, em Manaus. As pessoas que aceitaram participar do estudo se comprometeram a retornar, para nova coleta de sangue, após 28, 42, 60 e 90 dias. Além do trabalho laboratorial realizado a partir das visitas presenciais, A pós-doutoranda também fez o acompanhamento remoto via Sistema de Vigilância Epidemiológica (Sivep) para monitoramento dos casos. “Durante o período de acompanhamento, alguns dos pacientes tiveram novo episódio de malária”, lembra a pesquisadora. A taxa de recorrência é de 20% dos infectados. “É um estudo longitudinal, que exige o acompanhamento dos pacientes, já que não sabemos quais terão recorrência”, acrescenta o professor.
O banco de amostras para análise da malária organizado durante o estudo é inédito no mundo. “Temos quase 3 mil amostras desses quase 300 pacientes, coletadas em diferentes momentos. Foi um processo rigoroso e de alta qualidade. Em algumas amostras, temos até medula do paciente, porque a medula é altamente afetada durante uma infecção por malária. Surge outra pergunta: até que ponto a pessoa infectada tem seu sistema imunológico alterado?”, indaga Costa, que nomeou o conjunto de amostras de pacientes que recorreram como Hipnoprint, em referência ao hipnozoíto, estágio em que o parasita fica dormente.
Alguns resultados do estudo já foram publicados em parceria com os pesquisadores de Manaus. Agora, Costa busca verbas da Fapesp e de instituições de fomento do exterior para aprofundar as análises. Uma das propostas novas da pesquisa é simular a infecção do parasita nas células hepáticas para obter um hipnozoíto cultivado in vitro no laboratório, como uma possibilidade de validar os achados obtidos a partir de amostras de sangue de pacientes infectados.
DOENÇA NO PAÍS
Mais de 80% dos casos de malária no Brasil são provocados pelo protozoário Plasmodium vivax, diferente do Plasmodium falciparum, predominante na África. O tipo falciparum tem maior incidência de mortes, enquanto o vivax é menos letal, embora possua características biológicas que dificultem seu controle.
O Brasil já teve muitos casos provocados pelo Plasmodium falciparum, mas o serviço de tratamento da malária realizado pelo Ministério da Saúde conseguiu baixar essa curva, uma vez que, se tratado nas primeiras 48 a 72 horas, o paciente infectado por esse tipo de parasita não transmite a doença. “Se tratar rápido, a fase sanguínea responsável pela transmissão não aparece, então é possível controlar. Mas a doença tem alto grau de mortalidade, ou seja, se não tratar, o paciente pode morrer”, explica Costa. Essa variante ainda não foi totalmente eliminada no Brasil, mas o Ministério da Saúde está próximo de atingir essa meta.
A malária causada pelo protozoário Plasmodium vivax é mais complicada, diz o pesquisador. Os estudos mostram que, após a primeira manifestação da doença, o parasita vai para o fígado, estágio em que fica “adormecido”. Depois dessa fase hepática, ele “acorda”, e o paciente tem nova manifestação da doença. Além de conseguir produzir as formas latentes, as transmissíveis podem aparecer antes dos sintomas na corrente sanguínea. O paciente faz o tratamento e, após 60 dias, pode ter a doença novamente. “Essa recaída, em algumas situações, dependendo da localidade, pode ocorrer anos depois. É muito complexo”, acrescenta Costa. Na fase assintomática, o paciente pode transmitir malária sem saber. O tratamento precoce pode impedir essa cadeia de transmissão do homem para o mosquito e do mosquito para o homem. “Ninguém sabe por que o parasita fica dormente, como um zumbi, no fígado do paciente. Isso dificulta o controle e o tratamento.”