Balcão de negócios culturais nas periferias
Pesquisa mostra como empreendedorismo tem influenciado produção na cidade de São Paulo
Balcão de negócios culturais nas periferias
Pesquisa mostra como empreendedorismo tem influenciado produção na cidade de São Paulo
Mariana Garcia
Texto
Antonio Scarpinetti | Sonia Regina Bischain/Divulgação
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A produção cultural das periferias da cidade de São Paulo, tradicionalmente relacionada com movimentos como o rap, o punk e a literatura marginal, tem se chocado, na última década, com um modelo de atuação mais próximo da lógica neoliberal. Nesse período, a valorização dada pela iniciativa privada e pelo poder público ao empreendedorismo e ao empoderamento tem impactado a ação dos coletivos culturais, historicamente em diálogo com a mobilização popular. Foi esse cenário de antagonismo que levou Silvio Rogério dos Santos, mestre em antropologia social pela Unicamp, a investigar o momento em que a cultura periférica passou a ser vista como negócio.
Natural do Grajaú, distrito da zona sul da capital, o pesquisador reconhece a importância dos movimentos culturais periféricos, que frequentou na adolescência, para sua formação intelectual. Por isso, a associação entre a sua região de origem e narrativas sobre empreendedorismo levou Santos, ainda durante a graduação no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), a se interessar pelo tema. “Como fruto dessa produção, eu precisava analisar o que estava acontecendo para explicar por que a cultura passou a ser encarada dessa forma”, justifica. Seu estudo, iniciado em 2016, integrou posteriormente seu mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do IFCH, sob orientação do professor Christiano Tambascia e coorientação da docente Taniele Rui. O resultado dessa empreitada é a dissertação “As palavras de incentivo que o sistema dá: Disputas em torno do projeto pedagógico, estético, político e ideológico da produção cultural das periferias em São Paulo”.
Na pesquisa, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Santos explora as transformações e os conflitos resultantes da atuação dos setores público e privado como financiadores da cultura periférica. O emprego da Lei de Fomento às Periferias e os editais de financiamento à cultura, entre outros formatos de parceria, são apontados no estudo como instrumentos eficientes para moldar uma atividade que, originalmente, tinha a denúncia da pobreza, da violência e da desigualdade entre suas principais temáticas. “Essa prática traz empoderamento, no sentido subjetivo e simbólico, mas não emancipação. O sistema capitalista – que criou a desigualdade e se nutre dela – passou a oferecer a solução para algo pelo qual é responsável, quando, na realidade, ainda não há redistribuição da renda”, explica Santos.
O antropólogo elegeu como metodologia de estudo a etnografia urbana, combinada com leituras teóricas – de autores dedicados ao estudo das periferias e do neoliberalismo e a outras temáticas relacionadas – e o acompanhamento de notícias e publicações divulgadas em redes sociais. Seu trabalho de campo se concentrou em quatro coletivos localizados em bairros distintos da capital. Dois deles têm como área de atuação a literatura: Poesia na Brasa, situado na Vila Brasilândia (zona norte paulistana), e Perifatividade, do Fundão do Ipiranga (região sudeste da cidade).
Os outros dois coletivos analisados são o Imargem, dedicado às artes plásticas e sediado no Jardim das Gaivotas, e o Ecoativa, localizado na Ilha do Bororé e voltado principalmente ao turismo ambiental de base comunitária. Embora sejam de bairros diferentes, ambos ficam no distrito mais populoso de São Paulo, o Grajaú. “Um dos motivos dessa escolha foi ‘cortar na própria carne’ e ver o que estava acontecendo no meu lugar de origem, pois, ao acompanhar notícias para a pesquisa, eu me deparei, por exemplo, com uma matéria publicada pela revista Veja retratando os coletivos e produtores culturais do Grajaú como empreendedores. Já o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma reportagem descrevendo-o como o distrito mais empreendedor da cidade”, justifica.
Máquina de editais
Para os professores do IFCH, o estudo vai de encontro ao viés convencionalmente adotado para tratar dessa questão na academia, evidenciando sua complexidade. “Existiu, no passado, uma reação muito celebratória de todo esse movimento, algo que se refletiu em teses dedicadas ao tema. Silvio resgata uma leitura crítica do processo que descreve”, analisa a coorientadora. “Seu trabalho critica as análises científicas que exaltam esse fenômeno como algo positivo, um sinal de que as periferias estão vencendo, construindo seu espaço. Sua pesquisa volta-se para os problemas resultantes dessa transformação e mostra a potência de pensar o binômio cultura e poder – uma linha de pesquisa histórica no IFCH”, completa o orientador.
Em sua dissertação, Santos lembra que os avanços experimentados na primeira quinzena deste século pela população das periferias, promovidos pelos governos progressistas do Partido dos Trabalhadores (PT), não fugiram da lógica liberal, limitando-se a enaltecer o consumo – sem, todavia, contemplar o acesso a direitos básicos. “Não houve uma politização. Lá na frente, isso desembocou no empreendedorismo neoliberal”, afirma. De acordo com o pesquisador, o acesso aos editais e às demais opções de financiamento estimulou a população em um cenário marcado pela precarização do trabalho e pela deterioração do poder econômico, uma situação que se acentuou durante o governo de Jair Bolsonaro e que se agravou na pandemia.
“A ideia de produzir cultura e [obter sua renda] fazendo aquilo de que se gosta é algo que mobiliza as pessoas. Principalmente se for para ganhar um pouco mais do que se ficassem em um subemprego”, pondera Santos. Não obstante a promessa de erradicação da miséria e das desigualdades, esse modelo se fundiu a uma realidade já marcada pela fragilidade. “As pessoas continuam pulando de edital em edital. Há, inclusive, cursos que ensinam a escrever projetos para essas iniciativas, além de um contingente da população tentando acessar esse mecanismo para se tornar empreendedor. Criou-se uma espécie de máquina de editais.”
Segundo Santos, nas periferias, o empreendedorismo cultural – apresentado como alternativa para conquistar ascensão e autonomia – contrapôs-se ao agir coletivo. “Os problemas sociais deixaram de ser algo estrutural, passando a ser enxergados como um problema do indivíduo, resultado do fato de aquela pessoa não ter se esforçado, não ter lutado o suficiente e nem ter se preparado para acessar os espaços de poder. A conclusão é que, para superar as dificuldades, a pessoa deve trabalhar essas questões consigo mesma, como sujeito, e não mais na sua coletividade”, conclui.
O trabalho de Santos, concordam os orientadores, contribui para as discussões sobre transformações e conflitos contemporâneos, uma das temáticas de estudo da antropologia social. A partir das entrevistas realizadas para o mestrado, o pesquisador encontrou uma relação entre essa abordagem subjetiva – estimulada pela lógica do empreendedorismo – e o enfraquecimento não apenas dos movimentos sociais, mas também do discurso de enfrentamento ao poder. “Há uma noção de que a movimentação social, ao menos em comparação com o que se via nos anos 1990 e 2000, foi diminuindo”, relata o antropólogo. Simultaneamente, o discurso político e o fazer cultural passaram a ser delimitados pelos editais de financiamento, pela sobrevivência e pelas oportunidades. “Essa articulação se tornou, também, um meio de controlar e limitar as pessoas, que estão muito mais preocupadas com a própria sobrevivência e que passam a se reconhecer na figura do produtor cultural”, conclui Santos.