Um poeta em vinte quadros
Livro analisa percurso expressional de João Cabral de Melo Neto ao longo de 50 anos
Leo Navarro
Especial para o Jornal da Unicamp
Reprodução
Ilustraçao
O livro João Cabral de Melo Neto em vinte quadros, escrito pelo professor de literatura brasileira Éverton Barbosa Correia, explora as obras publicadas pelo poeta pernambucano ao longo de 50 anos. E faz isso por meio do cotejo de diversas edições e da análise de informações editoriais, biográficas e históricas. O autor realiza uma investigação minuciosa sobre cada volume da obra de João Cabral, apresentando-a como um todo em evolução que se manifesta, em alguns momentos, como uma composição em andamento e, em outros, como um ponto marcante na trajetória do poeta. O livro convida os leitores a mergulharem na profundidade da expressão artística do poeta, explorando as nuances que permeiam cada fase de sua produção literária. Leia abaixo a entrevista com o autor.
Jornal da Unicamp – Qual foi sua motivação para escrever o livro e por que escolheu João Cabral de Melo Neto como foco de sua pesquisa?
Éverton Barbosa Correia – A minha escolha se deu pelo tema do meu mestrado, quando a minha orientadora, Vilma Arêas, sugeriu que eu mudasse de objeto de estudo e, em vez da dramaturgia de Oswald de Andrade, trabalhasse a de João Cabral de Melo Neto. Defendi a dissertação sobre o Auto do frade em 2000 e, de lá para cá, nunca mais parei de estudar os textos dele, alternando obras e perspectivas, no âmbito do doutorado e do pós-doutorado, nas universidades por onde passei e também agora na Uerj [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], onde trabalho. Depois de publicar uma quantidade de artigos, com estudos particulares, achei que devia fazer algo mais panorâmico, sem descurar dos casos particulares. Daí a solução de esboçar “quadros”, que contemplam obras e poemas em situação específica, mas sem perder de vista o todo da obra, que vai se processando, passo a passo. Ao final, o leitor dispõe de uma percepção mais apurada do percurso expressional, sem se restringir a um momento específico, embora também possa fazê-lo, se assim quiser.
JU – Quais contribuições a obra traz às abordagens críticas da poesia de João Cabral de Melo Neto?
Éverton Barbosa Correia – A poesia cabralina tem uma alentada fortuna crítica e serve de base a todos os escritores, notadamente aos autores de versos. Tal repercussão começou a vigorar em meados da década de 1950 e se consolidou na década seguinte, quando o poeta foi objeto de grandes leitores, como Othon Moacyr Garcia, Luiz Costa Lima, José Guilherme Merquior ou Benedito Nunes. Seus versos, publicados em meio a uma produção extraordinária, sempre foram alterados e, por isso, foi necessária uma observação circunstanciada em cada momento. A esse respeito, a voz crítica de Antonio Carlos Secchin tem papel seminal e pede complementaridade. Então, desdobro alguns problemas já assinalados por ele e levanto outros, de extração autoral ou editorial.
JU – Como as informações editoriais, biográficas e históricas são incorporadas na análise crítica das obras e como esses elementos contribuem para a compreensão do autor?
Éverton Barbosa Correia – O cotejo textual de edição a edição é sempre a prova dos nove. A partir das variações de verso a verso, vão surgindo as questões, do tipo: o que estava fazendo o autor nesse momento? Quem estava editando a obra? Quem organizou o volume? As transformações no curso do verso, da estrofe, do poema ou do livro são decorrentes de vontade autoral ou são objeto da revisão textual? Os editores priorizaram a vontade autoral ou a recepção dos leitores? Quando questões tão primárias são colocadas, a obra passa a ser considerada na sua circunstância de pronunciamento e de circulação, depurada de toda idealidade, descartando uma hipotética essência. Em vez disso, as circunstâncias autorais passam a valer como índices de significação da obra, não mais tomada em abstrato e sim na sua contextualização, tal como ficou inscrita graficamente no espaço da página, em situação concreta, que não deixa de sofrer variações a cada reedição.
JU – Ao longo de sua pesquisa e análise, houve alguma descoberta ou insight que o surpreendeu particularmente?
Éverton Barbosa Correia – No cotejo editorial dos volumes que já estão fora do mercado, a novidade se dá a todo tempo no trabalho de pesquisa e atua com uma força impressionante, pois é sempre uma sensação inusitada abrir um volume produzido na década de 1960, de 1950 ou de 1940. Então, além da graça de perceber que um verso mudou de lugar ou de palavra, por exemplo, existe algo misterioso em perceber que uma dedicatória apareceu ou sumiu. Há uns casos amargos. Exemplo simples: a palavra “ambidextro” pode ser grafada com “x” e o autor assim o fez. Então, a partir de certa altura, a mesma palavra passou a ser grafada com “s”, porque algum revisor supôs que o poeta não soubesse de língua portuguesa o suficiente.
JU – O livro oferece uma perspectiva abrangente da obra do poeta, acessível tanto para iniciantes como para especialistas. Como os leitores podem se beneficiar disso?
Éverton Barbosa Correia – Há certa fantasia em torno da poesia como uma modalidade textual acessível a poucos, com suposto poder divinatório. Por outro lado, há pessoas que consideram a poesia como portadora de uma verdade própria e singular. O fato é que, afora umas poucas exceções, a exemplo de Júlio Castañon Guimarães – com a obra de [Manuel] Bandeira – ou de Luciana Stegagno-Picchio – com a obra de Murilo Mendes –, pouco cotejo textual tem sido praticado no contexto brasileiro como amparo à leitura de poesia. Ao longo do trabalho, tento mostrar como uma dada obra sofreu as ingerências, logo convertidas em artesania verbal incomum, mas passível de compreensão ainda assim. A hipótese que animou o trabalho foi a de mostrar aos leitores como o artesanato verbal é variável, quer se queira mais acessível ou mais elaborado, desde que mantenha certa sintonia com as circunstâncias autorais. Tais circunstâncias se oferecem ao leitor como uma realização poética viva, sem reduzi-la a um conceito ou encaixá-la em definições extemporâneas. Quero acreditar que tal disposição da obra sirva a todos os leitores.
Título: João Cabral de Melo Neto em vinte quadros
Autor: Éverton Barbosa Correia
Edição: 1ª
Ano: 2023
Páginas: 272
Dimensões: 14 cm x 21 cm